domingo, 12 de abril de 2015

CRACA

Luis Fernando Veríssimo*

 

Ler James Joyce com uma explicação do lado é tão indispensável quanto ler Shakespeare com um glossário de inglês elizabetano

Um crítico chamado John McCourt, escrevendo sobre James Joyce, fez um achado inédito. Joyce viveu durante algum tempo em Trieste, onde dava aulas na Berlitz e onde escreveu o “Retrato do artista quando jovem” e começou a escrever “Ulysses”. McCourt descobriu que muito da linguagem ancestral enigmática que Joyce usaria depois em “Finnegans Wake” vem do triestino, o dialeto local que a família falava em casa. A revelação do crítico se soma a tudo o que já foi publicado sobre Joyce, certamente o autor mais explicado de todos os tempos. Interpretações de “Ulysses” e de “Finnegans Wake” por gente como Stuart Gilbert e Anthony Burgess se tornaram clássicas, sem falar em livros sobre o autor, como a famosa biografia definitiva de Richard Ellmann. McCourt dá mais importância do que Ellmann e os outros estudiosos à influência no trabalho de Joyce de Trieste, que descreve como uma espécie de Dublin levantina, com o mesmo vento do mar e o mesmo grande número de bares, mas uma população mais cosmopolita.

Certas obras literárias são como velhos navios: críticas, análises, exegeses etc. grudam no seu casco como craca; o navio e a craca passam a ser uma coisa só. Com o tempo, a craca quase dispensa o navio. Ler Joyce com uma explicação do lado é tão indispensável quanto ler Shakespeare com um glossário de inglês elizabetano, a não ser que você prefira não entender a metade mas ser levado e enlevado, sem interrupções, pela linguagem. Quando publicava as suas peças, George Bernard Shaw escrevia introduções maiores do que as peças e, em alguns casos, como o do prefácio para “Santa Joana”, melhores. Uma vez tive a ideia de escrever um livro sobre outro livro sobre outro livro, este inexistente, e escrevê-lo todo na forma de longas notas de pé de página. Mas, claro, coisa parecida já foi feita: “Fogo pálido”, do Nabokov, é apenas um pequeno poema, acompanhado de uma longa interpretação. Longa - e errada. Tudo já foi feito.

Nada a ver, mas me lembrei que o sobrenome da mulher de Joyce, Nora, era Barnacle, “craca” em inglês. Joyce contava que seu pai o alertara de que o nome era uma premonição: Nora Barnacle nunca largaria dele. E, fora algumas separações temporárias, nunca largou mesmo. Joyce estava destinado a ser um objeto de devoções, e é até hoje. 
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*Luis Fernando Verissimo é escritor
Fonte: Jornal o Globo online, 12/04/2015
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