domingo, 12 de abril de 2015

“O Brasil não merece Outra ditadura”

Recém-chegada da Bahia ao Rio de Janeiro, Maria Bethânia encarou, mais do que uma grande oportunidade, um enorme desafio: substituir Nara Leão no espetáculo Opinião, grande sucesso nos palcos cariocas. Após alguns dias com Susana Moraes (filha de Vinicius) ocupando o lugar da adoentada Nara, Bethânia entrou em cena com Zé Kéti e João do Vale em 13 de fevereiro de 1965. O show, que combinava música e teatro para iluminar questões sociais e políticas candentes no Brasil, lançava-se desde o ano anterior como caixa de ressonância das vozes que protestavam contra a ditadura imposta pelo golpe militar de 1964. Para celebrar estes 50 anos de carreira, Bethânia viaja pelo Brasil com o show Abraçar e Agradecer, que terá duas sessões em Porto Alegre – com ingressos já esgotados – nos próximos dias 16 e 17. Mas ela explica na entrevista a Zero Hora que este é um espetáculo mais focado no presente e no futuro do que no passado. Alguns de seus grandes sucessos estão no repertório, porém Bethânia quer mostrar, junto à leitura de textos de autores como Clarice Lispector e Fernando Pessoa, canções inéditas ainda não gravadas.

O marco inicial dos seus 50 anos de carreira está localizado no dia 13 de fevereiro de 1965, quando você foi chamada para substituir Nara leão no show Opinião, em cartaz no Rio. Além de ser aquele um espetáculo emblemático no Brasil sob a ditadura militar, você cantou Carcará, canção que se tornou um clássico de seu repertório e da música brasileira. Que lembrança você tem daquele momento?

Foi uma decisão de Deus e do destino. Fico muito feliz de ter participado do primeiro espetáculo contra a ditadura, com o (compositor) Zé Keti, o (diretor) Augusto Boal e aqueles autores extraordinários, todos grandes poetas (Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes). Se eu tive algum momento de dúvida ou de receio? Não. Com 17 anos, a gente não teme. Hoje eu sou uma pessoa mais receosa do que naquele momento. É como se a pele fosse ficando mais fina, e fica mesmo, com a idade, e tudo assusta mais. Mas aquele momento era tão alegre, para mim tão sabido. Era normal acontecer aquilo. Tanto que fiz aquele espetáculo achando que iria embora dali a quatro dias, porque ela (Nara Leão) ficaria boa da voz, que estava meio rouca. Até que ela foi no meu camarim e disse: “Eu não faço mais, vai ser você”. E ficou essa coisa linda com a música do João do Vale, Carcará, que foi um trem maravilhoso que me levou para uma história bonita que comemora agora 50 anos muitos felizes.

Desde o início de sua trajetória, você contempla um repertório com elementos regionais, que remetem à cultura popular do Brasil profundo, valoriza ídolos da canção brasileira pré-bossa nova e incorpora elementos contemporâneos e, digamos, sofisticados, do tropicalismo à poesia de Fernando Pessoa. Esse múltiplo interesse temático se deu naturalmente?

É o meu norte. É como eu sei trabalhar. Sou muito mais intérprete do que cantora. Eu já estreei em um espetáculo teatral. Porque, por mais que (o Opinião) fosse musical, era uma direção e um texto teatral, tinha uma dramaticidade que virou elemento natural para mim. É essa coisa de eu olhar muito no geral. Quando teve o tropicalismo, eu falei: “Tudo muito lindo, canto tudo que me interessar, mas não faço parte do movimento”. Como não fiz da bossa nova, de nada. Tenho a necessidade de minha liberdade ser plena. Gosto de visitar o repertório, como você mesmo disse, pré-bossa nova porque sou a caçula de oito irmãos, cada um com seu gosto musical, o que para mim foi muito rico. Eu ouvi absolutamente tudo que podia existir no Brasil, do clássico mais sofisticado do Beethoven até o Taí da Carmen Miranda, que era o Brasil cantando e chorando. Minha área é essa, a liberdade. Se tiver qualquer ideia de que estou aprisionada por esse dever ou aquela maneira de conduzir, não aceito fazer.

Caetano Veloso e Gilberto Gil também estão comemorando 50 anos de carreira com um espetáculo conjunto. Você deu seus primeiros passos com eles, mas com Caetano esse caminhar vem de antes. Como foi crescer e conviver com um irmão que fez uma carreira tão brilhante na música?

Além da minha estreia ter acontecido no Opinião com aquela situação toda linda, nascer irmã menor que Caetano foi outra bênção de Deus. Ele me ensinou absolutamente tudo. A andar, a falar, a ouvir, a brincar, a escrever, a estudar. Qualquer interesse que eu demonstrasse por qualquer expressão artística, ele fazia questão de me informar, de me levar para conhecer. Então, tive no Caetano um guia muito iluminado, muito poderoso. Caetano é um gênio. Depois que viramos artistas famosos, ele um compositor mundial, eu uma cantora mais humilde, mas também representante de uma geração, de um modo brasileiro, nos vemos muito menos do que gostaria. Mas isso é normal. O Gil um pouco desgarrou. Quando o encontro, é um prazer. Adoro a coisa musical dele. De todos, o grande músico é Gil. Caetano é um poeta, um filósofo, um pensador e um grande melodista e um grande compositor. Caetano, para mim, é próximo do muito sagrado. Mas nos vemos pouco. Nos encontramos sempre em Santo Amaro (cidade da Bahia onde nasceram) no verão.

Voltando a Carcará e ao Opinião: a partir daquele primeiro ano da ditadura militar, a cultura brasileira começou a viver, paradoxalmente, um momento muito rico e libertário na música, no teatro, no cinema, na literatura e nas artes visuais. Como você se lembra daquele momento?

Eu vejo aquele período com o coração muito ferido. O Brasil nunca mereceu, e não merece, uma ditadura militar careta, rígida, fora do tom. Foi muito duro para mim e para minha família. Caetano foi exilado e, durante três anos, eu era obrigada a ir todas as quartas-feiras, às 10 horas da manhã, ao Dops e dizer: “Estou aqui, não viajei, sou eu”. Os amigos todos exilados, a tristeza toda que reinava. Nós tivemos um brilho no teatro, um brilho na música, porque era natural. Oprime? A arte vai lá e responde com muita força. Acho que quem tentou oprimir e oprimiu realmente levou uma surra, no sentido de que a raiva ajuda muito a criar. Era uma raiva tão contida, tão abafada, um coração tão amargurado, que explodia. Eles quebravam todo mundo, exilavam, ficou muito difícil, mas as coisas aconteciam, a arte rolou, não morreu. A raiva é um sentimento que conduz bem em alguns momentos.

Imagino então seu desencanto com essa discussão lançada por quem defende a volta da ditadura militar.

Não posso nem ouvir, me arrepio toda. Não gosto nem de pensar que se fala nessa palavra, quanto mais que se imagine viver outra coisa daquela. O Brasil não merece.

O dia 6 de abril passado marcou os 50 anos da consagração de Elis Regina, com Arrastão, no Festival da TV Excelsior, no início da era de ouro dos festivais. Você participou de algum?

A Elis chegou quebrando tudo. Tinha essa coisa da pegada forte, de se expressar muito bem. Foi uma relação (com Elis) pequena, mas suave e boa, com admiração mútua. Eu participei de um único festival, o Festival Internacional da Canção (o 1º FIC, em 1966), com uma música do Gil e do Caetano (Beira Mar) que sequer foi classificada. Depois, Maria Odete a gravou e foi um grande sucesso. Música muito bonita, mas o pessoal aqui (do Rio) ficou meio zangadinho porque dizia que como o mar da Bahia não existia igual (risos).

Elis apresentou em Arrastão uma dramaticidade na interpretação que você acabou por incorporar de forma mais efetiva no palco. Como se deu a tomada desse caminho?

Foi o (diretor teatral) Fauzi Arap (1938 – 2013) que descobriu em mim um modo de eu me expressar. Ele criou um tipo de espetáculo que me servisse, me botasse inteira no palco (no show Rosa dos Ventos, de 1971). E inteira eu falo, eu danço, eu canto, gosto de mexer com tudo, embolo Guimarães Rosa com o poeta popular da esquina, com o cordel. É assim que eu sinto o Brasil. Sou apaixonada pelo Brasil que não é falso, o Brasil real e verdadeiro, real e nobre.

O universo musical desse Brasil lhe estimula a combinar Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Chico Buarque e Tom Jobim com Zezé di Camargo & Luciano, Bruno & Marrone?

O que me comove, eu canto. Não tenho o menor preconceito nem problema. Isso é que eu admiro no Brasil. O brasileiro tem esse coração lindo, que recebe encantado, sabe distinguir, sabe escolher, sabe respeitar.

E o que você acha da opinião de quem diz que a música brasileira de “qualidade” (entre aspas, dentro do caráter subjetivo da apreciação) perdeu seu espaço?

Isso é velho. Lá em 1965 já se discutia isso, depois veio a coisa com a guitarra elétrica. Agora é com o sertanejo, daqui a pouco é a axé music. Acontece. Tem espaço, tudo deve rolar. Quem tem verdade se mantém, sobrevive sem precisar sair do que é.

Um de seus trabalhos recentes é a leitura de poemas de Fernando Pessoa com a professora Cleonice Berardinelli, registrado no documentário (o vento lá fora). Esse projeto nasceu naquele encontro de vocês na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2013?

Na verdade, a mesa na Flip era dela, e eu fui convidada a participar. Adoro a professora Cleonice, nos conhecemos há muitos anos por conta de eu gostar de Pessoa e ela ser grande autoridade em Pessoa no Brasil. Ela foi levada por amigos a meus shows e gostou muito da minha ideia de costurar textos do Pessoa. Recebemos juntas da Casa Fernando Pessoa a Ordem do Desassossego, e aí pintou a coisa de Paraty. Foi um sucesso muito grande e falei: “Professora, a senhora quer registrar isso?”. Virou um trabalho muito bonito, um filme muito bonito.

Vocês pretendem apresentar esse projeto mais vezes, em teatro, como um sarau?

Não. É mais complicado. Fizemos mais duas leituras, no Gabinete Português, uma vez por conta do lançamento do livro dela e outra na comemoração de uma data portuguesa. E mais uma no lançamento do filme na PUC (RJ), que é a casa da mestra. Ela fala muito bem.

E lhe agradam mais os shows para grandes plateias ou esses pequenos encontros?

Acabei de fazer um show na Bahia para 1 milhão de pessoas, no Farol da Barra. Esse show na rua me agrada muito, mas sou mais econômica porque não sou mais menina. Mas também não sou velha, sou uma mulher (risos). Mas exige muito preparo físico e emocional. Uma coisa fechada requer muita concentração, equilíbrio. Na sexta (dia 10 de abril), vou fazer uma leitura para 10 pessoas.

Outro trabalho seu a caminho para 2015 é Bethânia e as Palavras. Do que se trata?

É um projeto da Universidade Federal de Minas Gerais. Fiz uma leitura de 45 minutos cantando trechos de músicas a capela. É ligado à História. Tem de tudo: Villa-Lobos, Luiz Gonzaga, Guimarães Rosa, anônimos, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Cecília Meireles, uma delícia. Foi emocionante. A faculdade pediu para eu gravar, e será lançado como livro, DVD e CD.

Como é esse show comemorativo que você vai apresentar em Porto Alegre?

Não é um show retrospectivo. Lógico que passo por canções que são sucessos, mas tem muita coisa inédita. Sou eu hoje. Tem uma cenografia e uma iluminação muito grandiosas. Só posso fazer esse espetáculo em teatro.

Além de gravar compositores consagrados, entre eles Chico Buarque, Tom Jobim e Roberto Carlos, você costuma revelar novos autores. Que compositor lhe chamou atenção recentemente?

No momento, é uma compositora da Paraíba, uma menina que se chama Flávia Wenceslau. O Chico César me apresentou a ela. A última canção do show é dela, uma inédita, que se chama Silêncio. É uma compositora extraordinária. Vou gravar em compacto simples, como se fazia antigamente, que vai ter uma das canções inéditas da Flávia e também Eu Te Desejo Amor, música que gravei para a novela do Gilberto Braga (Babilônia), para as personagens da Fernanda Montenegro e da Nathalia Timberg. É uma versão que pedi para o Nelson Motta fazer (da canção francesa Que Reste-t-il de Nos Amours?, de Charles Trenet e Léo Chauliac, de 1942).

Esse show vai ser registrado?

Sim, no segundo semestre, em disco e DVD. A turnê seguirá pelo Brasil e também por Portugal.

Como é a receptividade em Portugal a essa sua interação com a literatura e com Fernando Pessoa em especial?

Gostam de mim, e eu deles. Eles têm consideração, respeito, gratidão. Eu sou cidadã lisboeta, cidadã do Porto. Vou fazer a leitura do meu caderno de poesias em Braga, depois faço meu show e saio viajando por lá.

A internet mudou a forma de divulgar seu trabalho e sua interação com os fãs?

Não tenho site. Não me preocupo com isso. Acho bom que se tenha acesso livre para tudo. Mas não tenho essa coisa de conversar, de Face e sei lá o quê mais em inglês, não me interessa nada, estou fora disso. Vivo o melhor que posso dentro da modernidade, não sou boba, muitas coisas me servem. Tem milhares de sites sobre mim, mas todos desautorizados.

Tem quem veja as redes sociais como fonte de dissabores. Provavelmente você não gostaria de ver o que muita gente diz nelas.

Não estou nem aí, não sei se dá sabor ou dissabor (risos). Eu leio todas as cartas de fãs. Por minha vida inteira li e nunca respondi uma. É o direito do outro de se expressar, mas não tenho obrigação de responder. Faço shows, faço meus discos, me expresso ali.

Algum projeto futuro em mente?

Tenho um grupo de amigos que me pedem para fazer um show cantando músicas de amor cafonas, bregas. Mas não vou fazer porque acho que dá sono. Gosto de ficar livre, o que me der vontade eu faço.
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marcelo.perrone@zerohora.com.br
Reportagem por MARCELO PERRONE
Fonte: ZH online, 12/04/2015

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