quarta-feira, 29 de abril de 2015

Reinventar o Estado. E a democracia também?


A quarta revolução
Chama-se a "A Quarta Revolução" e explica ao que vem: "A corrida global para reinventar o Estado". É um livro que levanta muitas questões e também abre algumas pistas, de que aqui deixamos um excerto.
“O Estado terá de mudar drasticamente de forma ao longo das próximas décadas. No mundo emergente acabou a era de crescer durante a noite. No Ocidente a era do mais está a chegar ao fim. Está na hora da Quarta Revolução.” Este é, porventura, o ponto central deste livro de Adrian Wooldrige e John Micklethwait que analisa a evolução das formas de Governo nos últimos séculos e constata que a Europa, ou o Ocidente como um todo, estão a perder a capacidade de liderar pela eficiência e pelo exemplo. Mas que, ao mesmo tempo, modelos aparentemente mais eficientes, como alguns que têm surgido na Ásia, têm grandes defeitos como democracias liberais. Onde estará o futuro?

Uma vida melhor para todos os cidadãos tornou-se parte do contrato com o Leviathan. Isso abriu o caminho à aberração do comunismo, mas também à terceira grande revolução: a invenção do moderno Estado-providência. Também este mudou muito em relação ao que os seus fundadores, como Beatrice e Sidney Webb, imaginaram; mas é nesse Estado que nós, no Ocidente, hoje vivemos. Na Europa Ocidental e na América tem dominado sem contestação desde a Segunda Guerra Mundial – exceto durante os anos 80 do século xx, em que Margaret Thatcher e Ronald Reagan, inspirados por pensadores liberais clássicos como Milton Friedman, temporariamente detiveram a expansão do Estado e privatizaram os altos comandos da economia. Alcunhamos isto de meia revolução porque, embora remontasse a algumas das ideias fundadoras da segunda revolução «liberal», acabou por não fazer nada para reverter a dimensão do Estado.

Nos últimos 500 anos a Europa e a América foram a única fonte de ideias novas sobre o Estado. Nem todas funcionaram bem mas, mesmo nos seus desvios mais grotescos do fascismo e do comunismo, o Ocidente continuava a esforçar-se, pelo menos na teoria, em forjar o futuro. O resto do mundo ia atrás. 
 
As voltas e reviravoltas de cada revolução, como veremos, foram significativas. O que é claro, todavia, é que nos últimos 500 anos a Europa e a América foram a única fonte de ideias novas sobre o Estado. Nem todas funcionaram bem mas, mesmo nos seus desvios mais grotescos do fascismo e do comunismo, o Ocidente continuava a esforçar-se, pelo menos na teoria, em forjar o futuro. O resto do mundo ia atrás. Chineses e russos seguiram o marxismo. A Índia, quando se tornou independente, em 1947, abraçou o fabianismo ao mesmo tempo que ateava fogo ao imperialismo britânico. Na América Latina, a despeito da relação de amor-ódio com os gringos de el norte, as economias da região fizeram um avanço claudicante há duas décadas quando abraçaram na sua maior parte «o consenso de Washington» (uma frase inventada por John Williamson para significar uma combinação de mercados abertos com uma prudente gestão económica). Mesmo em Pudong existe o reconhecimento de que, até recentemente, o modelo ocidental representou o padrão ouro da modernidade.
Os liberais vitorianos viam um Estado bem dirigido como requisito prévio da emancipação individual. Os seus sucessores fabianos viam o Estado-providência como requisito prévio da realização individual.
A liberdade e a democracia têm sido centrais para tal. A ascensão do Estado ocidental não foi só uma questão de organizar um funcionalismo público competente. Até o monstro de Hobbes, como veremos, era perigosamente liberal para ser proposto por um adepto da realeza, pois o Leviathan assentava na noção de um contrato social entre governantes e governados. Os liberais vitorianos viam um Estado bem dirigido como requisito prévio da emancipação individual. Os seus sucessores fabianos viam o Estado-providência como requisito prévio da realização individual. À medida que se expandiu, o Estado ocidental tem tendido a dar mais direitos às pessoas – o direito a votar, o direito à educação, aos cuidados de saúde e aos apoios sociais. Coisas como o acesso à universidade, que há um século era considerado um privilégio de homens brancos ricos, são vistas agora como um serviço público, nalguns casos um direito gratuito de toda a gente.

O Estado ocidental é agora, no entanto, associado a um outro traço: o inchaço. As estatísticas contam parte da história. Na América, a despesa do governo subiu de 7,5% do PIB em 1913 para 19,7% em 1937, para 27% em 1960, para 34% em 2000 e para 41% em 2011. Na Grã-Bretanha, subiu de 13% em 1913 para 48% em 2011, e a percentagem média em 13 países ricos trepou de 10% para cerca de 47%. 
 
O Estado ocidental é agora, no entanto, associado a um outro traço: o inchaço. As estatísticas contam parte da história. Na América, a despesa do governo subiu de 7,5% do PIB em 1913 para 19,7% em 1937, para 27% em 1960, para 34% em 2000 e para 41% em 2011. Na Grã-Bretanha, subiu de 13% em 1913 para 48% em 2011, e a percentagem média em 13 países ricos trepou de 10% para cerca de 47%. Mas estes números não captam totalmente o modo como o Estado se tornou parte do tecido das nossas vidas. O Leviathan da América reivindica o direito de nos dizer por quanto tempo precisamos de estudar para sermos cabeleireiros na Florida (dois anos) e o direito de monitorizar o nosso correio eletrónico. Também obriga os hospitais americanos a obedecer a 140 000 códigos nas maleitas que tratam, incluindo um para os danos resultantes de ser atingido por uma tartaruga. O governo costumava ser um parceiro ocasional na nossa vida, o contraente no outro lado do contrato de Hobbes, o guarda-noturno que olhava por nós no de Mill. Hoje é uma ama omnipresente. Em 1914, «um inglês sensato, cumpridor da lei, podia passar a vida inteira sem quase dar pela existência do Estado, para além da estação de correios e do polícia», observou uma vez o historiador A. J. P. Taylor. «Podia viver onde quisesse e como quisesse… Em termos gerais, o Estado agia apenas para velar por aqueles que não podiam velar por si mesmos. Deixava em paz o cidadão adulto.» Hoje, o inglês sensato, cumpridor da lei, não pode passar uma hora, quanto mais uma vida inteira, sem reparar na existência do Estado.
Há poderosas razões demográficas e económicas pelas quais muita gente pensa que o Estado continuará a crescer. Os direitos crescem à medida que as populações envelhecem. Os governos dominam áreas da economia, como a saúde e a educação, que são resistentes a melhorias da produtividade.
Tem havido tentativas periódicas de travar o agigantamento do Estado. Em 1944, Friedrich Hayek, com The Road to Serfdom (O Caminho para a Servidão), avisou que o Estado estava em risco de esmagar a sociedade que o dera à luz. De então para cá este tem sido um tema importante para os políticos conservadores. Em 1975, o atual governador da Califórnia, Jerry Brown, numa anterior encarnação, decretou uma «era de limites». Esta preocupação com os «limites» remodelou profundamente o pensamento sobre o Estado na década e meia seguinte. Nos anos 90 do século xx houve gente tanto de esquerda como de direita que assumiu que a globalização iria aparar o Estado: Bill Clinton proclamou que a era do Estado gigante tinha acabado. Na realidade, o Leviathan tinha apenas feito uma pausa para tomar fôlego. O Estado depressa recomeçou a crescer. George W. Bush aumentou o tamanho do Governo dos Estados Unidos mais do que qualquer outro presidente desde Lyndon Johnson, enquanto a globalização apenas aumentou a ânsia das pessoas por uma rede de segurança. Mesmo levando em conta os seus recentes contratempos, o Estado ocidental é mais poderoso do que qualquer Estado na história e mais poderoso, de longe, do que qualquer empresa privada. A Walmart pode ter a mais eficiente cadeia de distribuição do mundo, mas não tem o poder de prender as pessoas ou cobrar-lhes impostos – ou escutar os seus telefonemas. O Estado moderno pode matar pessoas do outro lado do mundo com o toque de um botão – e assistir em tempo real.

Um activista do Tea Party
Um activista do Tea Party

Há poderosas razões demográficas e económicas pelas quais muita gente pensa que o Estado continuará a crescer. Os direitos crescem à medida que as populações envelhecem. Os governos dominam áreas da economia, como a saúde e a educação, que são resistentes a melhorias da produtividade.

Mas a outra razão para o alastramento do Estado é política. Esquerda e direita têm lisonjeado os seus apetites, a primeira cantando os louvores de hospitais e escolas, a segunda dedicando serenatas às prisões, às forças armadas e às forças de polícia, e ambas criando regulamentos como se fossem confetes. O apelo a que «tem de se fazer alguma coisa», isto é, que tem de ser criado mais um regulamento ou mais um departamento, vem tantas vezes da Fox News ou do Daily Mail como da BBC ou do New York Times. Apesar de toda a preocupação com os «subsídio-dependentes» e as «rainhas da assistência social», a maior parte da despesa do Estado é sugada pelas classes médias, muitas delas conservadoras. Os eleitores sempre votaram a favor de mais serviços; do que se queixam algumas pessoas é de pagar mais por eles do que as outras. O cartaz apócrifo num comício do Tea Party avisando o «Monstro» para «tirar as mãos do meu Medicare» resume a hipocrisia dos americanos a respeito do Estado.

O negócio dos nossos políticos tem sido o de nos dar mais daquilo que queremos – mais educação, mais cuidados de saúde, mais prisões, mais pensões, mais segurança, mais direitos. E no entanto – eis o paradoxo – não estamos contentes. 
 
Para o melhor ou para o pior, a democracia e a elefantíase têm andado de mãos dadas. O negócio dos nossos políticos tem sido o de nos dar mais daquilo que queremos – mais educação, mais cuidados de saúde, mais prisões, mais pensões, mais segurança, mais direitos. E no entanto – eis o paradoxo – não estamos contentes.

Tendo sobrecarregado o Estado com as suas exigências, os votantes estão furiosos por isto funcionar tão mal. De Seattle a Salzburgo, a preocupação é a de que o sistema que tem servido tão bem o Ocidente se tenha tornado disfuncional, que, para usar uma frase das organizações de sondagens, as coisas estejam «fora dos trilhos», que as nossas crianças vão viver vidas mais humildes do que as nossas. Na América, o Governo Federal tem menos apoio do que Jorge III à época da Revolução Americana: apenas 17% dos americanos dizem que confiam no Governo Federal, menos de metade dos 36% verificados em 1990 e um quarto dos 70% registados nos anos 1960. O Congresso recebe regularmente uma taxa de aprovação de 10%. A militância nos partidos políticos desmoronou-se. Na Grã-Bretanha, menos de 1% da população está filiada num partido político. O número de Tories declinou de 3 milhões nos anos 50 do século xx para 134 000 hoje, um desempenho que teria posto qualquer empresa privada nas mãos de um administrador de falências. Nos EUA há agora mais gente que se identifica como independente do que como republicano ou democrata. Os únicos políticos com sangue na guelra parecem estar nos extremos – gente que não quer nenhum Estado ou se recusa a aceitar quaisquer reformas ou atribui a culpa de todos os males aos imigrantes ou aos banqueiros ou à União Europeia.
Talvez os americanos ainda tenham algum tempo para ignorar a realidade financeira; a eurocrise, em contraste, já é graficamente real.
A deriva para os extremos não é surpreendente dada a incapacidade do centro para enfrentar a realidade. Basta pegar nas duas maiores crises dos governos ocidentais, a trapalhada financeira americana e a euroderrocada, e ver os políticos centristas a comportarem-se como avestruzes. Quanto à primeira, os economistas concordam na sua maioria em que a solução requer uma combinação de cortes na despesa e subidas de impostos. Os economistas discordam apenas talvez quanto à respetiva proporção. Na maioria dos «ajustamentos financeiros» bem-sucedidos noutros países, os cortes têm feito a maior parte do trabalho, mas nunca o trabalho todo. No entanto, nas últimas eleições presidenciais americanas, todos os candidatos republicanos, sem exceção, rejeitaram a ideia de qualquer espécie de aumento de impostos. «Nem mais um tostão» era o refrão universal. Os democratas eram só ligeiramente menos insanos na sua granítica recusa de considerar qualquer redução de direitos sociais.

European leaders pose during a family photo at an European Council leaders summit in Brussels on February 12, 2015. AFP PHOTO/Emmanuel Dunand        (Photo credit should read EMMANUEL DUNAND/AFP/Getty Images)
A rotina dos Conselhos Europeus

Poderá argumentar-se que talvez os americanos ainda tenham algum tempo para ignorar a realidade financeira; a eurocrise, em contraste, já é graficamente real. Vejam-se, no entanto, as eleições nas três maiores economias da zona euro. A contenda de França em 2012 foi um exercício de negação, sem que Nicolas Sarkozy ou François Hollande alimentassem qualquer ideia de cortes no que se tornou o Estado mais inchado do continente. Em 2013, apesar de o seu país estar a sofrer a pior crise registada desde o pós-guerra, um em cada quatro italianos não se maçou em ir votar – e mais de metade dos que foram escolheram ou Beppe Grillo, um antigo cómico, ou Silvio Berlusconi, um palhaço congénito. Ninguém acusaria Angela Merkel de farsante, mas até a sua fácil vitória na Alemanha em 2013 foi uma recusa nacional de enfrentar a realidade, pensando que a eurocrise era um problema do sul da Europa com os aforradores alemães a terem de apagar o fogo. Ninguém discutiu o facto de os bancos alemães ainda estarem de pé apenas porque os seus devedores do sul tinham sido resgatados.
O Ocidente perdeu a sua confiança na maneira como é governado.
Há algumas razões mecânicas para este cambaleio até ao limite da razão. Nos EUA, a traficância com os círculos eleitorais deixou muitos distritos congressionais nas mãos de extremistas enquanto na União Europeia o sistema de governação é um labirinto de irresponsabilização. Mas o facto é simplesmente que os eleitores – sejam bávaros furiosos com os italianos preguiçosos que vivem uma dolce vita à custa dos seus euros ou gregos furiosos com a austeridade da Sra. Merkel – estão frustrados com o sistema. Estão mesmo danados. Já não aguentam mais. O Ocidente perdeu a sua confiança na maneira como é governado.

O Estado terá de mudar drasticamente de forma ao longo das próximas décadas. No mundo emergente acabou a era de crescer durante a noite. No Ocidente a era do mais está a chegar ao fim. Está na hora da Quarta Revolução. 
 
O mesmo se pode dizer do mundo emergente. Após uma década de crescimento espetacular nos mercados emergentes, muitos têm agora o seu próprio debate sobre governação. Os pequenos príncipes chineses têm consciência de que haver mais progresso depende agora de melhorar o Estado, não apenas de abrir os mercados. E, como os seus pares da Índia, veem-se confrontados com a consequência desses mercados mais livres – uma classe média instruída, cada vez mais farta de um Estado obsoleto, muitas vezes corrupto. No Brasil, os manifestantes fixaram-se na corrupção: um em cada quatro brasileiros diz que pagou subornos. Na Turquia, a queixa é a da arrogância por parte do primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, que age mais como um sultão do que como um democrata. Gurcharan Das, um arguto comentador indiano, aponta que não há muito os seus compatriotas estavam dispostos a proclamar que «a Índia cresce durante a noite enquanto o governo está a dormir». Agora, tomam consciência de que a Índia não pode continuar a crescer enquanto as suas escolas forem de segunda e as estradas estiverem cheias de buracos. Mesmo a China não tem ficado imune: a frustração com as más escolas tanto se sente em Cantão como na Praça Tahrir ou nas favelas de São Paulo.

Portanto, tanto no Ocidente como no mundo emergente, o Estado está metido em sarilhos. O mistério está em haver tanta gente a assumir que é pouco provável uma mudança radical. O status quo, com efeito, é a opção menos provável. Como secamente observou uma vez o economista Herbert Stein: «Se uma coisa não pode continuar para sempre, para.» O Estado terá de mudar drasticamente de forma ao longo das próximas décadas. No mundo emergente acabou a era de crescer durante a noite. No Ocidente a era do mais está a chegar ao fim. Está na hora da Quarta Revolução.

Porque tem de mudar

Porque há de ser diferente esta época? Dominar o Leviathan será globalmente o cerne da política por uma confluência de três forças: a falência, a concorrência e a oportunidade. O Ocidente tem de mudar porque está a falir. O mundo emergente precisa de se reformar para continuar a caminhar em frente. Há uma competição global, mas é uma competição que se baseia tanto nas expectativas como no medo: há maneiras de governar melhor.

Com os baby-boomers a envelhecer, o Gabinete do Orçamento do Congresso calcula que a conta dos benefícios sociais só por si crescerá 60% ao longo da próxima década. O seu défice pode ser sustentável agora, mas os Estados Unidos têm de fazer uma escolha: puxar as rédeas a esses direitos, subir os impostos até níveis extraordinários ou tropeçar de crise em crise. 
 
A dívida e a demografia significam que o governo no mundo rico tem de mudar. Mesmo antes de ruir o Lehman Brothers os governos ocidentais estavam a gastar mais do que arrecadavam. O governo dos Estados Unidos teve saldos positivos apenas cinco vezes desde 1960; a França não tem nenhum desde 1974-75. A crise só fez aumentar a dívida, pois os governos endividaram-se, com toda a razão. Em março de 2012 havia uns 43 biliões de dólares de obrigações do Estado em circulação, comparados com apenas 11 biliões em fins de 2001. Isto é apenas uma fração das verdadeiras responsabilidades dos governos ocidentais se contarmos com as pensões e as prestações de saúde. Os números de muitas cidades são ainda piores: San Bernardino, na Califórnia, e Detroit, no Michigan, declararam-se em bancarrota por causa destas obrigações fora do balanço.

E quem vai pagar isto tudo? Na «velha Europa», por exemplo, a população em idade de trabalhar atingiu o seu pico em 2012, com 308 milhões – e prevê-se que decaia para 265 milhões até 2060. Estes trabalhadores terão de sustentar cada vez mais pessoas de idade. O rácio de dependência da velhice (o número de pessoas com mais de 65 anos em relação ao número de pessoas entre os 20 e os 64) subirá de 28% para 58% – e isto é assumindo que a União Europeia deixa entrar um milhão de jovens imigrantes por ano. Do outro lado do Atlântico, a América continua a taxar-se com impostos de país de Estado pequeno e a gastar como se fosse grande enquanto esconde as suas verdadeiras responsabilidades usando táticas que fariam corar Bernie Madoff. Com os baby-boomers a envelhecer, o Gabinete do Orçamento do Congresso calcula que a conta dos benefícios sociais só por si crescerá 60% ao longo da próxima década. O seu défice pode ser sustentável agora, mas os Estados Unidos têm de fazer uma escolha: puxar as rédeas a esses direitos, subir os impostos até níveis extraordinários ou tropeçar de crise em crise.

Populações cada vez mais idosas criam enorme tensão nos sistemas de pensões
Populações cada vez mais idosas criam enorme tensão nos sistemas de pensões

De seis em seis meses o Fundo Monetário Internacional publica o seu boletim financeiro, no qual a Tabela Estatística 13 tem o excitante título de «Economias Avançadas: Necessidades de Ajustamento Indicativas na Base dos Objetivos de Endividamento a Longo Prazo»; a sua coluna final faz uma estimativa de mais ou menos quanto, uma vez contabilizada a despesa relacionada com o envelhecimento, os governos precisam de cortar nos custos ou aumentar nas receitas em ordem a baixar a sua dívida para níveis razoáveis até 2030. Na América, o número é 11,7% do PIB, no Japão é 16,8% e a média no total dos países do G20 é de 9,3%. Podemos discutir algumas das exigências do FMI em relação a determinados países. Alguns economistas pensam que se mostra duro demais com a América, por exemplo. Argumentam que o FMI estabelece um objetivo desnecessariamente ambicioso para a redução da dívida do Estado (60% do PIB) e sublinham que uma pequena alteração quer nos números do crescimento quer na receita dos impostos faria uma grande diferença nas perspetivas da América. Mas as duas décadas passadas da história política da América sugerem que seria insensato apostar na capacidade do país para subir os seus impostos. E mesmo que os números de alguma maneira possam ser equilibrados, sem sérias reformas do seu setor público a América tornar-se-á num «conglomerado de seguros protegido por um grande exército permanente», com todo o dinheiro a ir para direitos sociais e Defesa, não sobrando nenhum para educação ou qualquer outra coisa.
Mesmo os políticos europeus mais consensualistas reconhecem que alguma coisa tem de mudar: a estatística favorita de Angela Merkel é a de que a União Europeia representa 7% da população do mundo, 25% do PIB mundial e 50% das despesas sociais.
No futuro previsível a ocupação do Estado ocidental será a de tirar coisas – muito mais coisas do que a maior parte das pessoas julga. Nalguns lugares, onde os governos conseguiram administrar as suas finanças espetacularmente mal, como a Grécia e algumas cidades americanas, essa retirada foi já dramática: em San Bernardino o advogado da cidade aconselhou as pessoas a «trancarem as portas e carregarem as suas armas» porque a cidade já não se podia permitir ter polícia. Mesmo os políticos europeus mais consensualistas reconhecem que alguma coisa tem de mudar: a estatística favorita de Angela Merkel é a de que a União Europeia representa 7% da população do mundo, 25% do PIB mundial e 50% das despesas sociais. Mas as políticas de introdução da mudança serão sangrentas, pondo em liça governos sem dinheiro que têm de cortar serviços contra eleitores agastados que querem manter os seus direitos sociais e contribuintes que querem receber mais em troco do seu dinheiro, contra poderosos sindicatos do setor público que querem preservar os seus privilégios. Se milhões de franceses saíram à rua quando o presidente Sarkozy elevou a idade da reforma de 60 para 62 anos, Deus sabe o que acontecerá quando François Hollande ou o seu sucessor for forçado a elevá-la para os 70.

Os grupos de interesses (incluindo muitas pessoas que trabalham para o Estado) têm-se mostrado notavelmente bem-sucedidos em sequestrar os governos. O exemplo do Japão é assustador: durante décadas não conseguiu remediar o seu sistema político esclerótico enquanto a sua economia definhava. A União Europeia parece estar a seguir uma trajetória similar. 
 
Esta batalha irá direita ao coração da democracia. Os políticos ocidentais adoram gabar as virtudes da democracia e urgir os outros países, do Egito ao Paquistão, a abraçá-la. Argumentam que «uma pessoa, um voto» é a cura de tudo, da pobreza ao terrorismo. Mas a prática da democracia no Ocidente está a divergir cada vez mais do ideal, com o Congresso do Estados Unidos poluído pelo dinheiro e pelo facciosismo, os parlamentos europeus afligidos pela deriva e o público em geral crescentemente descontente. A verdade pouco edificante é que a democracia ocidental se tornou bastante flácida e estafada quando se dedicava principalmente a dar coisas. Os grupos de interesses (incluindo muitas pessoas que trabalham para o Estado) têm-se mostrado notavelmente bem-sucedidos em sequestrar os governos. O exemplo do Japão é assustador: durante décadas não conseguiu remediar o seu sistema político esclerótico enquanto a sua economia definhava. A União Europeia parece estar a seguir uma trajetória similar.
A Ásia de orientação chinesa oferece um novo modelo de governo que põe em causa dois dos valores mais caros ao Ocidente: o sufrágio universal e a generosidade de cima para baixo (top down).
Se a falência é o primeiro incentivo da mudança no Ocidente, a concorrência é o segundo. Por muitas frustrações que o governo lhe faça sentir, o mundo emergente está a começar a produzir algumas ideias chamativas, erodindo de caminho a vantagem competitiva do Ocidente. Para quem tenta discernir o futuro dos cuidados de saúde, a tentativa da Índia para aplicar as técnicas da produção em série aos hospitais é parte da resposta, tal como o sistema brasileiro de transferências condicionais de dinheiro é parte do futuro da assistência social. Mas a questão vai mais fundo do que isso. A Ásia de orientação chinesa oferece um novo modelo de governo que põe em causa dois dos valores mais caros ao Ocidente: o sufrágio universal e a generosidade de cima para baixo (top down). Esta «alternativa asiática» é uma estranha mistura de autoritarismo e Estado pequeno, cujo melhor símbolo é Lee Kuan Yew, que há muito governa Singapura. Tem sido um severo crítico da democracia desenfreada do Ocidente, mas também do seu Estado-providência, que compara com um buffet em que se pode comer tudo o que se quiser: coisas que deviam ter visado os pobres, tais como propinas universitárias gratuitas e cuidados de saúde gratuitos para os mais velhos, tornaram-se direitos da classe média, empolados e insustentáveis. E a China está a tentar seguir o exemplo de Singapura em vez do do Ocidente, tanto no que respeita ao Estado social como no referente à democracia. Nos últimos dois anos alargou a cobertura das pensões a mais 240 milhões de pessoas do campo, bastantes mais do que o número de pessoas cobertas pelo sistema de pensões públicas da América, mas também quer claramente evitar os excessos americanos.

Tal como nas revoluções anteriores, a ameaça é clara: bancarrota, extremismo, deriva. Mas também é clara a oportunidade: a possibilidade de modernizar uma instituição que carregámos com um excesso de responsabilidades. 
 
É fácil encontrar falhas no modelo asiático – e neste livro referimos muitas delas. Singapura é muito pequena. A eficiência governamental da China desconjunta-se ao nível local. Até agora o mundo emergente não tem aproveitado a oportunidade de dar saltos em frente que a tecnologia lhe tem oferecido. O Brasil encaminha-se para uma crise das pensões ao lado da qual até as da Grécia e de Detroit serão uma brincadeira de crianças. A Índia poderá ter uns quantos dos mais inovadores hospitais do mundo, mas tem algumas das piores estradas e alguns dos políticos mais preguiçosos. Mas não nos deixemos enganar e ser levados a pensar que o mundo emergente está muito atrás de nós. Os burocratas da CELAP têm razão: os dias em que o Ocidente tinha o monopólio do governo inteligente passaram há muito.

Isto aponta para a terceira força: a oportunidade de praticar um «melhor governo». A crise do Estado ocidental e a expansão do Estado emergente estão ambas a chegar a um momento auspicioso: as novas tecnologias oferecem uma hipótese de melhorar dramaticamente a governação, mas também obrigam a colocar velhas questões, como a mais básica de todas: «Para que serve o Estado?» Tal como nas revoluções anteriores, a ameaça é clara: bancarrota, extremismo, deriva. Mas também é clara a oportunidade: a possibilidade de modernizar uma instituição que carregámos com um excesso de responsabilidades.
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Fonte: Site de Portugal: O observador, 28/04/2015

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