O paradoxo é que Günter Grass encarnou o combate pela memória dos crimes nazis, mas mentiu durante 60 anos.
Foi um alemão do seu tempo. O passado não
cessa de atormentar e a memória nunca chega a ser apaziguada. Não se
trata de confundir o homem e a obra mas de sublinhar que ambos são
atravessados pela teia de tensões da tragédia do nazismo. Adolescente
fascinado pela propaganda hitleriana passa, depois da guerra, a ser
perseguido pelo sentimento da vergonha. Bate-se para que a Alemanha
reconheça o seu passado e rompa com a hipocrisia, a mentira e a má
consciência. O seu primeiro romance, O Tambor de Lata, chocou os
alemães ao mostrar o entusiasmo popular perante o nazismo. Como
intelectual, tornou-se na “consciência crítica” da Alemanha e figura
tutelar da esquerda. Em 1970, acompanhou Willy Brandt na dramática
cerimónia em que este se ajoelhou perante o memorial da revolta do gueto
de Varsóvia.
Depois da
reunificação de 1990, que denunciou como uma “anexação” da antiga RDA,
Grass passa a designar os alemães não apenas como culpados mas também
como vítimas. Em 2006 (na véspera da publicação da sua autobiografia, Descascando a Cebola),
provoca um choque ao revelar que combateu numa divisão das Waffen SS — a
força de elite nazi. Observou um dos seus biógrafos, o historiador
Thomas Serrier: “O paradoxo é que ele encarnou o combate para libertar a
palavra sobre o III Reich, encerrando-se ele próprio na mentira durante
60 anos. E esta contradição entre os discurso e os actos obriga a
repensar a complexidade da memória do nazismo na Alemanha.” A direita
alemã não escondeu a sua alegria ao afirmar que o Nobel da Literatura
perdia toda a autoridade moral. O semanário Der Spiegel titulou: “A
queda de um moralista.”
Ainda aqui Grass foi um homem do
seu tempo. “Toda a história da República Federal Alemã foi feita por
homens que apagaram uma parte do seu passado, que trabalharam com um
curriculum vitae incompleto ou que assumiram até uma nova identidade. A
continuidade das elites não é uma palavra vã. Chegou a haver 100 mil
alemães do Oeste a viver sob um falso nome” — escreveu o historiador
Jean-Marc Dreyfus.
A justificação
Numa entrevista de 2011 ao historiador israelita Tom Segev, disse Grass a propósito do episódio das SS: “Este debate é muito penoso para mim porque se foca em duas páginas e meia em que contei o meu serviço nas Waffen SS. O que me magoa é que haja pessoas a dizer que me alistei como voluntário. A verdade é que fui mobilizado como milhares de jovens da minha idade. (...) A revelação sobre o meu serviço nas Waffen SS é apenas um detalhe no livro e não é o mais importante.” Um detalhe? Grass faz uma confissão num ponto simbolicamente importante. Mas imediatamente o relativiza.
Justifica-se: “Globalmente, a
história central neste livro não é a minha mas diz respeito a toda a
Alemanha. Como é que um país ilustrado como a Alemanha pôde ser atraído
para o nazismo? É a questão que me obceca desde O Tambor de Lata, o meu primeiro livro.”
Porque
não falou antes? “Porque tinha vergonha. Fui um estúpido jovem nazi. Só
tive consciência disso depois da guerra e sinto vergonha por isso. Hoje
continuo a ter vergonha. (...) Que seja claro. Eu não decidi revelar um
segredo. Atingi aquele ponto em que decidi confrontar-me com o facto de
ainda muito jovem ter acreditado no nazismo. O meu livro é sobre isso.”
Seis
décadas depois do fim da II Guerra Mundial, muitos alemães ficaram
furiosos com Grass. Uns por ele ter encoberto o passado. Outros por ele o
ter revelado.
Alemanha vítima
Após a reunificação a Alemanha quer ser um “país normal”. Não se trata de apagar o passado. Poucos povos foram forçados a fazer um trabalho de memória como os alemães. Mas, para parafrasear um historiador francês, “é um passado que não passa”. Não passa, mas pode ser “corrigido”. A preocupação do segundo Grass responde a uma expectativa das novas gerações.
Não se trata de negar a culpa mas de fazer entra
na História o sofrimento dos alemães e, assim, os redimir. Declara na
mesma entrevista: “O mal e o crime não se exprimiram apenas no
Holocausto e não cessaram com o fim da guerra. Dos oito milhões de
soldados alemães capturados pelos russos, talvez dois milhões tenham
sobrevivido e os outros foram liquidados. Houve cerca de 14 milhões de
refugiados na Alemanha; metade do país passou da tirania nazi para a
tirania comunista. Não digo isto para diminuir o crime contra os judeus,
mas o Holocausto não foi o único crime. Carregamos a responsabilidade
pelos crimes nazis. Mas esses crimes resultaram em terríveis desastres
para os alemães que, por sua vez, também se tornaram vítimas.”
Foi
duramente criticado por historiadores como o alemão Peter Jahn:
“Relativizar o extermínio de seis milhões de judeus comparando-o com a
fantasiosa liquidação de seis milhões de prisioneiros de guerra alemães é
algo que, do ponto de vista moral, exige uma explicação.”
Grass é uma testemunha das tragédias alemãs que, ao longo da vida e em diferentes registos, sempre tentou exorcizar.
-------------
* Redator Principal. Estava eu tranquilo na vida, já fora do jornalismo, sem nunca ter mexido
num computador, trabalhando em revistas científicas, lendo livros,
jornais e com tempo para ir ao cinema, e sou imperativamente requisitado
para dirigir “a mais perigosa” secção do PÚBLICO, o Internacional, em
rebelião contra um editor – foi o que me disseram ao entrar. Era falso,
como é típico da especulação jornalística. A equipa recebeu-me com
simpatia e rapidamente recaí no vício de que me pensava curado. Enfim:
convidado by default, tal como antes me tornara jornalista by default,
por só pensarem que sabia escrever. Caro leitor, sou o Mr. By Default.
Fonte: Site de Portugal: jornal o Público 13/04/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário