Eduardo Galeano*
Montevidéu, 03/02/2005 – Nasceu na prisão esta aventura da liberdade.
No cárcere de Sevilla, “onde todo incômodo tem seu lugar e onde todo
triste ruído habita”, foi engendrado Dom Quixote de La Mancha. O papai
estava preso por causa de dívidas. Exatamente três séculos antes, Marco
Polo havia ditado seu livro de viagens na prisão de Gênova, e seus
companheiros de cela o ouviram e, escutando-o, viajaram com ele.
Cervantes se propôs a escrever uma paródia das novelas de cavaleiros. Ninguém, ou quase ninguém, as lia. Estavam fora de moda. A zombaria foi um esforço digno de melhor causa. E, entretanto, essa inútil aventura literária resultou muito mais do que seu projeto original, viajou mais longe e mais alto e se converteu na novela mais popular de todos os tempos e de todas as línguas. Merece gratidão eterna o cavaleiro da triste figura. A dom Quixote os livres de cavalaria queimaram a cabeça, mas ele, que se perdeu por ler, salva os que o leram. Nos salva da solenidade e do aborrecimento.
Famosos estereótipos: Dom Quixote e Sancho Panza, o cavaleiro e seu escudeiro, a loucura e a cordura, o sonhador fidalgo com a cabeça nas nuvens e o camponês rústico de pés no chão. É verdade que Dom Quixote fica totalmente louco cada vez que monta Rocinante, mas quando desmonta costuma dizer frases que vêm do mais puro sentido comum, e em certas ocasiões parece que se faz de louco apenas para atender o autor e o leitor. E Sancho Panza, o grosseiro, o bruto, sabe exercer com exemplar sutileza seu governo da ilha de Barataria.
Tão frágil que parecia e foi o mais duradouro. Cada dia cavalgava com mais vontade, e não só pela planície. Tentado pelos caminhos do mundo, o personagem escapa do autor e em seus leitores se transfigura. E então faz o que não fez, e diz o que não disse. Dom Quixote jamais pronunciou a mais famosa de suas frases: “Ladram, Sancho, sinal de que cavalgamos” não figura na obra de Cervantes. Que anônimo leitor terá sido o autor?
Metido na armadura de lata, montado em seu Rocinante faminto, Dom Quixote parece destinado à derrota e ao ridículo. Este delirante se julga personagem de novelas sobre cavaleiros e acredita que estas são livros de história. Entretanto, nem sempre cai estatelado em seus lances impossíveis e às vezes até aplica honrosas surras nos inimigos que enfrenta ou inventa. E, ridículo é, que cabe dúvida, mas entranhadamente ridículo. Acredita o menino que uma vassoura é um cavalo, enquanto a brincadeira dura, e enquanto dura a leitura dos leitores acompanhamos e compartilhamos os andares extravagantes de Dom Quixote.
Rimos dele sim, mas muito mais, rimos com ele.
“Não leve a sério nada que o faça rir”, me aconselhou certa vez um amigo brasileiro. E o ditado popular leva a sério os delírios de Dom Quixote e expressa a dimensão heróica que as pessoas dão a este anti-herói. Quixotada é, segundo o dicionário, “a ação própria de um Quixote”, e Quixote é aquele que “antepõe seus ideais à sua conveniência e age desinteressada e comprometidamente em defesa de causas que considera justas, sem consegui-lo”.
Cervantes por duas vezes pediu emprego na América, e por duas vezes não foi atendido. Algumas versões dizem que era duvidosa sua limpeza de sangue. Os estatutos proibiam viajar às colônias americanas quem tivesse em suas veias glóbulos judeus, muçulmanos ou heréticos, que se transmitiam durante, pelo menos, sete gerações. Talvez a suspeita de algum avô ou bisavô que fosse judeu convertido explica a resposta oficial aos pedidos de Cervantes: “Procure por aqui em que trabalhar”. Ele não pôde vir à América. Mas seu filho, Dom Quixote, sim. E a América lhe foi o melhor de tudo.
Em 1965, Che Guevara escreveu a última carta aos seus pais. Para dizer-lhes adeus, não citou Marx. Escreveu: “Outra vez sinto sob meus calcanhares as costelas de Rocinante. Volto à estrada com minha adarga no braço”.
Em seus infortúnios, evocava Dom Quixote a idade dourada, quando tudo era comum e não havia teu nem meu. Depois, dizia, haviam começado os abusos, e por isso foi necessário que os cavaleiros andantes saíssem pelos caminhos, para defender donzelas, amparar as viúvas e socorrer os órfãos e os necessitados.
O poeta Leon Felipe acreditava que os olhos e a consciência de Dom Quixote toma o andante ladrão por um cavaleiro cortês e hospitaleiro, as prostitutas descaradas por donzelas formosíssimas, o bar por um albergue de decoro, o pão preto por pão candeal e o assobio do castrador por uma música acolhedora, diz que no mundo não deve haver nem homens ladrões, nem amor mercenário, nem comida escassa, nem abrigo escuro, nem música horrível”.
Alguns anos antes de Cervantes inventar seu febril justiceiro, Tomás Moro havia contado a utopia. Em seu livro Utopia, u-topia, significava no-lugar. Mas talvez esse reino da fantasia encontre lugar nos olhos que o adivinham, e neles encarne. Bem dizia George Bernard Shaw que há os que observam a realidade tal e qual ela é e se perguntam por que, e há aqueles que imaginam a realidade como jamais foi e se perguntam por que não.
É certo, e os cegos vêem isso, que cada pessoa contém outras pessoas possíveis, e cada mundo contém seu contramundo. Essa promessa escondida, o mundo que necessitamos, não é menos real do que o mundo que conhecemos e padecemos.
Bem o fazem os aporreados, batedores que ainda cometem a loucura de voltar à estrada muitas vezes, porque continuam acreditando que o caminho é um desafio que espera e porque acreditam que desfazer agravos e corrigir problemas é um disparate que vale a pena.
Ajuda o impossível que o possível terá lugar. Para dizê-lo em termos da farmácia de Dom Quixote: tão mágico é este bálsamo de Ferrabrás que às vezes nos salva da maldição do fatalismo e da peste da desesperança. Este não é no final das contas o grande paradoxo da viagem humana no mundo? Navega o navegante, embora saiba que jamais tocará as estrelas que o guiam. (IPS/Envolverde)
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(*) Eduardo Galeano era escritor e jornalista uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina e Memórias do Fogo”.
** Este artigo faz parte da homenagem da Envolverde a esse grande homem, jornalista, escritor e pensador da América Latina, que morreu hoje (13/04/2015) aos 74 anos. Leia outros textos aqui.
Cervantes se propôs a escrever uma paródia das novelas de cavaleiros. Ninguém, ou quase ninguém, as lia. Estavam fora de moda. A zombaria foi um esforço digno de melhor causa. E, entretanto, essa inútil aventura literária resultou muito mais do que seu projeto original, viajou mais longe e mais alto e se converteu na novela mais popular de todos os tempos e de todas as línguas. Merece gratidão eterna o cavaleiro da triste figura. A dom Quixote os livres de cavalaria queimaram a cabeça, mas ele, que se perdeu por ler, salva os que o leram. Nos salva da solenidade e do aborrecimento.
Famosos estereótipos: Dom Quixote e Sancho Panza, o cavaleiro e seu escudeiro, a loucura e a cordura, o sonhador fidalgo com a cabeça nas nuvens e o camponês rústico de pés no chão. É verdade que Dom Quixote fica totalmente louco cada vez que monta Rocinante, mas quando desmonta costuma dizer frases que vêm do mais puro sentido comum, e em certas ocasiões parece que se faz de louco apenas para atender o autor e o leitor. E Sancho Panza, o grosseiro, o bruto, sabe exercer com exemplar sutileza seu governo da ilha de Barataria.
Tão frágil que parecia e foi o mais duradouro. Cada dia cavalgava com mais vontade, e não só pela planície. Tentado pelos caminhos do mundo, o personagem escapa do autor e em seus leitores se transfigura. E então faz o que não fez, e diz o que não disse. Dom Quixote jamais pronunciou a mais famosa de suas frases: “Ladram, Sancho, sinal de que cavalgamos” não figura na obra de Cervantes. Que anônimo leitor terá sido o autor?
Metido na armadura de lata, montado em seu Rocinante faminto, Dom Quixote parece destinado à derrota e ao ridículo. Este delirante se julga personagem de novelas sobre cavaleiros e acredita que estas são livros de história. Entretanto, nem sempre cai estatelado em seus lances impossíveis e às vezes até aplica honrosas surras nos inimigos que enfrenta ou inventa. E, ridículo é, que cabe dúvida, mas entranhadamente ridículo. Acredita o menino que uma vassoura é um cavalo, enquanto a brincadeira dura, e enquanto dura a leitura dos leitores acompanhamos e compartilhamos os andares extravagantes de Dom Quixote.
Rimos dele sim, mas muito mais, rimos com ele.
“Não leve a sério nada que o faça rir”, me aconselhou certa vez um amigo brasileiro. E o ditado popular leva a sério os delírios de Dom Quixote e expressa a dimensão heróica que as pessoas dão a este anti-herói. Quixotada é, segundo o dicionário, “a ação própria de um Quixote”, e Quixote é aquele que “antepõe seus ideais à sua conveniência e age desinteressada e comprometidamente em defesa de causas que considera justas, sem consegui-lo”.
Cervantes por duas vezes pediu emprego na América, e por duas vezes não foi atendido. Algumas versões dizem que era duvidosa sua limpeza de sangue. Os estatutos proibiam viajar às colônias americanas quem tivesse em suas veias glóbulos judeus, muçulmanos ou heréticos, que se transmitiam durante, pelo menos, sete gerações. Talvez a suspeita de algum avô ou bisavô que fosse judeu convertido explica a resposta oficial aos pedidos de Cervantes: “Procure por aqui em que trabalhar”. Ele não pôde vir à América. Mas seu filho, Dom Quixote, sim. E a América lhe foi o melhor de tudo.
Em 1965, Che Guevara escreveu a última carta aos seus pais. Para dizer-lhes adeus, não citou Marx. Escreveu: “Outra vez sinto sob meus calcanhares as costelas de Rocinante. Volto à estrada com minha adarga no braço”.
Em seus infortúnios, evocava Dom Quixote a idade dourada, quando tudo era comum e não havia teu nem meu. Depois, dizia, haviam começado os abusos, e por isso foi necessário que os cavaleiros andantes saíssem pelos caminhos, para defender donzelas, amparar as viúvas e socorrer os órfãos e os necessitados.
O poeta Leon Felipe acreditava que os olhos e a consciência de Dom Quixote toma o andante ladrão por um cavaleiro cortês e hospitaleiro, as prostitutas descaradas por donzelas formosíssimas, o bar por um albergue de decoro, o pão preto por pão candeal e o assobio do castrador por uma música acolhedora, diz que no mundo não deve haver nem homens ladrões, nem amor mercenário, nem comida escassa, nem abrigo escuro, nem música horrível”.
Alguns anos antes de Cervantes inventar seu febril justiceiro, Tomás Moro havia contado a utopia. Em seu livro Utopia, u-topia, significava no-lugar. Mas talvez esse reino da fantasia encontre lugar nos olhos que o adivinham, e neles encarne. Bem dizia George Bernard Shaw que há os que observam a realidade tal e qual ela é e se perguntam por que, e há aqueles que imaginam a realidade como jamais foi e se perguntam por que não.
É certo, e os cegos vêem isso, que cada pessoa contém outras pessoas possíveis, e cada mundo contém seu contramundo. Essa promessa escondida, o mundo que necessitamos, não é menos real do que o mundo que conhecemos e padecemos.
Bem o fazem os aporreados, batedores que ainda cometem a loucura de voltar à estrada muitas vezes, porque continuam acreditando que o caminho é um desafio que espera e porque acreditam que desfazer agravos e corrigir problemas é um disparate que vale a pena.
Ajuda o impossível que o possível terá lugar. Para dizê-lo em termos da farmácia de Dom Quixote: tão mágico é este bálsamo de Ferrabrás que às vezes nos salva da maldição do fatalismo e da peste da desesperança. Este não é no final das contas o grande paradoxo da viagem humana no mundo? Navega o navegante, embora saiba que jamais tocará as estrelas que o guiam. (IPS/Envolverde)
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(*) Eduardo Galeano era escritor e jornalista uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina e Memórias do Fogo”.
** Este artigo faz parte da homenagem da Envolverde a esse grande homem, jornalista, escritor e pensador da América Latina, que morreu hoje (13/04/2015) aos 74 anos. Leia outros textos aqui.
(IPS)
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil 11/04/2014
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