Menos de um mês antes de morrer, o Nobel alemão deu uma entrevista ao
El País. Foi a "dor" de uma história de guerras que motivou a sua obra.
Inacabada, tal como a guerra. E a terceira está aí, disse.
O jornal espanhol El País publica esta terça-feira a última grande entrevista
a Günter Grass, o escritor, poeta, escultor, desenhador e artista que
desdobrou a sua obra nas memórias difíceis e envergonhadas de um século
de guerras. Morreu ontem (13/04/2015),
aos 87 anos, na cidade alemã de Lübeck, onde vivia. Mas não sem antes
deixar escrita, por uma caneta que não a sua, a sua visão aterradora do
que é e do que ainda pode vir a ser o século XXI, não melhor e não menos
bélico do que o anterior. Para o Nobel da Literatura, a questão não é
tanto saber se estamos perante uma nova guerra, porque isso é evidente,
mas sim quando começou. “Se repetirmos os mesmos erros do passado,
podemos vir a entrar numa III Guerra Mundial quase sem darmos por isso”,
vaticinou
“Fomos marcados individualmente pela II Guerra Mundial.
Mas o mais terrível são os efeitos a longo prazo, que seguem, seguem
e continuam a notar-se. Por isso é que a minha geração está mais atenta
aos problemas atuais, já que à nossa volta tudo diz que já entramos na III Guerra Mundial, só não conseguimos dizer quando começou”,
disse o escritor ao jornalista Juan Cruz, numa conversa sobre política,
poesia, e o ponto onde as duas se cruzam, que teve lugar no dia 21 de
março.
A verdade é que, nos dias de hoje, “há guerra por toda a parte:
por um lado temos a Ucrânia, cuja situação não melhora em nada, em
Israel e na Palestina a situação está cada vez pior; há ainda o estado
em que os americanos deixaram o Iraque; as atrocidades que o exército do
Estado Islâmico e o problema da Síria, onde morrem milhares de pessoas e
o drama já quase desapareceu dos jornais…”. O receio de Günter Grass
era de que, perante o cenário já tão preocupante, viéssemos a “cometer
os mesmos erros do passado e, quase sem darmos conta, entrássemos numa
nova guerra mundial como se estivéssemos sonâmbulos”.
Para
inverter o rumo já tão avançado das coisas, o escritor alemão dizia que
a única forma era através da recordação sistemática da história. E
arriscava uma versão ultra simplificada, onde identificava um ponto de
partida para a origem das guerras dos dias de hoje:
“Depois da I Guerra Mundial cai o império Otomano, dividem-se os Balcãs e o petróleo torna-se num elemento muito importante da história. O Iraque foi uma invenção dos poderes coloniais vitoriosos dessa guerra. A Palestina era um protetorado inglês, a Síria era um protetorado francês. E o Holocausto desencadeou o problema na Palestina. No fundo tratou-se tudo de anexações territoriais e, até hoje, a causa de todo o problema tem sido a atitude dos Estados que saíram vitoriosos da I Guerra Mundial”.
Questionado sobre se tinha esperança
de que o Homem do século XXI fosse melhor do que o do século XX, Günter
Grass manteve-se pessimista perante o futuro, apesar de negar tratar-se
de pessimismo mas sim de conhecimento empírico. “Baseio-me na
experiência e nos erros que temos cometido, e isso é algo que se pode
comprovar historicamente, e isso leva-me a ter dúvidas de que o Homem vá melhorar e ser capaz de aprender com os erros do passado”, dizia.
Um deles, um dos maiores, foi o da Alemanha. “Porque o Holocausto e o genocídio, esses crimes horríveis, constituem uma história que não tem fim”,
dizia na altura. Em março de 2014, no conforto da sua casa em Lübeck,
junto da esposa e dos seus livros, o escritor alemão pegou ainda na
Grécia para a apontar como a mais recente vítima da Alemanha. E, de
certa forma, a prova de que a história se repete e as chances de a
Humanidade aprender de facto com os seus erros são diminutas.
“Agora
vemos o caso da Grécia, e deparamo-nos outra vez com o problema dos
horrores causados pelos soldados alemães durante a ocupação…essa
história persegue-nos e persegue-nos…”. No fundo, foi precisamente essa
“dor” da história sem fim que motivou o seu trabalho.
No final, resumiu: “A dor é a principal força que me faz trabalhar e criar”.
---------------Reportagem
Foto: AFP/Getty Images
Fonte: Site Portugal Observador, 14/04/2015
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