Paulo Rosenbaum*
Alguns dias são mais díspares que outros. Hoje é um deles. Reparem
nos poetas alienados, nas alegrias infundadas, nos sonhos para um
término.
Nossa única constância vive dessas
travessias inconclusas, na carne esquecida, nas mortes mitigadas, na
perfeição das cascas de ovos, num mundo sem rugidos nem gemidos.
Abram alas: precisamos de espaço,
ideologias e seus mentores que esperem, enfim é chegada nossa vez de
passar. Merecemos dizer o que queremos, exigir o que desejamos, mostrar
ao que viemos. A passagem pode não ter beira nem margem, pode não
acrescentar beleza nem coragem. A autenticidade é insubstituível. Tudo
passa, limbo e muro, enquanto a vida insiste: futuro.
Se sobrou qualquer significado para as
tradições? Recobrar sentidos que pedem expressão, presença de símbolos
que isolam certezas. Hoje, dia ideal para cabeças feitas, desfeitas.
Mesas postas na nova ordem. Sequencias sem ritual, formas sem apego,
ritmos sem hiatos. Religiões e não religiões. As idiossincrasias são
sagradas, são elas que podem nos restituir a união.
Na paz permanentemente adiada, acordos
podem ser pesadelos. E desacordos são lá uma alternativa? O oriente é
médio. Hoje é o dia no qual as regras foram abolidas, réguas
desprezadas, tréguas assimiladas. Nenhuma paz será derradeira mesmo que
todos os sonhos sejam roubados por guerras rejeitadas.
O dia cuja passagem tornou-se permanente.
No qual presidentes falam baixo, juízes benévolos, juízos perfeitos. O
poder humilde. Na travessia, a infância dos homens transformou nossas
retinas para sempre. O fosco do céu apagou-se. Impeliu brilho aos
confins. Para que o Cosmos ajeitasse as coisas eis o dia da leniência
abstrata. Da pax correlata. Da vigência temporária. Da
flexibilidade originária. Coacervados mudos e algas falantes, evolução
errante. Campos que alimentam as raças. Animais mutantes e homens
persistentes.
Hoje, dia das faunas mistas. Das
concretudes explicitas. Das mulheres sem dono. Dos radicais enjaulados.
Da democracia para espíritos ativos. Da incontinência dos libertários.
Das conchas radiofônicas. Da velhice jovial. De palcos cordiais. Da
derrota do inevitável.
Hoje, a tragédia foi abolida. Desvelada a
calçada até a utopia, suspendam toda política. A razão da liberdade
invadiu toda análise. Eis o dia em que a casa arderá com convívios. A
noite da refeição direta. Diante da uva transformadora. O dia da
interlocução como único valor. O momento da síntese Eterna.
Não importa como acordaremos: este é o dia.
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* Crônicas. Política e derivações.
Fonte: Estadão online, 05/04/2015
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