terça-feira, 21 de abril de 2015

O Evangelho segundo Hitler, segundo Marcos Peres

A capa portuguesa foi desenhada por Alex Gozblau

Assume-se obcecado por Jorge Luís Borges e foi ao ler um conto do argentino que nasceu "O Evangelho Segundo Hitler". Polémica à parte, Marcos Peres quer mostrar que teorias da conspiração há muitas.

E se Judas tivesse denunciado Jesus Cristo aos romanos não por maldade, mas por um bem maior que o mundo desconhece? Em O Evangelho Segundo Hitler, primeiro livro de ficção do brasileiro Marcos Peres, o ditador mais odiado da história contemporânea desempenha um papel semelhante ao de uma versão de Judas criada pelo argentino Jorge Luís Borges: ele não é a fonte de todo o mal, mas sim um homem que sacrifica o seu nome e reputação por um bem maior. Sabe que será odiado para todo o sempre, mas acredita que todo o mal que vai fazer é um mal necessário. Depois do sucesso alcançado no Brasil, O Evangelho Segundo Hitler chega agora a Portugal, pela editora Nova Delphi.

Marcos Peres tinha por hábito escrever e, no final, esconder o manuscrito na gaveta. Nunca imaginou que o primeiro livro que iria publicar teria uma capa vermelha com uma suástica, o nome de Hitler em destaque e religião à mistura. Assumidamente tímido, o escritor que também trabalha no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná jura ao Observador, durante a apresentação do livro no Festival Literário da Madeira, que não quis causar polémica.

Mas, antes da polémica, a inspiração. Jorge Luís Borges (1899-1986) é o escritor argentino pelo qual Marcos Peres, de 30 anos, se confessa obcecado. Por isso, quis homenageá-lo aqui com uma “interpretação grotesca. Até se converter numa fundamentação do nazismo”, explica. A ideia para O Evangelho Segundo Hitler nasceu depois de uma leitura do conto Três Versões de Judas, onde Jorge Luís Borges escreve, precisamente, sobre três versões diferentes de Judas. “Uma das versões é diferente do que conhecemos na Bíblia: esse Judas fez um ato maligno [denunciar Jesus, o que contribuiu para a sua morte na cruz], mas é um mal necessário para o bem”, conta Marcos Peres.

Segundo essa interpretação, só haveria bem depois desse ato, tão maligno quanto altruísta. “Na brincadeira do Borges, Jesus renunciou à própria vida. Mas o Judas fez algo muito maior, renunciou à memória, porque ficou queimado na história mundial. Achei muito herético, muito pesado.” Marcos Peres pegou na ideia, pensou alongar as três versões de Judas e escrever um romance inteiro. “Eu queria que Borges fosse meu personagem, porque eu conhecia-o muito bem.” Daí que a personagem principal seja homónima do escritor. “Tinha o Borges, tinha o Judas e precisava de alguém associado ao mal”, explica. Hitler foi o escolhido por ser contemporâneo do escritor argentino. A certa altura da história, o protagonista é inserido no círculo nazi e inspira a ideia de que o nazismo é um mal necessário para um bem maior, mas secreto. Ou seja, Hitler acaba por ser Judas, ao sacrificar-se perante a história da humanidade como a encarnação do mal. Nos livros de história, nunca ninguém falará bem de Hitler, tal como ninguém elogia Judas.

marcos peres
©Vitorino Coragem / A Nu e Cru

Qualquer semelhança nas páginas iniciais com o estilo ficcional de Dan Brown não é pura coincidência. À época, o autor de O Código Da Vinci, cuja história se centra na família secreta de Jesus, dominava os tops mundiais. No entanto, apesar de tocar no tema da religião, tal como O Evangelho Segundo Hitler, são ficções diferentes. “Na verdade, fiz uma crítica às histórias do Dan Brown. O modelo que utilizei para escrever o livro é de Umberto Eco”, sublinha.

No livro que o escritor e filósofo italiano lançou em 2010, O Cemitério de Praga, há uma teoria conspiratória, onde vários factos são ligados à conspiração. “Ele coloca tudo num caldeirão e, embora eles todos se conectem, no final ele diz: eu fiz uma teoria conspiratória, ela aparentemente faz sentido, mas não quero que a comprem. Olhem, sim, para tudo com olhos críticos. Já no que eu escrevi, os factos são lógicos, mas são irreais. É quase como o Dan Brown, só que num setor oposto, porque Dan Brown coloca uma teoria conspiratória fácil e no final vende essa teoria conspiratória. Esse é o segredo do sucesso dele”, diz Marcos Peres, que confessa não ser fã do estilo.
Católico e proveniente de uma família católica, o livro começou por ser uma brincadeira e Marcos Peres escreveu sem pudor, convencido de que o manuscrito iria parar à gaveta lá de casa, como os anteriores. A escrita deste funcionário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná era “quase secreta, um ato de confessar para o papel”, conta. Mas o livro acabou por chegar a uma editora. “Mandei para dois amigos e eles pediram para enviar para um concurso de inéditos, em que você manda com um pseudónimo. Sabia que o livro não teria chance, nem pela capa nem pelo título, e porque o prémio Sesc tem uma participação estatal.” Enviou na mesma. De resposta recebeu o prémio e ainda uma mudança muito brusca na sua vida. “De um dia para o outro tive de me declarar escritor, e com uma capa muito polémica“, recorda.

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A capa original, publicada no Brasil pela Record. ©D.R.

Quando o livro se tornou público, Marcos tentou justificar-se, com medo de represálias para com a família — “Tive medo que falassem para a minha avó: ‘Olhe, seu neto escreveu um Evangelho de Hitler'”. Defende que na literatura não se pode ter medo e pensar que alguém não vai gostar, ou que vai sentir medo. “Naquele momento eu tento centrar-me no que é que o escrito pede. Ele tem voz própria”, diz. Associar Borges a Hitler também não ajudou a diminuir a polémica. Perguntavam-lhe se era nazi e se era ateu. “A capa vermelha com a suástica foi um problema, nunca tinha imaginado que o meu primeiro livro seria associado a uma suástica, então havia muita gente que não sabia se era ficção ou não.”

Por cá, a capa vermelho sangue da edição brasileira foi substituída por uma ilustração do perfil de Hitler. Não para atenuar o choque que pode causar a terceiros, garante Marcos Peres. “Foi a editora que propôs uma nova arte”, esclarece. “Eu conheci o ilustrador da capa, o Alex Gozblau, e ele é fantástico, fez uma capa lindíssima com um Borges grafitado, então ele torna-se um Hitler de uma forma um pouco grotesca.”

Pode a própria religião ser uma teoria da conspiração? “Sim”, responde sem conservadorismo o autor católico. “A teoria da conspiração existe em muitos aspetos da vida, da religião à crença popular, então eu acho que em muitos pontos temos de aprender a olhar com um olhar mais crítico. Eu acho que a religião é um desses aspetos.”

Atualmente, Marcos Peres ainda trabalha no Tribunal de Justiça. Conciliar esse trabalho com a profissão de literatura não tem sido fácil e o objetivo passa por ser escritor a tempo inteiro. A timidez começa a ficar de lado e um segundo livro vai ser lançado no Brasil, em junho. Chama-se Que fim levou Juliana Klein e é uma historia policial passada no Brasil. “Bem menos polémica”, promete.
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Reportagem por  Sara Otto Coelho
Fonte: O Observador, acesso 21/04/2015

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