Luiz Felipe Pondé*
Em nosso mundo, não há natureza das coisas, entende-se
que tudo seja uma construção social.
Delírio puro. Prefiro os antigos, justamente por perceberem que são os limites que nos humanizam, e não o desejo sem limites.
Os inteligentinhos dirão coisas como "conservador!". Mas a vida segue, o
mundo se acabará um dia, e os inteligentinhos dirão, em seu último
grito de agonia, "opressão!".
Mas não quero falar de política, que trato apenas como quem lida com uma ferida para que ela não se infeccione em demasia.
Quero falar de epicurismo. Não a ideia banal de epicurista como alguém
que vai muito ao shopping ou come todas as gostosas do mundo (o sonho de
qualquer cara normal). Falo do epicurismo antigo, do filósofo grego
Epicuro (341 a.C. - 270 a.C.). De Lucrécio (cerca de 96 a.C. - cerca de
55 a.C.), filósofo latino, autor do poema "Da Natureza das Coisas".
Para ambos, a natureza da realidade é ser contingente. Isso quer dizer
que "o fundo da realidade" é o acaso (que é a mesma coisa que
contingência em filosofia).
Esse acaso é o movimento livre e sem ordem dos átomos. Portanto, tanto
Epicuro quanto Lucrécio eram atomistas, o que é a mesma coisa de dizer
que eram materialistas. A alma, esse "ar", se perde no momento da morte.
Como dizia Epicuro, quando eu estou, a morte não está, quando ela está,
não estou. Ou seja: não há o que temer na morte porque ela é uma
libertação da eterna contingência que move um destino cego. E a melhor
coisa nisso é que a "consciência" desaparece.
Essa ideia me parece insuperável como liberdade. Ter a pedra como destino é meu sonho de eternidade.
Sendo assim, morreu, acabou. Muita gente teme uma possibilidade como essa.
Eu tendo a achá-la sedutora principalmente quando suspeito que viver
para sempre seria como ser obrigado a beber água para sempre, mesmo
tendo passado a sede.
Vejo beleza nisso tudo. A contingência liberta, mas não no sentido
moderninho de que por isso podemos nos "inventar" ao bel prazer. Isso é
coisa de "teenager".
Mas, justamente o contrário: meu desejo também é contingente, como tudo
mais. Dar asas a ele é ter fé de que eu, diferentemente do resto do
universo, não sou também feito à semelhança do acaso.
Só os iniciantes confiam em si próprios. Meu desejo é a porta de entrada
por onde a contingência se instala do seio da minha alma.
Não, a beleza está no que os antigos epicuristas viam nessa condição:
sem deuses, sem eternidade, fruto do acaso, essa é a natureza das
coisas, ser cega.
O prazer de Epicuro era justamente o de escapar da escravidão do desejo,
não essa ideia contemporânea de que viver a realização contínua do
desejo é a felicidade.
A concepção contemporânea de felicidade é brega, coisa de gente que se emociona quando um novo shopping é aberto na cidade.
Lucrécio entendia que a cegueira da natureza é a natureza das coisas.
É dela não carregar sentido em si mesma, e por isso é tão importante:
porque me lembra continuamente que a vaidade e as expectativas, com o
tempo, se tornam um tormento.
Não é totalmente absurdo escutarmos aqui o sábio israelita, também
antigo, que escreveu o "Eclesiastes" (Velho Testamento): "vaidade, tudo é
vaidade".
A grande questão é como se sustenta uma vida feliz decorrente dessa
natureza das coisas. Podemos dizer que decorre, antes de tudo, do
"relaxamento" do desejo que a consciência da contingência traz: a
sabedoria da natureza é ela ser puro átomo e não uma lei.
Não há "missão" na vida. Viver segundo os prazeres do trabalho, da mesa e
do corpo da mulher é tudo que podemos fazer. O puro prazer de existir.
Sem excessos, do contrário, nos tornamos escravos do trabalho, da mesa e do corpo da mulher.
Não porque uma danação eterna nos espera (ninguém nos vigia), mas porque
o excesso do desejo destrói seu próprio usufruto na medida em que nos
desesperamos com a possível falta do objeto desse desejo.
Dito de forma simples: não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas
cuide bem daquelas que, por graça da contingência, vierem a sua cama.
-------------------------------
* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência.
Fonte: Folha online, 20/04/2015
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário