segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A emoção em um toque

Nicholas Bakalar*


Pesquisadores encontraram indícios de que um toque pode valer mil palavras e que o contato físico fugaz é capaz de exprimir emoções específicas —de maneira silenciosa, sutil e inconfundível.
Cientistas liderados por Matthew J. Hertenstein, professor de psicologia na Universidade DePauw, em Indiana (EUA), recrutaram 240 estudantes para tocar ou serem tocados por um parceiro desconhecido, na tentativa de transmitir uma emoção específica: ira, medo, felicidade, tristeza, repulsa, amor, gratidão ou empatia.
A pessoa tocada estava vendada e desconhecia o sexo de quem a tocava. Esta era instruída a tentar transmitir 1 das 8 emoções, e os dois participantes se mantinham em silêncio. Quarenta e quatro mulheres e 31 homens tocaram uma parceira, enquanto 25 homens e 24 mulheres tocaram um parceiro. Em seguida, cada pessoa tocada recebeu uma lista com as emoções e foi instruída a identificar a transmitida.
A apreensão correta das emoções que se buscou transmitir variou de 50% a 78% —índice muito superior aos 11% previstos por acaso e comparável aos índices verificados em estudos de emoções verbais e faciais.
A maioria dos participantes escolheu determinados tipos de toque para transmitir emoções específicas. Em vários casos, as pessoas expressaram medo segurando e apertando a outra pessoa, sem movê-la. Para transmitir empatia era preciso segurar, esfregar e dar tapinhas.
Homens e mulheres se mostraram igualmente hábeis em interpretar os toques, mas empregaram ações diferentes para transmitir emoções. Os homens raramente tocaram os rostos das outras pessoas. Quando o fizeram, foi apenas para expressar raiva ou repulsa em relação a mulheres e empatia com outros homens. As mulheres, por outro lado, tocavam os rostos das outras pessoas com frequência para exprimir raiva, tristeza e repulsa para pessoas de ambos os sexos e para transmitir medo e felicidade aos homens.
As razões evolutivas desse sistema de comunicação são desconhecidas, mas os autores do estudo sugerem que ele pode ter as mesmas origens que os rituais de toques sociais de outros primatas.
“A maioria dos toques durou apenas cinco segundos. Mas, nesses momentos fugazes, somos capazes de transmitir emoções distintas, do mesmo modo como podemos fazer com nossos rostos. Trata-se de um sistema sofisticado de sinalização que desconhecíamos até agora”, declarou Hertenstein.
*Folha de São Paulo - The New York Times - 31/08/2009

Deixar o ódio para trás

Pamela Bloom*

O recente turbilhão de emoções desencadeado pela libertação pela Escócia do condenado pelo atentado de Lockerbie lançou luz sobre um problema psicológico comum: como superar a tristeza e a raiva?
As perdas são inevitáveis na vida. Mas, quando a plataforma em que acontecem é muito grande —um ataque terrorista como o de 11 de Setembro, uma traição financeira como a de Bernie Madoff, o colapso da justiça social, como no Iraque, ou simplesmente um divórcio litigioso—, a ira e o ressentimento que sobram podem ser mais nocivos que o próprio fato.
Existe alguma maneira de nos recuperarmos de traumas extremos, de forma a deixar a dor para trás e reiniciar nossas vidas? Muitas das histórias que reuni no livro “Buddhist Acts of Compassion” (Atos de compaixão budistas) apontam para uma mudança de perspectiva que pode transformar a maneira como lidamos com questões como essas.
Existe no budismo um slogan que faz referência direta a esses momentos: “Assim como eu”. Assim como eu, outros sofrem. Assim como eu, outros desejam os fundamentos da felicidade.É claro que é dolorosamente difícil para uma mãe enlutada enxergar qualquer semelhança entre ela mesma e o assassino de seu filho. Mas o dalai-lama exilado, ele próprio vítima de perseguição, não fez tais distinções durante sua primeira visita a Auschwitz.
Sem palavras diante das pilhas de sapatos gastos deixados pelas vítimas do campo de extermínio, escreveu: “Parei e orei —profundamente comovido tanto pelas vítimas quanto pelos responsáveis por essa calamidade... E, ciente de que, assim como todos nós possuímos a capacidade de agir com altruísmo, movidos pela preocupação com o bem-estar dos outros, todos nós possuímos o potencial de sermos assassinos e torturadores, jurei fazer tudo o que eu pudesse para assegurar que nada como isso jamais se repita”.
Aproximar-se de um sentimento como esse, próprio de um santo, pode parecer fora de nosso alcance, mas os ensinamentos do budismo discordam. Quando abrimos mão de nosso senso pessoal do eu —aquele que afirma “eu estou certo, você está errado”—, o que surge naturalmente no lugar é um coração aberto que não exclui ninguém, nem mesmo aquele que nos persegue. Os budistas dizem que esse coração é que é nossa verdadeira natureza, e não aquele que segrega ou busca a vingança.
Para alcançar esse estado de espírito, pode-se começar pelo pequeno. Uma oração para principiantes no budismo nos encoraja a desejar a felicidade a todos os seres, não apenas àqueles de quem gostamos. Se isso parece impossível, comece simplesmente estendendo sua boa vontade a você mesmo. Um canto budista secular diz: “Que eu seja feliz. Que eu tenha paz. Que eu fique livre de sofrimento”. Com o tempo, você estende esse desejo às pessoas que ama e, finalmente, às que lhe são insuportáveis. Imagine rivais seculares fazendo isso e rompendo o ciclo de vingança.

Ensinamentos budistas pregam compaixão

Quando o sofrimento parece insuportável, o budismo sugere que você dedique sua dor, para que todos os que estiverem sofrendo da mesma maneira possam encontrar alívio. É uma forma de meditação que tem ajudado um amigo meu a enfrentar a Aids. E pode ajudar vítimas do terrorismo a encontrarem um vínculo comum, que é a cura.
Se você estiver pensando que essa abordagem não passa de um jogo mental, repense. São essas mesmas práticas que vêm ajudando monges e monjas budistas tibetanos a suportar anos de tortura.
Como disse certa vez o lama Zopa Rinpoche, mestre de meditação tibetana: “Enquanto você não mudar sua mente, sempre haverá um inimigo para lhe fazer mal”.

*Pamela Bloom é autora de “The Power of Compassion: Stories that Touch the Heart, Heal the Soul and Change the World”, a ser publicado em 2010. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/newyorktimes/ny3108200904.htm -Folha de São Paulo The New York Times -31/08/2009

Um novo olhar sobre o Brasil

Leonardo Boff*
Erram os que pensam que a saída da senadora Marina Silva do PT obedece a propósitos oportunistas de uma eventual candidatura à Presidência da República. Marina Silva saiu porque possuía um outro olhar sobre o Brasil, sobre o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo, que identifica desenvolvimento com crescimento meramente material e com maior capacidade de consumo. O novo olhar, adequado à crescente consciência da humanidade e à altura da crise atual, exige uma equação diferente entre ecologia e economia, uma redefinição de nossa presença no planeta e um cuidado consciente sobre o nosso futuro comum. Para estas coisas a direção atual do PT é cega. Não apenas não vê. É que não tem olhos. O que é pior.

Para aprofundar esta questão, valho-me de uma correspondência com o sociólogo de Juiz de Fora e Belo Horizonte, Pedro Ribeiro de Oliveira, um intelectual dos mais lúcidos que articulam a academia com as lutas populares e as Cebs e que acaba de organizar um brilhante livro sobre A consciência planetária e a religião (Paulinas, 2009) Escreve ele:

“Efetivamente, estamos numa encruzilhada histórica. A candidatura da Marina não faz mais do que deixá-la evidente. O sistema produtivista-consumista de mercado teima em sobreviver, alegando que somente ele é capaz de resolver o problema da fome e da miséria – quando, na verdade, é seu causador. Acontece que ele se impôs desde o século 16 como aquilo que a Humanidade produziu de melhor, ajudado pelo iluminismo e a revolução cultural do século 19, que nos convenceram a todos da validade de seu dogma fundante: somos vocacionados para o progresso sem fim que a ciência, a técnica e o mercado proporcionam. Essa inércia ideológica que continua movendo o mundo se cruza, hoje, com um outro caminho, que é o da consciência planetária. É ainda uma trilha, mas uma trilha que vai em outra direção”.

“Muitos pensadores e analistas descobriram a existência dessa trilha e chamaram a atenção do mundo para a necessidade de mudarmos a direção da nossa caminhada. Trocar o caminho do progresso sem fim, pelo caminho da harmonia planetária”.

“Esta inflexão era a voz profética de alguns. Mas agora, ela já não clama mais no deserto e sim diante de um público que aumenta a cada dia. Aquela trilha já não aparece mais apenas como um caminho exclusivo de alguns ecologistas mas como um caminho viável para toda a humanidade. Diante dela, o paradigma do progresso sem fim desnuda sua fragilidade teórica, e seu dogma antes inquestionável ameaça ruir. Nesse momento, reúnem-se todas as forças para mantê-lo de pé, menos por meio de uma argumentação consistente do que pela repetição de que 'não há alternativas' e que qualquer alternativa 'é um sonho'”.

“É aqui que situo a candidatura da Marina. É evidente que o PV é um partido que pode até ter sido fundado com boas intenções mas hoje converteu-se numa legenda de aluguel. Ninguém imagina que a Marina – na hipótese de ganhar a eleição – vá governar com base no PV. Se eventualmente ela vencer, terá que seguir o caminho de outros presidentes sul-americanos eleitos sem base partidária e recorrer aos plebiscitos e referendos populares para quebrar as amarras de um sistema que 'primeiro tomou a terra dos índios e depois escreveu o código civil', como escreveu o argentino Eduardo de la Cerna”.

“Mesmo que não ganhe, sua candidatura será um grande momento de conscientização popular sobre o destino do Brasil e do Planeta. Marina Silva dispensará os marqueteiros, e entrarão em campanha muitos seguidores de Paulo Freire”.

“Esta é a diferença da candidatura Marina. Serra, do alto da sua arrogância, estimula a candidatura Marina para derrubar Lula e manter a política de crescimento e concentração de riqueza. Lula, por sua vez, levanta a bandeira da união da esquerda contra Serra, mas também para manter uma macroeconomia que concentra riqueza, embora mitigada pelas políticas sociais”.

“Marina representa outro paradigma. Não mais a má utopia do progresso sem fim, mas a boa utopia da harmonia planetária. A nossa visão não é restrita a 2010-2014. Estamos mirando a grande crise de 2035 e buscando evitá-la enquanto é tempo ou, na pior das hipóteses, buscar alternativas ao seu enfrentamento.

É por isso, por amor a nossos filhos, netos e netas, temos que dar força à candidatura da Marina. E que Paulo Freire nos ajude a fazer dessa campanha eleitoral uma campanha de educação popular de massas”.

Digo eu com Victor Hugo: “Não há nada de mais poderoso no mundo do que uma ideia cujo tempo já chegou”.

* Leonardo Boff é teólogo, autor do livro Opção Terra. A solução da Terra não cai do céu, Record 2009.
JORNAL DO BRASIL - 30/08/2009 -
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/08/30/e300826589.asp

domingo, 30 de agosto de 2009

O senhor do anel

Moacyr Scliar*

Olhem só a notícia que apareceu, dias atrás, aqui em ZH. Na Nova Zelândia, o ambientalista Aleki Taumoepeau (o pessoal lá tem nomes complicados, mas, provavelmente, devem dizer a mesma coisa de nós) trabalhava no porto de Wellington quando sua aliança de casado caiu no mar, que ali tem três metros de profundidade. Aleki marcou o lugar com uma âncora e prometeu à mulher que encontraria a aliança, o que de fato aconteceu três meses depois, e valeu-lhe, entre os amigos, o apelido de Senhor do Anel, uma referência ao livro e ao filme O Senhor dos Anéis.
Isso nos faz pensar no simbolismo do anel de casamento. É uma coisa que vem de longe, dos antigos hindus e dos antigos gregos. Os romanos introduziram o hábito de colocá-lo no anular do qual, acreditava-se, partia uma veia (veia d’amore, em italiano) que estaria diretamente ligada ao coração.
Bota simbolismo nisso. Um simbolismo que se ampliou quando a Igreja adotou a aliança como um símbolo de união e fidelidade.

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A própria forma da aliança explica esse simbolismo. Pode ser considerada uma algema em miniatura, como dizem os inimigos (não poucos) do casamento, mas mais provavelmente é vista como o elo de uma corrente da qual fazem parte o noivo e a noiva, o marido e a mulher. Mais do que isso, por causa de sua forma circular, remete-nos ao ciclo da vida, no qual a união entre dois seres é um momento importante.
Será que essas coisas explicam a determinação de Aleki? Será que ele valorizava tanto assim seu casamento? Ou será que se tratava apenas do desafio, de encontrar a aliança de qualquer maneira para mostrar à esposa e aos amigos sua determinação? Ou ainda, quem sabe ele era movido pelo fato de que a aliança, afinal, é um objeto de valor, confeccionada em ouro? Ou, finalmente, será que é uma soma de tudo isso, e de mais alguns fatores que desconhecemos?

***
Questão complexa, como complexo é o casamento. O que aproxima um homem de uma mulher levando-os a uma união que, teoricamente ao menos, deveria ser duradoura? O amor? Mas existem casamentos sem amor. Existem casamentos que resultam de interesses, de pressão familiar e que, ainda assim, funcionam. E mesmo que fosse o amor – é só o amor? Não é o hábito, o costume, a cumplicidade?
Há uma outra questão aí, muito mais embaraçosa. Por que uma pessoa perde a aliança? Por acidente, por descuido? Será que é só por isso? Ou será que o acidente, o descuido, são expressões de um impulso inconsciente, como o lapso freudiano? A mulher que perde a aliança está condenada a perder o marido, diz-se na Escócia. Condenada a perder o marido – ou pronta para livrar-se do marido? Será que perder a aliança (este “perder” podendo significar “jogar fora”) não revela já uma oculta predisposição para acabar com o casamento?

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O Aleki poderia não ter perdido a aliança – se ele não usasse aliança. Muitos casais fazem isso.
Podem até ter a aliança, mas guardam-na em casa. De novo, pode-se perguntar o que leva casados a não usarem a aliança. A explicação que eu prefiro é aquela que remete à maturidade: não precisamos de nenhum símbolo material, se estamos seguros de nossos sentimentos, de nossas opções, sem que seja necessário demonstrá-lo publicamente. E sem que seja preciso mergulhar no mar em busca de alianças perdidas.

O panelaço

Rubem Alves*
Bachelard observou que “a lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental das lembranças. Que sol ou que vento fazia nesse dia memorável?”
Compreendi as palavras de Bachelard ao me lembrar daquele dia memorável, que não pode ser esquecido. Era o fim de tarde, quando a luz do dia que se vai se mistura com o escuro da noite que chega e tudo fica indefinido. A indefinição ficava mais indefinida ainda pela chuva fina que começava a cair. Foi então que aconteceu: um barulho surdo, metálico, sem melodia e sem ritmo, começou a subir das ruas, dos apartamentos, dos escritórios, barulho que não combinava com o momento... Fiquei assustado porque não tinha na minha memória registro de qualquer barulho urbano que se assemelhasse àquele que enchia a tarde-noite de São Paulo. Eu estava no quinto andar. Tomei o elevador para o térreo. Queria saber o que estava acontecendo.
Quando, no térreo, saí à rua, os rostos sorridentes dos motoristas de táxi me fizeram lembrar. Os motoristas cansados, ao fim do dia, usam as buzinas para exprimir sua irritação. E eles estavam buzinando sem parar, mas sem que houvesse nenhuma razão de tráfego para tal. Suas buzinas não eram irritadas. Buzinavam e sorriam. Parecia que estavam felizes.
Aí me lembrei e entendi. Olhei para cima e vi de onde vinha o barulho metálico: as janelas e varandas dos apartamentos estavam cheias de pessoas que batiam panelas com colheres. O barulho era ensurdecedor e lindo, musicalmente... Aquele barulho era o canto de um povo. A chuva caia um pouco mais forte, mas as pessoas que andavam pelas ruas não demonstravam contrariedade. Elas sorriam com a água a lhes escorrer pelo rosto. Era o panelaço: uma cidade sem armas que buzinava e batia tampas e panelas para derrotar um exército armado, à semelhança do ocorrido na cidade de Jericó cujas muralhas caíram pelo som das trombetas.
Chorei e me disse: “É muito bonito! Uma estória para ser contada e repetida! As crianças precisam saber...” E foi ali que se formou na minha imaginação a estória que escrevi O flautista mágico .
Sugeri, olhando para nossos sólidos representantes no congresso, um cobrindo as vergonhas do outro, o outro cobrindo as vergonhas do um, que a maioria deles não está disposta a trocar seu menu de costeletas, lombos e lingüiças por uma modesta dieta vegetariana de alface e cenoura... Numa alusão ao filme do Hitchcock, eu disse que era preciso chamar os pássaros... Eles só sairão do castelo de impunidade onde se encontram se os pássaros os obrigarem.
Pássaros fomos nós, naquela tarde do panelaço contra a ditadura. Pássaros poderemos ser nós, agora...
Recebi agora, via internet, a convocação dos pássaros, um manifesto do qual vou citar alguns trechos.“Esta é a hora: 7 de setembro às 17h! (...) No dia 7 de setembro às 17h vamos paralisar o Brasil. Às 17h vamos promover um panelaço! Exija que as redes de televisão, rádios, jornais, revistas e o político de sua confiança divulguem esse movimento. Mobilize sua escola, seu sindicato, sua igreja, seus amigos. No dia 7 de setembro, às 17 horas, estenda na janela uma bandeira, uma toalha, um pano qualquer! Bata panelas! Toque cornetas! Se você estiver no carro, buzine! Vamos fazer a nação tremer por um minuto!” As hienas e os gambás fugirão dos pássaros!
Eu vou buzinar, vou tocar sino, vou bater tampa e panela, estender bandeira, tocar a Nona Sinfonia... Ninguém poderá dizer que eu morri sem espernear...
Correio Popular, 30/08/2009

sábado, 29 de agosto de 2009

O Cavaleiro do Balde

Franz Kafka*

Consumido todo o carvão; vazio o balde; sem sentido a pá; a estufa bafejando frio; o quarto inteiro atravessado por sopros de gelo; diante da janela as árvores rijas de geada; o céu um escudo de prata contra quem deseja o seu auxílio. Preciso de carvão; certamente não posso morrer congelado; atrás de mim a estufa impiedosa, à minha frente o céu igualmente sem pena, tenho portanto de cavalgar nítido entre os dois e no meio buscar a ajuda do carvoeiro. Mas ele já está insensível aos meus pedidos costumeiros; é necessário provar-lhe com precisão absoluta que já não tenho uma só migalha de carvão e que sendo assim ele significa para mim o próprio sol no firmamento. Devo chegar como o mendigo que estrebuchando de fome quer morrer na soleira da porta e a quem, por esse motivo, a cozinheira dos patrões resolve dar para beber a borra do último café; do mesmo modo o carvoeiro, furioso mas sob o raio de luz do mandamento ''Não matarás!'', tem de atirar no meu balde uma pá cheia de carvão.
Já minha subida deve decidir o caso, por isso vou a cavalo no balde. Como cavaleiro do balde, ao alto a mão na alça --a mais simples das rédeas--, volto-me com dificuldade e desço a escada; mas embaixo meu balde sobe, soberbo, soberbo: camelos agachados no solo não se levantam tão belos estremecendo sob o bastão do cameleiro. Pela rua dura de gelo avança-se em trote regular; muitas vezes sou alçado à altura dos primeiros andares, não mergulho nunca até o nível da porta do prédio. E diante da abóbada do depósito do carvoeiro pairo extremamente alto enquanto ele bem lá embaixo escreve acocorado junto à sua mesinha. Para deixar sair o calor excessivo ele abriu a porta.
-- Carvoeiro! --brado com a voz cava e crestada pelo gelo, envolto nas nuvens de fumaça da respiração. -- Por favor, carvoeiro, me dê um pouco de carvão. Meu balde já está tão vazio que posso cavalgar nele. Seja bom. Assim que puder eu pago.
O carvoeiro põe a mão no ouvido.
-- Estou ouvindo bem? --ele pergunta por sobre os ombros para sua mulher que está tricotando no banco da estufa.
-- Estou ouvindo direito? Um freguês.
-- Não estou ouvindo absolutamente nada
--diz a mulher, inspirando e expirando tranquila sobre as agulhas de tricô, as costas agradavelmente aquecidas.
-- Oh, você ouve sim
--eu brado
-- sou eu, um velho freguês, fiel e dedicado, só que no momento sem recursos.
-- Mulher
--diz o carvoeiro
-- é alguém, é alguém; tanto assim eu não posso me enganar; deve ser um freguês muito antigo que me fala desse modo ao coração.
-- O que há com você, homem?
--diz a mulher e repousando um instante comprime o trabalho manual no peito.
-- Não é ninguém, a rua está vazia, toda a nossa freguesia está servida, podemos fechar a loja durante dias e descansar.
-- Mas eu estou sentado aqui em cima no balde
--exclamo e lágrimas sem sentimento velam-me os olhos.
-- Por favor, olhem para cima, vão logo me descobrir; estou pedindo uma pá de carvão e se me derem duas vão me fazer muito, muito feliz. Todo o resto da freguesia aliás já está servido. Ah, se eu já ouvisse o carvão batendo no balde!
-- Vou indo --diz o carvoeiro e com as pernas curtas quer subir a escada do porão, mas a mulher já está ao seu lado, segura-o pelo braço e diz:
-- Você fica aqui. Se não parar de ser teimoso, subo eu. Lembre-se da sua tosse forte esta noite. Mas por um negócio, mesmo que seja imaginário, você abandona mulher e filho e sacrifica os seus pulmões. Eu vou.
- Mas então conte todos os tipos que temos no estoque; os preços eu grito depois para você.
-- Está bem
--diz a mulher e sobe para a rua.
Naturalmente ela não me vê logo:
-- Senhora carvoeira! --exclamo.
-- Respeitosa saudação: só uma pá de carvão, bem aqui no balde; eu mesmo o levo para casa; uma pá do pior carvão. Evidentemente pago tudo, mas não agora, não agora.
Como as duas palavras ''não agora'' parecem um som de sino e como elas se misturam perturbadoramente ao toque do anoitecer que se pode escutar da igreja vizinha!
-- O que ele quer, então?
--brada o carvoeiro.
-- Nada --grita de volta a mulher.
-- Não é nada, não vejo nada, não ouço nada. O frio está medonho; amanhã provavelmente vamos ter ainda muito trabalho.
Ela não vê nem ouve nada, no entanto desamarra o cinto do avental e tenta me enxotar com ele. Infelizmente consegue. Meu balde tem todas as vantagens de um bom animal de corrida, mas não resistência; ele é leve demais; um avental de mulher tira-lhe as pernas do chão.
-- Malvada!
--brado ainda, enquanto ela, voltando-se para a loja, dá um tapa no ar, meio com desprezo, meio satisfeita.
-- Você é malvada! Pedi uma pá do pior carvão e você não me deu.
E com isso ascendo às regiões das montanhas geladas e me perco para nunca mais.
* Escritor tcheco. Texto traduzido por MODESTO CARONE e publicado na Folha em 22/10/1995

Esquadros

Composição: Adriana Calcanhotto


Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!


Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção
No que meu irmão ouve
E como uma segunda pele
Um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Ai, Eu quero chegar antes
Prá sinalizar
O estar de cada coisa
Filtrar seus graus...


Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome...



Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...


Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm
Para quê?
As crianças correm
Para onde?
Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?



Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...


Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...


Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...


Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...


Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...

Pode ser ouvido no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=WfOu66jJG7I

Sexo, crime e pecado

Joaquim Motta*
Ao se divulgar a intimidade de profissionais acusados de conduta íntima indevida ou delituosa, o sexo volta a circular pelo universo da criminalidade e da moral religiosa. Notícias sobre pedofilia, implicando sacerdotes com crianças e as de abuso envolvendo médicos com pacientes são as que provocam maior impacto midiático. Nem todos os casos são denunciados, lamentavelmente. Estupros às vezes aparecem devido aos seus efeitos de gravidez e à polêmica da liberação do abortamento. Felizmente raro em nosso cotidiano nacional, o tópico dos assassinos sexuais em série fica mais globalizado.
Reflitamos sobre a complexa condição ética e/ou moral do sexo.
No polo mais grave, temos o sadismo assassino do matador sexual serial. Trata-se de violação que trucida qualquer proposta ética e limite moral. É crime a ser condenado e punido exemplarmente.
Um estuprador, ainda que não contumaz e que tenha exercido seu poder de perversão sobre um adulto, também deve ter um destino semelhante, especialmente quando é um profissional de saúde que invade pacientes.
A pedofilia é praticada por um abusador de grande perversidade, o qual usa de sua maturidade para subjugar um menor. Conforme o tipo de invasão que exerce, precisa de condenação e punição exponenciais. Quando o abuso pedófilo afronta os cuidados anímicos, há uma exacerbação ignóbil que deveria ser reavaliada para a adequada proporção patológica e penal. Um sacerdote apalpando uma criança é aviltante.
No contexto do relacionamento profissional que envolve pessoas adultas empenhadas em solucionar os problemas de seus interesses, muda a discussão. Mesmo que estejam lidando com aspectos espirituais, adultos que extrapolem as barreiras morais da libido podem não merecer críticas.
Pastores envolvidos em encontros íntimos consensuais com membros das suas paróquias não são raros. Nos EUA, a bispa episcopal Barbara Harris, da Igreja Anglicana, referiu que isso ocorre com “quatorze a vinte e cinco por cento” dos clérigos.
O desejo sexual nos escritórios de advogados, consultores, nos consultórios de médicos, odontólogos, terapeutas, é comum. A natureza humana não é anulada pelo trabalho.
A psicóloga Susan Baur informa que 3/4 dos psicoterapeutas admitem ter sentido atração por pacientes. O empolgamento é importante em função de como se decide agir. Será que um cuidador erotizado pode fazer bem para seu assistido? Se ele lidar satisfatoriamente com a própria sexualidade, escolherá não manifestar os seus sentimentos, administrando e aproveitando o que se chama tecnicamente de contratransferência, ou interromper a terapia, indicar outro colega, enquanto convida o paciente para uma relação pessoal.
É fundamental que isso se defina o mais brevemente possível. Uma mulher de 33 anos, tratando-se há dois com um terapeuta renomado, entrou em forte crise emocional quando ouviu dele que teriam que parar, pois se apaixonara por ela desde o início — o dinheiro que ela havia aplicado no tratamento ele devolvia atualizado, agora só queria ser namorado dela! O mau emprego do poder discricionário é sentido pela vítima como uma manipulação terrível, excesso inaceitável, uma grande traição.
Uma revisão conceitual sobre o triângulo amoroso e a famigerada infidelidade vem se processando na sociedade. Há 4 anos, no Brasil, o adultério não é mais considerado crime. Para as religiões, no entanto, segue como pecado. Na expectativa hedonista radical, uma vez livre da pecha de criminoso, falta que eliminemos a de pecaminoso.
A culpabilização do sexo não se contenta com o âmbito triangular. Seitas e grupos conservadores combatem a liberdade erótica, a diversidade sexual, as alternativas. Há minorias verdadeiramente criminosas que exercem esquemas violentos de repressão, outras que cometem atrocidades contra homossexuais.
A rigor, não existe criminoso “sexual”: o problema é do caráter da pessoa e não do sexo. Este deve ser lídimo, consensual, precavido e prazeroso, servindo ao amor, apartado do crime e do pecado.

*Joaquim Zailton Bueno Motta é psiquiatra e sexólogo.
Correio Popular, 29/08/2009
http://cpopular.cosmo.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1650003&area=2190&authent=188F803109C882201DB8A3315ABAB2

O sonho de Luther King Jr.

Antonio Carlos Ribeiro*
Esse dia 28 de agosto lembra o discurso proferido
por Martin Luther King Jr em 1963.
O pastor batista de Atlanta conseguia
entusiasmar a multidão.
Temas como a integração da luta pela cidadania,
a afirmação da etnia e a cultura norte-americana
marcam aquela época.
A eleição de Barack Obama faz a história ser revivida
quase cinco décadas depois,
em tom triunfal.

Esses fatos só ganham sentido, se voltarmos meio século no tempo para acompanhar Luther King em sua caminhada como filho de pastor que, ordenado aos 18 anos, estudou no Crozer Seminary e na Boston University, teve sua personalidade firmada em sua família e igreja, foi influenciado pela não-violência de Gandhi, pelo personalismo filosófico de Brightman, pela teologia cristã de Niebuhr, Tillich e Wieman, e pela fenomenologia do Espírito de Hegel. Fatos que nos ajudam a entender sua caminhada.

As ênfases desse pregador associavam as condições de negro e estadunidense, criando possibilidade de integração na sociedade e do sonho de direitos iguais. Seu discurso amplamente divulgado em frente ao Capitólio, I have a Dream (Eu tenho um sonho), era simples e direto. “Queremos apenas a simples concretização do American Dream, um sonho que ainda está por ser cumprido, o sonho da igualdade de chances, de direitos, de propriedade, o sonho de uma sociedade em que as pessoas não são avaliadas pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter, o sonho da irmanação de todas as pessoas, o sonho da América como terra dos livres e lar dos bravos”.

O discurso composto de frases já repetidas na campanha pelos direitos civis em cidades de diversos Estados manteve certo ritmo, até que a cantora Mahalia Jackson, entre a multidão próxima do palco, gritou a King: Tell them about the Dream, Martin (Conte-lhes sobre o sonho, Martin). Nesse momento, o orador é tomado pelo espírito profético de bom pregador, levando as pessoas à emoção e à participação.

Acostumado às celebrações longas, com discursos enfáticos, grandes corais e intervenções efusivas dos que tinham seu único espaço de expressão nas igrejas, King conseguia fazer a multidão sentir-se plena de Deus (en-Theós-mós). A Escritura interpretada com fervor e vida, ligando os tempos bíblicos à luta pela cidadania, roubava a legitimidade de protestantes brancos e fundamentalistas, com seu racismo de dois mecanismos, o psíquico de autojustificação, e o ideológico, de subjugação das pessoas negras.

Diferentemente de Malcolm X, Luther King descobriu que a associação da luta pela cidadania, a força da cultura negra e luta por espaço e respeito eram capazes de levar milhares de homens e mulheres às ruas, ao ponto de sensibilizar o presidente Robert Kennedy, que espalhou dezenas de soldados na Universidade do Mississipi para que o primeiro negro lá pudesse estudar. E que inspiram hoje a política de cotas do Governo Federal brasileiro.

Após um governo desastroso, os EUA com milhares de militares mortos em duas guerras, centenas de desabrigados e esquecidos em New Orleans, uma monumental crise econômica e um presidente cuja saída provocou rara unanimidade de sentimentos entre os norte-americanos e os demais povos do planeta, a eleição de Barack Obama foi o desfecho. No discurso de Chicago, em 5 de novembro de 2008, ele lembrou Ann Nixon Cooper, sua eleitora de 106 anos, que esteve “nos ônibus de Montgomery, nas mangueiras de irrigação em Birmingham, na ponte em Selma e com um pregador de Atlanta que disse: ‘Superaremos’". E a multidão respondeu em uníssono Yes, we can! (Sim, nós podemos!).

Nesse momento, o sonho de King tornou-se história. 45 anos depois.

* Teólogo e jornalista, doutorando em teologia na PUC-Rio.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Tudo o que você precisa é amor ( o dinheiro vem depois)

Confio muito num lema que Julie revelou em sua autobiografia,
Man of Two Worlds:
“Pegue uma coisa que você ama e conte para todo mundo sobre ela.
Encontre outras pessoas que tem a mesma paixão,
e juntos se dediquem a
tornar essa coisa ainda melhor.
No final, você vai ter muito mais do que
você ama,
para você e
para poder compartilhar com o
mundo.”
All You Need is Love.
Pode até te render um dinheirinho, no final…
- Postado no Blog de André Forastieri- 28/08/2009.

Sem honestidade a sociedade não sobrevive

José Luiz Quadros de Magalhães*
"De tanto ver triunfar as nulidades;
de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça;
de tanto ver agigantarem-se os poderes nas
mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude,
a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto".
A advertência de Rui Barbosa (1849-1923)
parece muito atual,
e o risco é o descrédito com
a política,
as instituições e
os valores.
Mundo Jovem: Existe uma cultura de que a corrupção e a desonestidade são exclusivas dos políticos?
José Luiz Quadros de Magalhães: A mídia, e especialmente a grande mídia, tem vinculado a corrupção com o estado e os políticos. Em primeiro lugar é importante lembrarmos que os vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, prefeitos, governadores e o presidente da república são representantes do povo, escolhidos livremente pelo voto secreto. Precisamos acompanhar o trabalho dos nossos representantes que devem atuar seguindo a nossa vontade e não mais votarmos naqueles que não cumprem corretamente as suas funções.
Em segundo lugar, não existe corrupção sem a presença de dois polos nesta relação criminosa: o corruptor e o corrompido. A grande mídia fala apenas nos corrompidos que seriam, quase que exclusivamente, os políticos. E quem é o outro lado desta relação? Quem paga as campanhas eleitorais para conseguir contratos com o estado posteriormente? Quem se beneficia dos gastos públicos em obras, em fornecimento de bens para a administração pública. Precisamos buscar o outro lado desta relação. A corrupção não ocorre só na política e a política reflete valores presentes em nossa sociedade. Não podemos ficar eternamente colocando a culpa em políticos que nós mesmos escolhemos. A grande mídia que só coloca a culpa nos políticos quer na verdade desmoralizar o estado e a democracia.
MJ - A corrupção seria fruto dos valores do mundo atual?
José Luiz Quadros de Magalhães: Realmente, podemos nos perguntar se não seria a sociedade de consumo em que vivemos, onde as pessoas valem pelo que têm e não pelo que são, um fator preponderante nestas condutas? Será que uma sociedade fundada no individualismo, no egoísmo, na competição e na acumulação de bens tem futuro?
A competição e o individualismo, valores saudados como fundamentais em nosso sistema econômico, reflete-se de diversas formas na vida social. Vivemos em uma sociedade da competição permanente: na TV os programas escolhem a melhor música, o melhor cantor, o melhor filme e nós reproduzimos isso no dia-a-dia, quando escolhemos o melhor sanduíche, a melhor pizza, o melhor amigo, o melhor isto e o melhor aquilo. O problema da sociedade do melhor é que nós estamos desaprendendo a viver com a diversidade, com a pluralidade. Por que escolher a melhor música se podemos conhecer muitas músicas boas? Por que escolhermos a melhor pizza se podemos experimentar pizzas diferentes e boas? Por que as coisas não podem ser simplesmente diferentes?
A competição e o egoísmo refletem-se em coisas pequenas do nosso cotidiano: desde o motorista do carro que não dá passagem, ao cara que fura a fila do cinema, o comportamento predominante é o “tenho que me dar bem e o outro que se dane”. É claro que uma sociedade fundada nestes valores não pode ter futuro. Isso pode virar uma guerra de todos contra todos. Precisamos resgatar a solidariedade e a noção de comunidade como valores sociais fundamentais. A solidariedade pode acabar com a corrupção, fruto da cultura do “se dar bem” a qualquer custo.
MJ - Qual o grau de participação dos políticos na manutenção da corrupção e desonestidade no país?
José Luiz Quadros de Magalhães: Não acredito que os políticos tenham uma responsabilidade maior na manutenção da corrupção. Os políticos não são a causa do problema. Como disse acima, a causa está, entre outros fatores, em uma sociedade que reconhece como valor supremo o sucesso pessoal representado pela acumulação de bens. É a sociedade do salve-se quem puder. Reparem que isso se reflete no seu dia-a-dia nas pequenas coisas: no trânsito, nas filas, no campo de futebol, no trabalho, na escola...
MJ - Ser honesto é exceção, o normal é ser corrupto? É possível ser honesto?
José Luiz Quadros de Magalhães: O normal não pode ser a corrupção pelo simples fato de uma sociedade não sobreviver muito tempo a esse valor negativo. O destino da sociedade corrupta é o caos. É claro que é possível ser honesto. E mais, é possível se transformar em uma pessoa honesta. E é muito mais tranquilo ser honesto.
Uma coisa importante é aprendermos com nossas experiências. Na difícil convivência nesta sociedade complexa, fazemos escolhas ou somos levados pela correnteza do cotidiano por caminhos difíceis e que não escolhemos. Nenhuma pessoa é estática, o que significa dizer que o que somos hoje não seremos amanhã. Somos seres históricos. Logo, todos erramos, fazemos escolhas erradas ou somos empurrados como gado a situações que não desejamos. O importante é que mesmo errando podemos aprender com os erros e nos transformar em pessoas melhores. Ninguém está condenado a ser a mesma pessoa. Logo, nunca podemos reduzir uma pessoa a um predicado. Uma pessoa será sempre uma pessoa, histórica e plural.
MJ - E “fazer negócio”, relações econômicas e comerciais não supõem um certo grau de desonestidade?
José Luiz Quadros de Magalhães: Outro dia recebi um folheto de propaganda de um curso no sinal de trânsito, em que estava escrito o seguinte: “Aprenda a vender o mesmo produto do seu competidor por um preço mais alto para o seu cliente”. Realmente questiono muito o valor passado por essa absurda sociedade da competição, na qual o que importa é a vitória, a qualquer preço.
Me pergunto até que ponto alguns cursos de administração e negócios não ensinam isso. Bom, o efeito deste absurdo está na crise em que vivemos e que se instalou de forma mais radical no final de 2008. O neoliberalismo reproduziu esses valores negativos desde a década de 1980 e agora começamos a sentir seus efeitos mais perversos. A crise foi gerada por esses valores que só podem resultar em ganância desenfreada. Para estabelecer relações econômicas ou fazer negócios não é necessário a desonestidade. A desonestidade é fruto da perda dos limites em uma sociedade que idolatra a competição e o sucesso.
MJ - Copiar trabalho da internet, não estudar... buscar sempre o caminho mais fácil não são sintomas de desonestidade na escola, entre os jovens?
José Luiz Quadros de Magalhães: Sim, isso é muito grave. O problema maior no campo da educação é que ela se transformou, nesta sociedade de consumo, em um produto, e o aluno em um consumidor. Isso é o fim da escola. A pior consequência é que o aluno, muitas vezes, acredita que o objetivo do curso é o diploma e não o aprendizado, que é uma grande ilusão. Ora, se o objetivo é o diploma, o professor, o aprendizado, o curso enfim, passa a ser um obstáculo para se chegar ao diploma. Perde-se a percepção de que é o aprendizado que importa. Assim, em uma típica e inútil relação de consumo o aluno compra a prazo seu diploma para depois pendurar na parede de sua casa. Existem cursos em que alguns alunos saem piores do que entraram, em outros alguns saem ilesos. O pior de tudo é quando encontramos alunos que não querem saber: em meio a tanta informação disponível vivemos o fenômeno da incuriosidade.
MJ - Há possibilidade de reverter esse quadro?
José Luiz Quadros de Magalhães: É claro que é possível reverter. Precisamos refundar nossa sociedade. Precisamos de solidariedade, fraternidade, diálogo, diálogo, diálogo... Não precisamos de tantas bugigangas, de tanto consumo. Não precisamos do egoísmo e a competição deve ficar para a sadia disputa dos esportes, em que deveria ser mais importante a diversão.
Entrevista na Revista MUNDO JOVEM de setembro de 2009.
*José Luiz Quadros de Magalhães, professor da PUC-Minas e diretor do Centro de Estudos Estratégicos do Estado (CEEDE).

Apego ao poder e o espectro da morte

Frei Betto*

Uma das características do poder é imantar em muitos que o ocupam a pretensão de nele se perpetuar. Nada mais trágico para tais pessoas do que sua perda: ficam com baixa autoestima, sentem-se abandonadas pelos antigos correligionários, lamentam já não usufruírem dos privilégios e das mordomias de outrora. Daí o empenho de tantos políticos para se perpetuarem no poder. Ao se defender no Senado, Sarney gabou-se de estar nele há 55 anos!

A questão do poder desponta com o surgimento da cidade-Estado, no início do IV milênio a.C. É quando o ser humano se desprende do ciclo da natureza. Já não funda sua identidade nos vínculos comunitários da sociedade agrária. Sua consciência se personaliza, ele se torna senhor do próprio destino, livre das mutações ecológicas que antes criavam nele a sensação de fatalidade.
A vida, como fenômeno biológico, adquire progressivamente contornos históricos. O ser humano percebe-se como sujeito, ator social, dotado de consciência da responsabilidade e capacidade de interferir nos rumos da natureza. As provisões já não dependem apenas da coleta e da extração; surge a atividade produtiva. O mundo deixa de ser uma realidade dada; passa a ser transformado e construído.
A fundação da cidade-Estado, ao inverter a relação do ser humano com a natureza, o faz perceber que não é mais ele que deve se adaptar a ela; ela é que deve se submeter à vontade dele. A invenção do tijolo, como o comprova o episódio da Torre de Babel (Gênesis 11), permite ao ser humano fabricar a base material do mundo. A produção em série o livra dos condicionamentos ambientais e climáticos.
Assim, altera-se a função da divindade, à qual natureza e humanidade estavam implacavelmente sujeitas. Antes, os deuses atuavam movidos por forças obscuras que escapavam do controle humano. Agora, são vistos como fundamento e reflexo da hierarquia que caracteriza a cidade-Estado. O rei é tido como mediador entre as ordens celestial e terrena. Ele interfere, não apenas na natureza, mas também na história.
Embora ele seja revestido de sacralidade, as leis que promulga já não decorrem da imposição dos deuses. São obra humana, suscetível de limitações e erros, interpretações e questionamentos. E a morte, até então encarada como inevitável degradação ou acidente ditado pelo ciclo da natureza, passa a ser encarada pela ótica da tragédia.
A história do rei sumério Gilgamesh ilustra esse atávico apego de muitos ao poder. Ela chegou até nós através da Epopéia, redigida em idioma acádio numa tábua de argila do século VIII a.C. Governante da cidade-Estado de Uruk, na Mesopotâmia (atual Iraque), Gilgamesh teria vivido em 2650 a.C. A lista sumeriana dos reis o aponta como o quinto da primeira dinastia. Sua função mítica associa-se ao novo olhar sobre o poder: o supremo grau a que pode ascender uma pessoa, comparada aos deuses, e a morte passa a ser considerada inaceitável, pois deuses não morrem...
Gilgamesh se queixa de que, ao criar o seres humanos, os deuses os fizeram mortais e reservaram para si o privilégio da imortalidade. Revolta-se ao descobrir que as funções de poder são perenes, os homens que as ocupam, não.
Por sua vez, os cidadãos de Uruk reclamam da tirania de Gilgamesh. Criticado por seus súditos, ele sente a solidão do poder. Necessita de um amigo, um alter-ego, o que não encontra em Uruk. Fica sabendo, por um caçador, da existência de Enkidu, que vive no deserto e comparte a vida dos animais selvagens. É o homem que procurava. Confrontam-se as duas violências: a da natureza (Enkidu) e a da cidade-Estado (Gilgamesh). Este envia uma comitiva a Enkidu com a missão de trazê-lo do mundo rural ao mundo urbano.
Após Enkidu transar com uma prostituta, os animais do deserto já não identificam nele um igual e passam a temê-lo. Como em muitos mitos, inclusive no Gênesis, é a mulher que introduz o homem no discernimento e na vida civilizada. Enkidu encontra Gilgamesh ao entrar na cidade; surge entre os dois uma profunda amizade. Unidos, sentem-se tão fortes que desafiam os deuses. A aliança entre eles reforça o apego ao poder. À perenidade soma-se a onipotência. Porém, Enkidu se enferma e morre. O imprevisto acontece.
Gilgamesh, solitário, se revolta. Recusa-se a aceitar a morte. Ele se torna "o grande homem que não quer morrer", diz o texto. Decide partir e aprender com Uta-napishti - único sobrevivente do dilúvio -, a receita da vida sem fim. O poderoso não admite que a morte o destrone do poder.
Shamash, o deus-Sol, o adverte: "Você jamais encontrará a vida sem fim que procura". Gilgamesh não se conforma de, após a morte, encontrar apenas um estado de inanição e sono sem fim. Uta-napishti insiste com Gilgamesh para que ele admita não merecer dos deuses o privilégio da imortalidade. O poder pode tudo, exceto evitar que os poderosos sejam "derrubados de seus tronos e, pela morte, despedidos com as mãos vazias", como canta Maria no Magnificat (Lucas 1, 46-55).
* Escritor e assessor de movimentos sociais
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=40769 -28/08/2009

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Vestes, corpos e sombras

JOÃO PEREIRA COUTINHO
Sem Eva, sem maçã,
as mulheres não teriam lingerie para vestir e,
sobretudo, para despir

SEMPRE GOSTEI da passagem bíblica em que Adão e Eva descobrem a sua própria nudez. Não lembram? Eu relembro: foi no princípio do princípio do princípio, em pleno Jardim do Éden.Criados por Deus e respeitadores das Suas leis, Adão e Eva viviam em harmonia e inocência. Até o dia em que a serpente entra em cena para tentar Eva com os frutos da árvore do conhecimento. O resto, como se diz por aí, é história: Eva prova a maçã; Adão, tentado por Eva, também; Deus, compreensivelmente, não gosta da desobediência e expulsa o casal primevo do paraíso.
É então que ambos experimentam pela primeira primeira vez o que nunca sentiram antes: vergonha. Vergonha dos seus próprios corpos nus. Imagino a cena, tal como Botticelli a pintou: os dois, tapando o rosto e as partes, saindo do Jardim em desgraça.Entendo a importância do episódio na teologia cristã. Ao permitir a queda do Homem, Deus preparava os homens para a vinda do seu filho muito amado, que nos acabaria por redimir. Por isso o pecado original é, de certa forma, necessário e salvífico: sem Queda, não haveria redenção. Mesmo John Milton, que tem certo "flirt" com o diabo no seu "Paraíso Perdido" (ah, esses republicanos...), concordava com Agostinho. Adão e Eva são responsáveis por nossa perdição, mas também pela nossa salvação. Brindo a eles.
Mas brindo também por motivos mais básicos e, digamos, menos ortodoxos. A nudez é um tédio. Sem Eva, sem maçã, sem serpente, jamais teríamos o tweed, a maior invenção do vestuário masculino desde que os homens deixaram de usar collants. E, sem Eva, sem maçã, sem serpente, jamais as mulheres teriam lingerie para vestir e, sobretudo, para despir. Talvez exista algo de errado em mim, mas só começo a olhar para Eva com outros olhos quando ela usa as primeiras calcinhas da Humanidade. Exatamente: folhas de árvore a tapar a genitália. Que mulherão.A nudez é um tédio, repito. Mas existe quem discorde. Eu próprio tive experiência pessoal na semana passada. Uma amiga ligou e convidou-me para um dia de praia. Aceitei o convite, na crença inocente de que praia é praia: areia e mar, com gente semivestida pelo meio.
Pobre de mim. Ainda durante a viagem, ela perguntou-me se eu já tinha experimentado o nudismo. Entre o riso e o pânico, respondi que não. Nem o nudismo, nem o canibalismo. Ela sorriu. Sorriso pérfido. Mas então já era tarde para eu saltar de um carro em andamento.
A experiência não foi completamente traumática. A praia estava habitada pelo tipo de seres humanos que Pedro Álvares Cabral encontrou na sua primeira chegada ao Brasil. A única diferença é que nenhum dos índios ali presentes me ofereceu ouro ou pedras preciosas em troca de meus pobres e deslocados trapos. Que, no momento, me pareceram introcáveis por qualquer preço.
Os amigos da minha amiga aproximaram-se e apresentaram-se. Instintivamente, eu recuava meio metro por cada pênis que avançava. Engana-se quem pensa que a melhor forma de combater a ansiedade social é imaginar os nossos interlocutores despidos. Quem inventou essa mentira? Quando a plateia está despida, nós só temos dois caminhos: fugir ou despir também.
Tentei um compromisso: impossibilitado de fugir e prometendo nu total para mais tarde, imaginei a plateia vestida. Não é fácil transformar qualquer genitália em meras peles de vison. Sobretudo quando há vaginas no perímetro. Mas a alternativa é o açougue: carnes penduradas em sua frieza mórbida, capazes de transformar qualquer ser sexual em vegetariano puro. Fiquei pelo vison.
O problema é que não é possível ficar por muito tempo: as horas passam e, com as horas, passa também o efeito da ilusão. Os outros estão realmente despidos. Nós continuamos de smoking.
A vergonha inverte-se e as nossas roupas são objeto de condenação e de escárnio.
Vergonhosamente, cedi. Vagarosamente, fui despindo. Peça a peça. Como uma stripper octagenária, tomada pelo reumatismo.Péssima solução. Derradeiro conselho: para nudistas renitentes, a única salvação está em imitar Usain Bolt, o homem mais rápido do momento. Entrar no mar; sair do mar; deitar na toalha (sempre de costas): qualquer gesto deve ser realizado com velocidade supersônica. Estamos e já não estamos. Somos e já não somos. Sempre em movimento. Apanhem-me se puderem. Razão tinha o poeta, Pessoa de seu nome: depois das vestes, ficam os corpos; mas depois dos corpos, ficam as sombras.
jpcoutinho@folha.com.br Folha de São Paulo, 25/08/2009

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Amores proibidos

Claúdio Moreno*

Os antropólogos sustentam que todo mito transmite algum saber valioso para nossa experiência. Há uma história, por exemplo, que nos mostra o quanto sofrem algumas almas infelizes por causa de um amor perdido. No tempo em que os deuses do Olimpo costumavam se unir às mulheres da terra, Clítia, ninfa de rara beleza, foi uma das inúmeras aventuras de Hélio, o deus do Sol, que a amou por um breve período, até trocá-la por uma nova conquista. Para ele, eterno peregrino, era muito fácil afastar-se, mas ela, perdidamente apaixonada, sentiu como se lhe arrancassem um pedaço da própria alma. Como a vida sem ele parecia impossível, deixou-se ficar imóvel no topo da montanha, esquecida de si, acompanhando, com os olhos ofuscados pela luz cegante do astro, a trajetória que ele descrevia todos os dias no firmamento. Insensível à fome e à sede, ela foi se esvaindo aos poucos, perdendo o viço e a cor, até que alguma deusa piedosa, para pôr um fim em seu sofrimento, transformou-a numa flor que até hoje acompanha o curso do Sol.
Um contraponto a este trágico destino é a lenda que Plínio usa, em sua História Natural, para explicar como nasceram as artes plásticas. Butades, mestre ceramista que vivia em Corinto, tinha uma filha que era bela, jovem e apaixonada como a triste Clítia e que, também como ela, caiu em desespero quando o homem que amava anunciou que precisava deixar a cidade por tempo indeterminado. A história não revela o motivo da viagem, mas a jovem, com a clarividência que as mulheres têm nessas horas, pressentiu que ele ia se afastar para sempre.
Na noite da despedida, num impulso derradeiro, aproveitou a sombra que a luz da vela projetava na parede e riscou, com um pedaço de carvão, o contorno daquele rosto que nunca mais iria ver. Era um traçado precário, mera sombra de uma sombra, mas valia muito para a jovem pelas lembranças que trazia. Butades, bom pai, percebendo o quanto aquilo atenuava o sofrimento da filha, convenceu-a a deixá-lo fazer um molde do desenho; para isso, aplicou sobre ele uma espessa camada de argila, que removeu com cuidado e cozeu no forno, obtendo um retrato durável, com peso e volume, que ela podia abraçar e carregar consigo sempre que quisesse. Segundo Plínio, quando os romanos conquistaram Corinto, alguns séculos depois, o retrato ainda existia, preservado em um dos templos da cidade. Ele nada nos diz sobre a moça, mas podemos presumir que tenha terminado bem, não permitindo, ao contrário de Clítia, que a tristeza da perda arruinasse sua vida. É muito bom ser assim; infelizmente, nem todos têm esta sorte.

Futuro: como serão os profissionais?

Karin Parodi*
Profissionais mais ágeis e
adaptáveis às mudanças se
destacam e
garantem posição
no mercado.

O mundo corporativo enfrenta um ritmo cada vez mais intenso de mudanças – isso já não é novidade para ninguém e, todos nós, de uma forma ou de outra, já fomos protagonistas ou coadjuvantes deste momento.

Agora, como estar preparado para não ser “atropelado” por este ritmo frenético é que fará a diferença para o profissional do futuro (ou seria do presente?). Atualmente, os tempos verbais perderam a importância. Presente confunde-se com o futuro e, se queremos nos manter no mercado, temos que vivenciar também o amanhã. Estudos mostram que a quantidade de novas tecnologias tem dobrado a cada dois anos. Isso significa trabalhar planejando, organizando e traçando o futuro da sua carreira.

Diante desse cenário, é natural que haja mudança nos perfis, uma vez que o ‘profissional do futuro’ precisa trazer resultados esperados em um mercado cada vez mais imprevisível. É imprescindível a busca constante pela atualização, educação continuada e o autoconhecimento - saber suas habilidades, competências, pontos fortes - para maximizar suas potencialidades e, desta forma, trazer os resultados condizentes com a empresa. Podemos destacar algumas competências:

- Leitura de contexto e tendências;
- Priorizar os desafios;
- Saber gerir mudanças;
- Ter flexibilidade para enfrentar novos desafios;
- Trabalhar em equipe.

Além disso, a capacidade de relacionamento também é valorizada em ambientes multiculturais e de muita pressão. É por isso que muitas vezes uma experiência no exterior pode valorizar um profissional, pois ele esteve exposto a diferentes culturas e padrões de comportamento. Cultivar, constantemente, a inteligência emocional é fundamental, pois alia a capacidade de se motivar e persistir diante de frustrações, procurando conhecer e lidar com as próprias emoções.

Quando se trata de uma transição de carreira é fundamental realizar o levantamento das atividades desenvolvidas e resultados alcançados para valorizar as próprias competências, capacidades e habilidades adquiridas. Com o resultado desse levantamento, o profissional prepara-se e se posiciona corretamente no mercado, apresentando-se mais maduro e adaptável aos novos desafios, pois tem gerência sobre as suas competências, sabendo assim explorar as características pessoais e profissionais que lhe trarão mais exposição e eficiência.

Uma competência valorizada é o autodesenvolvimento: o profissional que alia suas ações de desenvolvimento às demandas da organização e ao mercado tem maiores chances de obter sucesso em sua carreira. É papel de cada profissional buscar aquisição e consolidação de conhecimentos, além de manter-se capacitado para assumir novos desafios.

É fundamental exercitar a capacidade analítica e o raciocínio lógico e estratégico para conseguir acompanhar as mudanças que ocorrem no mercado e dentro da organização; ler o contexto organizacional e do mercado, traçar cenários e se predispor a agir focado nos resultados com foco na superação constante.

Para finalizar, a administração pós-crise se completa com a solicitação de feedback constante para o aprimoramento das competências requeridas. Assim você se capacita a entregar resultados superiores.

*Por Karin Parodi (diretora da Career Center, consultoria especializada em gestão estratégica de Recursos Humanos e Outplacement)
HSM Online24/08/2009
http://br.hsmglobal.com/notas/54056-futuro-como-ser%C3%A3o-os-profissionais?utm_source=news_rh&utm_medium=news_rh&utm_content=news_rh_futuro-como-serao-os-profissionais&utm_campaign=news_rh

A utopia tecnológica: uma quase realidade

Luli Radfahrer*
“Acredito sinceramente que tecnologias,
quando chegam a uma maturidade,
tornam-se transparentes.
Foi assim com luz,
água, saneamento, lixo”

IHU On-Line – O mundo dispõe cada dia mais da capacidade de armazenamento de dados. De que maneira isso muda a nossa forma de nos comportarmos na Internet em relação aos "arquivos da nossa vida"?
Luli Radfahrer – Em princípio, em nada. A idéia de "armazenar" as coisas – de livros a fotografias – vem de nossa relação com o conteúdo e a informação, que sempre foi escassa. Havia poucas imagens, pouca informação, por isso era preciso guardá-la seguramente em casa. À medida que a conexão se torna permanente, e o conteúdo mais abundante – e o mesmo acontece com nossas fotografias e até programas de rádio - armazená-lo não justifica sua redundância. Acredito sinceramente que a computação em nuvem tenha vindo para ficar e que daqui a alguns anos riremos do fato de termos que carregar HDs (discos rígidos) tão grandes.
IHU On-Line – O uso da Internet como computação em nuvem (cloud computing) traz, em sua opinião, que tipo de visões e conceitos sobre computadores, softwares e arquivos?
Luli Radfahrer – Tanto aqueles que disse anteriormente quanto mais uma série de outros que surgirão a partir do instante que pudermos compartilhar a capacidade de processamento de nossas máquinas (que passam a maior parte do tempo ociosas) para a geração de serviços muito mais sofisticados, que demandem computação intensa, inimaginável para os padrões de hoje. Há 1,5 bilhões de computadores conectados à Internet hoje. Cada um deles é uma “maquininha” ociosa e isolada. Imagine que maravilha quando todos puderem compartilhar forças?
IHU On-Line – Esse conceito de computação em nuvem vem muito do trabalho do Google. Para você, qual o futuro da Internet, segundo o Google?
Luli Radfahrer – Computação em nuvem é um conceito muito anterior à existência do Google. Ela só tornou o conceito viável comercialmente por ter sido uma empresa que surgiu após o “estouro da bolha”, e, nessas condições, pode contar com uma situação única: excelentes profissionais a baixo custo, computadores ociosos e muitos cabos de banda larga espalhados pelo mundo. O futuro da Internet, com ou sem Google, é uma interconexão cada vez maior de produtos e serviços. A web semântica [1] é um desses exemplos, ao conectar bases de dados e não mais "páginas" mortas. A computação física é outra, ao relacionar essas bases a informações ambientais. Inteligência artificial e compartilhamento ainda estão em sua infância, o mesmo pode ser dito da comunicação pessoal, que hoje é representada por essas próteses que mal reconhecem voz e que chamamos de celulares.Em resumo, há muito espaço para a inovação na Internet, fora da web e, naturalmente, do Google.
IHU On-Line – Essa lógica da "vida na Internet" muda de que forma a nossa presença no mundo digital?
Luli Radfahrer – Acredito sinceramente que tecnologias quando chegam a uma maturidade se tornam transparentes. Foi assim com luz, água, saneamento, lixo. Hoje, a Internet se torna transparente e, em breve, não falaremos mais nela. Ela será, simplesmente, vivida. On=off e o mundo "analógico" tenderá a ser visto como uma excentricidade.
IHU On-Line – Certa vez, ao comentar sobre mobilidade, o senhor sugeriu que parássemos de pensar apenas na Internet no celular. No futuro, onde mais a Internet, quando falamos em mobilidade, precisa e vai estar?
Luli Radfahrer – Em roupas que troquem de textura quando esfria ou de cor de acordo com o ambiente. Em carros, que saberão os melhores caminhos e formas de poupar combustível. Em janelas, que podem se transformar em coletores solares. E assim por diante...
IHU On-Line – As possibilidades que a computação em nuvem nos traz também mudarão (ou já estão mudando) a nossa presença e nossos usos nas redes sociais?
Luli Radfahrer – Sim. Os metaversos – dos quais o Second Life [2] foi um rascunho infeliz, mas que o The Sims [3] e o Warcraft [4] são exemplos robustos – tendem a ser as novas redes sociais. Elas podem estar em mundos-espelho, que reflitam as características de hoje, ou em ambientes completamente fantásticos e complexos. A revolução mal começou, ainda estamos no prefácio.
Notas:
[1] A web semântica é uma extensão da Web Actual, que permitirá aos computadores e humanos trabalharem em cooperação. Ela interliga significados de palavras e, neste âmbito, tem como finalidade conseguir atribuir um significado (sentido) aos conteúdos publicados na Internet de modo que seja perceptível tanto pelo humano como pelo computador.
[2] O Second Life é um ambiente virtual e tridimensional que simula, em alguns aspectos, a vida real e social do ser humano. Foi criado em 1999 e desenvolvido em 2003 e é mantido pela empresa Linden Lab. O número de usuários (residentes) conectados ao Second Life gira em torno de 60.000, com alguns picos acima de 70.000 nos fins de semana. A Revista IHU On-Line, no. 226, 02-07-2007, publicou uma edição sobre o tema, intitulada Second Life: uma fábrica de sonhos e desejos.
[3] The Sims é uma série de jogos eletrônicos de simulação de vida, criado pelo designer de Jogos Will Wright. Foi lançado em 2000. São jogos onde se podem criar e controlar as vidas de pessoas virtuais (chamadas de Sims).
[4] O Universo Warcraft é um universo ficcional, descrito por uma série de jogos e livros publicados pela Blizzard Entertainment e foi apresentado inicialmente pelo jogo Warcraft:Orcs & Humans no ano de 1994.
*Luiz Guilherme de Carvalho Antunes, conhecido como Luli Radfahrer, é graduado em Tecnologia em Processamento de dados pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Também é graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade de São Paulo, onde cursou o mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação. Nesta mesma universidade, é, atualmente, professor e realiza uma pesquisa em torno do tema Comunicação Digital e Redes Interativas. Entre suas obras, destacamos O Fim da Idade mídia (São Paulo: ed. São Paulo, 2009).
É um dos principais pesquisadores brasileiros na área de comunicação digital. Ele conversou com a IHU On-Line, por e-mail, 25/08/2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A truta

Luís Fernando Verissimo*
O homem pediu truta e o garçom perguntou se ele não gostaria de escolher uma pessoalmente.
- Como, escolher?
- No nosso viveiro. O senhor pode escolher a truta que quiser.
Ele não tinha visto o viveiro ao entrar no restaurante. Foi atrás do garçom. As trutas davam voltas e voltas dentro do aquário, como num cortejo. Algumas paravam por instante e ficavam olhando através do vidro, depois retomavam o cortejo. E o homem se viu encarando, olho no olho, uma truta que estacionara com a boca encostada no vidro à sua frente.
- Essa está bonita... - disse o garçom.
- Eu não sabia que se podia escolher. Pensei que elas já estivessem mortas.
- Não, nossas trutas são mortas na hora. Da água direto para a panela.
A truta continuava parada contra o vidro, olhando para o homem.
- Vai essa, doutor? Ela parece que está pedindo...
Mas o olhar da truta não era de quem queria ir direto para uma panela. Ela parecia examinar o homem. Parecia estar calculando a possibilidade de um diálogo.
Estranho, pensou o homem. Nunca tive que tomar uma decisão assim. Decidir um destino, decidir entre a vida e a morte. Não era como no supermercado, em que os bichos já estavam mortos e a responsabilidade não era sua - pelo menos não diretamente. Você podia comê-los sem remorso. Havia toda uma engrenagem montada para afastar você do remorso. As galinhas vinham já esquartejadas, suas partes acondicionadas em bandejas congeladas, nada mais distante da sua responsabilidade. Os peixes jaziam expostos no gelo, com os olhos abertos mas sem vida. Exatamente, olhos de peixe morto. Mas você não decretara a morte deles. Claro, era com sua aprovação tácita que bovinos, ovinos, suínos, caprinos, galinhas e peixes eram assassinados para lhe dar de comer. Mas você não estava presente no ato, não escolhia a vítima, não dava a ordem. Não via o sangue. De certa maneira, pensou o homem, vivi sempre assim, protegido das entranhas do mundo. Sem precisar me comprometer. Sem encarar as vítimas. Mas agora era preciso escolher.
- Vai essa, doutor? - insistiu o garçom.
- Não sei. Eu...
- Acho que foi ela que escolheu o senhor. Olha aí, ficou paradinha. Só faltando dizer ''Me come''.
O homem desejou que a truta deixasse de encará-lo e voltasse ao carrossel junto com as outras. Ou que pelo menos desviasse o olhar. Mas a truta continuava a fitá-lo. Ele estava delirando ou aquele olhar era de desafio?
- Vamos - estava dizendo a truta. - Pelo menos uma vez na vida, seja decidido.
Me escolha e me condene à morte, ou me deixe viver. A decisão é sua. Eu não decido nada. Sou apenas um peixe, com cérebro de peixe. Não escolhi estar neste tanque. Não posso decidir a minha vida, ou a de ninguém. Mas você pode. A minha e a sua. Você é um ser humano, um ente moral, com discernimento e consciência. Até agora foi um protegido, um desobrigado, um isento da vida. Mas chegou a hora de se comprometer. Você tem uma biografia para decidir. A minha. Agora. Depois pode decidir a sua, se gostar da experiência. O que não pode é continuar se escondendo da vida, e....
- Vai essa mesmo, doutor? - quis saber o garçom, já com a rede na mão para pegar a truta.
- Não - disse o homem. - Mudei de ideia. Vou pedir outra coisa.
E de volta na mesa, depois de reexaminar o cardápio, perguntou:
- Esses camarões estão vivos?
- Não, doutor. Os camarões estão mortos.
- Pode trazer.
*Escritor. Crônica publicada no jornal O Globo, 23/08/2009 e posta no IHU, 24/08/2009

Novo despertar da era digital

Brad Stone*
Karl e Dorsey Gude de East Lansing, Michigan, se lembram de dias mais simples, que deixaram de existir há pouco tempo atrás. Sentem falta das manhãs em que sentavam juntos e conversavam enquanto tomavam café da manhã. Depois, liam o jornal e competiam pela atenção dos filhos adolescentes apenas com a televisão.
Isso já faz mais de um século.
Hoje, Karl Gude acorda por volta das 6h da manhã para checar os e-mails de trabalho, bem como suas contas no Facebook e no Twitter. Os dois meninos, Cole e Erik, começam cada manhã com mensagens de texto, vídeo games e Facebook.
A nova rotina rapidamente se tornou fonte de conflitos, visto que Dorsey Gude sempre reclama que a tecnologia está consumindo o tempo que deveria ser gasto em família. Mas, no fim das contas, até ela sucumbiu, ainda que parcialmente, abrindo o laptop logo depois do café da manhã.
– Coisas que eram inaceitáveis para mim há alguns anos agora são comuns na minha casa– comenta Dorsey. – Como, por exemplo, o fato de nós quatro começarmos o dia em quatro computadores diferentes, em quartos separados.
A tecnologia tem sacudido grande parte das rotinas da vida diária, mas, para muitas pessoas, ela alterou completamente os rituais antes previsíveis do início do dia.
Uma típica manhã nos EUA, nesta era da internet, se resume no seguinte: depois de ficar cerca de seis a oito horas fora de rede – período também conhecido como sono – as pessoas estão cada vez mais acostumadas a acordar e imediatamente ir buscar seus celulares e laptops, às vezes antes mesmo de colocarem os pés no chão e cuidarem de atividades biologicamente mais urgentes.
– Antes as pessoas acordavam, iam ao banheiro, às vezes escovavam os dentes e pegavam o jornal – conta Naomi S. Baron, professora de linguística da Universidade Americana, que escreveu sobre o avanço da tecnologia na vida cotidiana
.– Mas nossas prioridades do dia agora mudaram dramaticamente.
Eu serei a primeira a reconhecer: a primeira coisa que faço é checar meu e-mail.
Os filhos dos Gudes dormem com os celulares ao lado de suas camas, de forma que começam o dia com mensagens de texto em vez de despertadores. Karl Gude, instrutor na Universidade Estadual de Michigan, envia as mensagens para acordar os filhos.
– Nós usamos mensagens de texto como um meio de comunicação interno da casa – confessa.
– Poderia subir até o quarto deles, mas eles sempre respondem às mensagens.
Os Gudes recentemente começaram a desligar seus aparelhos no fim de semana, para compensar a redução do tempo em família.
Em outros lares, o impulso de se conectar na web antes de sair de casa acrescenta uma camada extra de caos à rotina diurna que já eram agitadas. As manhãs dos dias úteis há muito são frenéticas.
Mas as famílias que costumavam disputar o chuveiro ou o jornal agora brigam pelo acesso ao único computador da casa – ou discutem se deveriam estar usando os aparelhos, em vez de conversando uns com os outros.
– Eles costumavam se apegar aos ursinhos de pelúcia; agora não se separam dos celulares nem para dormir – declara Liz Perle, uma mãe de São Francisco, que lamenta a imersão matinal de seus dois filhos adolescentes no mar de tecnologias que os rodeia. – Se as camas deles ficassem longe das tomadas, provavelmente dormiriam no chão.
O aumento do uso desses aparelhos pela manhã é refletido pelos padrões de tráfego online e de telefonia móvel. As empresas de Internet que costumavam observar um aumento de tráfego apenas quando as pessoas chegavam ao trabalho, agora veem um aumento muito mais cedo.
A Arbor Networks, uma empresa de Boston que analisa o uso da Internet, diz que o tráfego online nos Estados Unidos cai gradualmente da meia-noite até por volta das 6 horas da manhã na Costa Leste, e então dá um enorme salto matinal de cafeína.
– É como um foguete lançado às 7 da manhã – analisa Craig Labovitz, cientista chefe da Arbor.
A Akamai, que ajuda sites como o Facebook e a Amazon a lidarem com a demanda dos visitantes, diz que o tráfego decola até mesmo mais cedo, por volta das 6h da manhã na Costa Leste. A Verizon Wireless informa que, em comparação ao ano anterior, o número de mensagens de texto enviadas entre 7h e 10h da manhã saltou 50% durante o mês de julho.
Tanto adultos quanto crianças têm bons motivos para acordar e fazer o login. Papai e mamãe podem precisar se atualizar com as mensagens de colegas de trabalho em diferentes fusos horários. As crianças checam as mensagens de texto e postagens no Facebook de amigos com horários de sono diferentes – e às vezes esquecem suas obrigações diárias ao longo do processo.
Em maio, Gabrielle Glaser, de Montclair, Nova Jersey, comprou para sua filha de 14 anos, Moriah, um laptop da Apple como presente de aniversário. Nas semanas que se seguiram, Moriah perdeu três vezes o ônibus da escola e deixou de levar o cachorro da família para passear por 20 minutos toda manhã, passando a deixá-lo sair apenas brevemente de casa.
Moriah reconhece que tem negligenciado o ônibus e o cachorro, culpando o Facebook, onde a possibilidade de atualizações cruciais de seus amigos a faz se conectar assim que acorda.
– Tenho alguns amigos que acordam cedo e começam a conversar – explica a jovem. – Não há dúvidas que tenho motivos claros para checar essas mensagens.
Algumas famílias tentam impor limites ao uso da Internet pela manhã.
James Steyer, o fundador da Common Sense Media, organização sem fins lucrativos que lida com crianças e entretenimento, acorda toda manhã às 6 horas e passa a hora seguinte em seu BlackBerry, administrando os e-mails de contatos de diferentes partes do mundo.
Mas quando ele encontra sua esposa e quatro filhos, com idades entre 5 e 16 anos, na mesa do café da manhã, laptops e celulares não são permitidos.
Steyer conta que ele e seus filhos são tentados pela tecnologia desde cedo. Kirk, 14 anos, frequentemente usa grande parte de sua cota de uma hora por dia de videogame pela manhã. Até mesmo Jesse, 5 anos, começou a pedir para jogar no iPhone de seu pai todo dia quando acorda. E Steyer comenta que, constantemente, se sente tentado a ficar checando as mensagens que chegam em seu BlackBerry, mesmo durante as horas da manhã reservadas para a família.
– É preciso resistir ao im pulso e sair do modo trabalho para passar ao modo paterno – adverte o empresário. – Mas me manter fiel ao padrão que eu mesmo estabeleci é difícil.

Nós usamos mensagens de texto para acordar as crianças. Poderíamos subir até o quarto, mas elas sempre respondem as mensagens Karl Gude professor universitário “

Eles costumavam se apegar aos ursinhos de pelúcia; hoje em dia não se separam dos celulares nem para dor mir Liz Perle uma mãe de São Francisco “

As famílias disputavam o chuveiro ou o jornal.
Agora brigam pelo micro da casa.

Qual será o futuro de nossos netos?

Leonardo Boff*

Olhando meus netos brincando no jardim, saltitando como cabritos, rolando no chão e subindo e descendo árvores, surgem-me dois sentimentos.
Um de inveja: já não posso fazer nada disso com as quatro próteses que tenho nos membros inferiores. E outra de preocupação: que mundo irão enfrentar dentro de alguns anos? Os prognósticos dos especialistas mais sérios são ameaçadores. Há uma data fatídica ou mágica sempre aventada por eles: o ano 2025.
Quase todos afirmam: se nada fizermos ou não fizermos o suficiente já agora, a catástrofe ecologicohumanitária será inevitável.
A recuperação lenta que se nota em muitos países da atual crise economicofinanceira não significa ainda uma saída. Apenas, que a queda livre se encerrou.
Volta o desenvolvimento/ crescimento mas com outra crise: a do desemprego.
Milhões estão sendo condenados a serem desempregados estruturais.
Quer dizer, não irão mais ingressar no mercado de trabalho, sequer ficarão como exército de reserva do processo produtivo.
Serão simplesmente dispensáveis.
Que significa ficar desempregado permamentemente senão uma lenta morte e uma desintegração profunda do sentido da vida? Acresce ainda que estão prognosticados até àquela data fatídica cerca de 150 a 200 milhões de refugiados climáticos.
O relatório feito por 2.700 cientistas State of the Future 2009 (O Globo, de 14.7/09) diz enfaticamente que, devido principalmente ao aquecimento global, por volta de 2025, cerca de 3 bilhões de pessoas não terão acesso a água potável.
Que significa dizer isso? Simplesmente que esses bilhões, se não forem socorridos, poderão morrer por sede, desidratação e outras doenças. O relatório diz mais: metade da população mundial estará envolvida em convulsões sociais em razão da crise socioecológica global.
Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia de 2008, sempre ponderado e crítico quanto à insuficiência das medidas para enfrentar a crise socioambiental, escreveu recentemente: “Se o consenso dos especialistas econômicos é péssimo, o consenso dos especialistas das mudanças climáticas é terrível” (JB, 14/7/09). E comenta: “Se agirmos da mesma forma como agimos, não o pior cenário mas o mais provável será a elevação de temperaturas que vão destruir a vida como a conhecemos”.
Se provavelmente assim será, minha preocupação pelos netos se transforma em angústia: que mundo herdarão de nós? Que decisões serão obrigados a tomar que poderão significar para eles vida ou morte? Comportamo-nos como se a Terra fosse só nossa e de nossa geração.
Esquecemos que ela pertence principalmente aos que ainda virão, nossos filhos e netos. Eles têm direito de poder entrar neste mundo, minimamente habitável e com as condições necessárias para uma vida decente que não só lhes permita sobreviver mas florescer e irradiar.
Os cenários referidos acima nos obrigam a soluções que mudam o quadro global de nossa vida na Terra.
Não dá para continuar ganhando dinheiro com a venda do direito de poluir (créditos de carbono) e com a economia verde. Se o gênio do capitalismo é saber adaptar-se a cada circunstância, desde que se preservem as leis do mercado e as chances de ganho, agora devemos reconhecer que esta estratégia não é mais possível.
Ela precipitaria a catástrofe previsível.
Para termos futuro, devemos partir de outras premissas: ao invés da exploração, a sinergia homem-natureza, pois Terra e humanidade formam um único todo; no lugar da concorrência, a cooperação, base da construção da sociedade com rosto humano.
Dão-me alguma esperança os teóricos da complexidade, da incerteza e do caos (Prigogine, Heisenberg, Morin), que dizem: em toda a realidade funciona a seguinte dinâmica – a desordem leva à autoorganização e a uma nova ordem, e assim à continuidade da vida num nível mais alto. Porque amamos as estrelas, não temos medos da escuridão.

*Leonardo Boff é coautor com Mark Hathaway de The Tao of Liberation. An Exploration of Ecology of Transformation, N.York, a sair em breve. Teólogo.
A recuperação lenta da atual crise que se nota em muitos países não significa uma saída
Jornal do Brasil, on-line - Segunda-feira, 24 de Agosto de 2009
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/2009/08/24/primeiro_caderno/qual_sera_o_futuro_de_nossos_netos.asp

domingo, 23 de agosto de 2009

Quando Deus entra na pauta

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
A dificuldade de cobrir com exatidão
assuntos referentes a religiões
é notável;
superá-la exige
estudo e
dedicação

DIZIA-SE antigamente que, para não colocar em risco a unidade familiar ou dos amigos, o melhor é não discutir futebol, política e religião. São assuntos que têm a capacidade de mobilizar interesse e emoção intensas em muitas pessoas que com frequência se identificam com time, partido e igreja com grande paixão e pequena racionalidade.
Infelizmente para jornalistas, é impossível não tratar dos dois primeiros desses temas. Religião, curiosamente, aparece pouco por comparação na agenda dos veículos de comunicação brasileiros, inclusive a deste. Neste mês, no entanto, entrou na pauta da Folha com inusitada frequência.
Depois de não dar nenhuma importância ao acordo entre Brasil e Santa Sé assinado em novembro, o jornal despertou agora quando sua ratificação é debatida na Câmara.Mas ainda há muito a fazer. A tramitação prossegue, e uma proposta de "lei geral das religiões" está também em discussão. No dia 11, a manchete deste diário foi sobre a abertura de ação criminal pela Justiça contra dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus. Todas as reportagens publicadas foram corretas.
Mas o jornal deixou de abordar aspectos fundamentais, como quais são os traços que distinguem a Iurd de outras denominações evangélicas. Isso teria ajudado a evitar a percepção de alguns leitores de que a edição permitiu confundir a Iurd com as demais. Também se perdeu a oportunidade de estimular debate essencial para a sociedade sobre a confluência de religião, política partidária e meios de comunicação, que tem a ver não apenas com a Iurd.
A iniciativa do Ministério Público para retirar símbolos religiosos de repartições públicas, noticiada no dia 5, rendeu alguma reflexão sobre a laicidade do Estado e se ela tem sido devidamente respeitada. Mas, de novo, não com muita profundidade.
Similarmente ao Estado, jornal para público amplo e diversificado, como este, deve ser laico. Essa tem sido a profissão reiterada pela Folha. Mas quando temas religiosos são enfocados com mais constância, como agora, surgem acusações de que ela favorece ou persegue esta ou aquela igreja, como ocorre com relação a times de futebol e partidos políticos.
A dificuldade de cobrir com isenção e exatidão assuntos referentes a religiões é clara e notável. Superá-la exige investimento não desprezível de estudo e dedicação. Não só a sensibilidade do público neste terreno é enorme como é imensa a complexidade das diferenças entre as igrejas e no interior de cada uma, conforme se pode ter noção com a leitura do livro abaixo indicado.
Mais do que conhecimento intelectual, lidar com religiões exige apurada sensibilidade. O filme recomendado a seguir mostra como abordar esses temas de maneira sutil, delicada, mas de modo nenhum superficial. Claro que isso é sempre menos complicado de fazer na arte do que no jornalismo.

PARA LER
"Os Monoteístas", volume 2 (As Palavras e a Vontade de Deus), de F. E. Peters, tradução de Jaime Clasen, Editora Contexto, 2008 (a partir de R$ 49,56)
PARA VER
"Nada é para Sempre", de Robert Redford, com Brad Pitt, 1992 (a partir de R$ 9,90)

Postado na Folha de São Paulo, 23/08/2009
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ombudsma/om2308200901.htm