Benjamin Moser*
A Clarice Lispector que se aproximou literariamente de crianças e animais antes de morrer, em 1977, teria aberto seu coração selvagem para um tenaz expatriado? Sua família e amigos acolheram o biógrafo Benjamin Moser, autor de Why This World, que começa a despertar um interesse renovado na obra da autora de A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977), entre outros clássicos nacionais.
Moser tem 32 anos, nasceu em Houston, Texas, e vive em Utrecht, na Holanda. É tradutor e crítico de livros da revista americana Harper?s. Na década de 90, ao fracassar na tentativa de estudar mandarim na Universidade de Brown (ele fala fluentemente oito línguas), encontrou vaga num curso de português, descobriu A Hora da Estrela e se apaixonou pela autora. Começou a devorar o resto da obra quando se inscreveu num semestre de intercâmbio na PUC do Rio. Dedicou cinco anos à biografia, numa viagem que o levou ao cenário dos pogroms russos na Ucrânia.
Sem sensacionalismo mas consciente de que a ofuscação promovida pela própria romancista excluiu um dado biográfico indissociável da obra mais confessional da nossa literatura, Benjamin Moser puxa o pino da granada. Em 1919, sustenta ele, Mania Lispector, mãe da ficcionista, foi selvagemente estuprada por soldados russos num dos inúmeros pogroms pós-revolução bolchevique. Contraiu sífilis e, mais tarde, engravidou mais uma vez de seu marido, Pinkhas. Antes da penicilina, espalhava-se a crença local de que a gravidez purificava o corpo da mulher. Na tentativa de fugir de um genocídio de judeus que só foi superado na 2ª Guerra, Mania e Pinkhas fizeram uma pausa na cidade de Tchechelnik, na Ucrânia, em 1920, para o nascimento da terceira filha do casal, Chaya (vida, em hebraico), que, no Brasil, seria chamada Clarice - do mesmo modo que Mania virou Marieta e Pinkhas, Pedro.
Alguém falou em Brasil?
Sim, a família chegou a Maceió em 1922, a bordo do navio Cuyaba. Na ocasião, Marieta já exibia os sintomas da doença neurológica que iria matá-la no Recife, em 1930. "A menina que se tornou escritora para salvar outra mulher da morte incompreensível", afirma Moser, emerge da nova biografia como uma personagem mais completa e não menos misteriosa. A evocação da tragédia aparece até em A Via Crucis do Corpo (1974), cujo conteúdo sexual foi atacado como "lixo". O tema que une a coleção de histórias em Via Crucis, argumenta Moser, não é sexo e sim maternidade. Até um transexual aparece como a "verdadeira mãe" de uma filha adotiva.
A Clarice moradora do bairro carioca do Leme, que frequentava cartomantes e era descrita como excêntrica, pertencia, diz Moser, a uma linhagem milenar de misticismo judaico sem paralelo na nossa literatura.
O jornal New York Times considerou Why This World uma "bem-vinda e fascinante introdução a uma escritora que devia ser melhor conhecida neste país." O crítico do London Times saudou a biografia classificando-a de "densa e erudita". E uma resenha ainda não publicada pela revista Bookforum vai destacar, em 7 de setembro, a nova "narrativa eletrizante dos últimos anos de Clarice". O livro, lançado nos EUA pela Oxford University Press, ainda não tem título em português, mas sai em novembro no Brasil pela editora Cosac Naify, que, para esta edição, prepara material fotográfico inédito sobre Clarice Lispector.
Do escritório no topo de uma casa do século 17, próxima a um canal da plácida Utrecht, Benjamin Moser falou ao Estado com exclusividade, num português informal, sobre seu sonho de "fazer justiça" no exterior à importância de Clarice Lispector.
Você confirmou em depoimentos, alguns anônimos, o estupro da mãe de Clarice, sugerido na obra mas nunca admitido. Era possível a filha caçula ter sido poupada de detalhes da tragédia que não testemunhou?
Clarice não tinha como não saber que a mãe havia sido estuprada, mas, de fato, foi, indiretamente, uma das minhas fontes. A relação das três irmãs - Elisa, Tania e Clarice - era muito próxima, e Elisa, também escritora, era o baú da família. Elas se uniram ainda mais quando a mãe morreu. E a morte da mãe é diretamente ligada à decisão de Clarice em se tornar escritora. Quando menina, ela contava histórias em que um deus ex-machina aparecia para curar a mãe. Clarice tinha sido gerada para curar a mãe, segundo uma crença da região nativa da família, e fracassou. Ela se culpava porque seu nascimento não havia salvado Mania. Talvez por isso haja uma violência extraordinária em seus livros. E sem entender a origem, não se pode entender a obra, a violência, o lado escuro da cosmovisão de Clarice. Mas este desejo de salvar o mundo pela palavra, que remonta às origens dela, vai segui-la até o fim: a bordo do táxi que a levou ao hospital onde iria morrer, ela ainda contava essas histórias mágicas.
Você acredita que o misticismo de Clarice, muitas vezes chamada de "bruxa", remonta à herança dos judeus de Podolia, a região ucraniana dos ancestrais da escritora?
Para mim, era importante afastar esta simplificação da ''excentricidade''. Clarice era uma mística na milenar tradição da cabala judaica, era fruto da herança familiar e histórica que a precedeu, e era pouco documentada no Brasil. Lembre que ela rejeita o Deus à imagem do homem, no momento em que ele mata a sua mãe. Esta raiva contra Deus é profundamente judaica. Acho difícil compará-la a romancistas internacionais e mais provável ver a obra num contexto místico ou religioso. Uma comparação que me interessa é com o filósofo Ludwig Wittgenstein que, apesar de ter uma voz muito masculina dizia, "a questão mística não é como o mundo é, mas que ele é". Clarice quando adolescente, se perguntava:"Como é o mundo? E por que este mundo?" A procura da Clarice pelo Deus sem nome, o do nome secreto, é tipicamente judaica. Ela buscava o divino numa barata, num pedaço de vidro.
Como vê a irritação de Clarice com quem duvidasse de sua identidade brasileira?
A experiência do exílio estava na carne da escritora. Ela foi criada num ambiente judaico em Pernambuco, mas essa identidade era sempre, naquela época, uma coisa ambivalente. De um lado os judeus tinham orgulho de ser o que eram, mas de outro lado havia um medo real do que poderia acontecer. Ela se criou numa época em que Gustavo Barroso, um antissemita feroz, pertencia à Academia Brasileira de Letras, em que havia um forte movimento integralista aliado ao Nazismo e Fascismo. Ela sempre havia se ressentido de antissemitismo, foi demitida do Jornal do Brasil por ser judia, poucos anos antes de sua morte. Ela era brasileira e entendo a frustração que sentia ao ser sempre indagada sobre a questão de "pertencer". Mas ainda hoje vejo uma certa ansiedade da parte dos brasileiros em insistir na brasilidade dela. Por outro lado, quando publicou Perto do Coração Selvagem, os críticos brasileiros entenderam que havia nela uma coisa nunca vista no Brasil. O poeta Lêdo Ivo disse que ela sempre era uma estrangeira, "um pássaro vindo de longe", e que a estranheza de sua linguagem é um dos fatos mais marcantes da história da língua portuguesa. O Brasil é muito grande, e nem todos têm a mesma experiência pessoal ou histórica. Mas não por isso um é mais brasileiro que o outro. Clarice tinha uma história dela e é também uma história e uma vida que pertencem ao Brasil.
Quando estreou com o romance Perto do Coração Selvagem (1943), aos 23 anos, Clarice foi recebida como uma espécie de "furacão". Apesar de desafiar categorias, você considera que a voz feminina da autora foi menos ouvida pelo lugar único que ela ocupava?
Sim. É engraçado ver que um dos poucos críticos que não gostou de Perto do Coração Selvagem, o Álvaro Lins, disse que o problema com o livro era que as mulheres não sabem se esconder detrás de suas personagens, "a não ser os raros casos de inteligência andrógina". Acho que não há outro escritor no século 20 que tenha se expressado com tanta franqueza. A maioria dos críticos se impressionou com Clarice, mas, nos últimos anos, as mulheres acadêmicas foram as grandes responsáveis pela divulgação e compreensão da obra. Mas eu não caio na categorização feminista. Claro que ela escreveu com a voz da mulher, foi profissional independente. Mas também gostava de falar de maquiagem, foi colunista feminina, e se dizia mãe, dona de casa. Eu não reconheço a Clarice descrita por certas críticas feministas. Aliás, a Clarice de maneira geral não militava. Quando cobraram engajamento social, ela dizia que a vontade de justiça, o conhecimento da condição do pobre que havia testemunhado no Recife, faziam parte da sua visão do mundo desde o começo.
O livro reconsidera o papel da Olga Borelli que acompanhou Clarice nos últimos anos e segurava sua mão quando ela morreu.
Olga causava desconforto entre os amigos antigos da Clarice. Era de certo modo controladora e cuidava da Clarice nos menores detalhes, porque Clarice não conseguia, nos últimos anos, cuidar de si mesma. Desconfio que uma obra como Água Viva (1973) não teria sido publicada sem a ajuda de Olga. Ela publicou um livro refinado, Clarice Lispector: Esboço para um Possível Retrato (1981), e se vê ali que ela era muito mais do que a amiga abnegada. Clarice não confiava no material que integraria Água Viva. Disse: "Isto não presta." Olga viu um livro ali e ajudou a estruturá-lo. Eu entendo, tenho em casa fragmentos da A Hora da Estrela. Ela escrevia em guardanapos, anotava em cheques - era um caos.
O biógrafo é, por natureza, um defensor da importância de seu personagem. Você considera A Paixão Segundo G.H. um dos maiores romances do século 20, mas navegou por trechos menores da obra da Clarice.
No início, eu detestava O Lustre (1945) e A Cidade Sitiada (1949). Fiquei frustrado, não entendia. Quando passei a entender melhor, fiquei fascinado pelo que ela estava fazendo. Não significa que sejam livros fáceis de ler, talvez até por isso haja a recompensa da compreensão. Quem foi que disse mesmo que, ao encontrar defeitos num grande artista, você tem que procurar primeiro os defeitos em si próprio?
IDENTIDADE: "Possuía uma história dela, mas que é também uma história e uma vida que pertencem ao Brasil"
TRAUMA: "Ela não tinha como não saber que a mãe havia sido estuprada e, indiretamente, foi uma fonte"
JUDAÍSMO: "Queria encontrar o Deus sem nome; buscava o divino numa barata, num pedaço de vidro"
*Benjamin Moser, tradutor e crítico literário, autor de Why This World; biografia lançada nos EUA recria dilemas da escritora de A Paixão Segundo G.H.
Reportagem de LÚCIA GUIMARÃES, Estadão, 16/08/2009
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