sábado, 22 de agosto de 2009

Anestesia coletiva

Marcel Gauchet*
‘Estamos sob o efeito de uma
anestesia coletiva sem precedentes
na história’.
“Nós estamos na entrada de um túnel de questionamento
do nosso sistema, e não
numa crise cíclica clássica.
É uma crise moral,
intelectual e
política que vai se
desenrolar ao longo dos próximos anos.
Em outras palavras, nós vemos
‘o mundo pós’ apenas de longe”.

“Nada mais será como antes”, disse Nicolas Sarkozy. Para você, quais serão as principais mudanças?
O retorno ao mesmo me parece inteiramente improvável, ainda que a maior parte dos atores esteja esperando impacientemente o retorno ao “business as usual”, por medo, sem dúvida, de que não precise refletir! Para poder se projetar no futuro, seria preciso, em primeiro lugar, compreender o que está acontecendo. Ora, o que é surpreendente na situação atual é constatar até que ponto a inteligência está desarmada. Nós temos muito mais meios de ação que em 1929, mas bem menos meios intelectuais do que na época.

Entretanto, se fosse tentar desvelar a sua gênese, o que diria?
Me parece que a crise se desenvolve sobre o fundo de importantes transformações, que constituem suas subjacências. Em primeiro lugar, na história, todas as grandes crises foram crises de ajustamento. E está claro que o sistema econômico internacional viveu modificações consideráveis nas relações de força. Nós passamos de um mundo dominado pelos Estados Unidos a um universo policêntrico, no qual as novas potências financeiras emergiram aproveitando-se de trinta anos de acumulação de reservas ligadas ao encarecimento do preço da energia e das matérias-primas. Não estamos falando das novas potências industriais asiáticas. A própria América Latina foi se livrando da dominação norte-americana. Tudo isso coloca a questão do papel do dólar, e da nova distribuição do trabalho, das rendas e dos projetos econômicos em escala planetária. Mas, isso não é tudo.
Nós também conhecemos uma mutação do sistema técnico. A informatização das nossas vidas assim como das nossas sociedades produziu efeitos consideráveis que nós subestimamos. Assim como há muito tempo foi o caso da industrialização ou do aparecimento da eletricidade, ela modificou em profundidade as relações sociais. Porque a informatização se ampliou bem mais que o trabalho humano: ela multiplicou o pensamento em si mesmo, e assim aumentou o potencial da economia da inovação. Doravante, as máquinas fazem o trabalho do cérebro, afetando pelo alto o comando social, e por baixo os critérios da empregabilidade. Nós não dominamos as consequências desse processo.
Enfim, a crise marca o fim da revolução neoliberal inaugurada há trinta anos pelo advento do thatcherismo. Ora, esta revolução era também uma revolução filosófica, segundo a qual só o indivíduo existia, o bem comum se constituindo como resultado da arbitragem pelo mercado dos interesses particulares. Hoje, está evidente que esta visão de mundo encontrou seus limites.

Nós vamos, portanto, passar a outra coisa...
Sim, mas a quê? Porque esta filosofia era de tal modo compartilhada que nós deixamos de refletir sobre a marcha do nosso mundo. E diante da força do consenso, os portadores de um modelo alternativo eram obrigados a se calar! É impressionante ver que os apelos para uma nova regulação são apenas fórmulas verbais sem consistência, sem coerência. Nós estamos na entrada de um túnel de questionamento do nosso sistema, e não numa crise cíclica clássica. É uma crise moral, intelectual e política que vai se desenrolar ao longo dos próximos anos. Em outras palavras, “o mundo pós” nós o vemos apenas de longe.

Devemos recorrer então aos filósofos para fazer emergir novos modelos?
As coisas não acontecem dessa maneira. A invenção de novos modos de pensar é um processo coletivo muito mais complexo. Os filósofos vêm depois, eventualmente para engrossar o movimento. Não foi Marx quem inventou o socialismo, ainda que tenha contribuído muito com ele. “A coruja de Minerva alça seu voo somente com o início da noite”, como dizia Hegel, que sabia do que estava falando.

Esta crise vai embaralhar as cartas dos valores dominantes? Constatar o retorno da comunidade no lugar do individualismo, da lógica do Estado no lugar dos interesses particulares, do desenvolvimento sustentável no do crescimento, do político no do econômico?
Esperamos! Mas a gente não pode se enganar: um provável retorno dos valores só pode surgir de um sonho coletivo que só tem lugar naquelas pessoas que o querem. Ora, no momento, estamos sob o efeito de uma anestesia coletiva sem precedentes na história! É preciso dizer que o nível de proteção social muito elevado do qual nós nos beneficiamos coletivamente cria uma situação de conforto pouco propício para os questionamentos. Contrariamente aos anos 1930, quando a mobilização insurrecional era uma ameaça diária, nós não estamos em uma situação de urgência.

Você percebe a emergência de novos riscos, por exemplo, o retorno do protecionismo em detrimento do desenvolvimento das trocas, ou dos integrismos em vez da equivalência das ideologias?
Eu não sou profeta, mas é provável que a saída da crise se traduza em um aumento da competição entre países que terão reforçado a sua coerência na provação. Se a América perdeu a sua posição hegemônica absoluta nesses últimos anos, não devemos subestimar a sua capacidade de reação ao se mobilizar em torno de um grande projeto nacional. Historicamente, as crises sempre foram, para a América, um momento propício para reencontrar a fé, e tomar seu destino na mão através de decisões chaves.
Os emergentes, como a China, não vão afrouxar facilmente a corda. No futuro, a vantagem competitiva determinante será de natureza política: vencerão os mais criativos porque eles terão sido capazes de mobilizar as energias em torno de um projeto identificador. Isso coloca um grave problema para a Europa, que não tem a armadura institucional de semelhante política e que a amputou em grande parte a capacidade em seus países membros. Ela corre o risco de engrossar o final da fila. Não é hora de regenerar o modelo. Se os países europeus não partirem com um projeto cooperativo para o mundo do tipo deste que eles souberam construir entre si, e se não souberem vendê-lo, esta crise será um cataclismo para eles.

O que poderá mudar “o mundo pós”?
Os destinos sempre se forjam em função de dois pólos: de um lado, a herança, o que se é pela história e que determina a nossa identidade. De outro, a capacidade de propor um objetivo plausível, suscetível de criar uma mobilização coletiva. É o que Barack Obama está tentando fazer na América.

Quando os responsáveis pela crise saíram todos das melhores escolas, como irá evoluir a relação com as elites?
A rejeição das elites e do conhecimento é um risco real. Ela leva a um mau caminho: já que as suas belas teorias nos colocaram contra a parede, para que refletir! Ora, é precisamente de teorias melhores e de ideias mais justas que temos urgentemente necessidade. Mas, a necessidade faz a lei e eu me inclino a um razoável otimismo: a história mostra que a espécie humana nunca se resigna completamente a sofrer sem compreender. Ela se adapta incessantemente e reinventa o mundo.
*Filósofo francês. Entrevista é de VALÉRIE SEGOND e está publicada no Jornal econômicoa francês LA TRIBUNE, 27/07/2009. A tradução é do Cepat. Postado no IHU/unisinos, 21/08/2009

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