sábado, 29 de agosto de 2009

O Cavaleiro do Balde

Franz Kafka*

Consumido todo o carvão; vazio o balde; sem sentido a pá; a estufa bafejando frio; o quarto inteiro atravessado por sopros de gelo; diante da janela as árvores rijas de geada; o céu um escudo de prata contra quem deseja o seu auxílio. Preciso de carvão; certamente não posso morrer congelado; atrás de mim a estufa impiedosa, à minha frente o céu igualmente sem pena, tenho portanto de cavalgar nítido entre os dois e no meio buscar a ajuda do carvoeiro. Mas ele já está insensível aos meus pedidos costumeiros; é necessário provar-lhe com precisão absoluta que já não tenho uma só migalha de carvão e que sendo assim ele significa para mim o próprio sol no firmamento. Devo chegar como o mendigo que estrebuchando de fome quer morrer na soleira da porta e a quem, por esse motivo, a cozinheira dos patrões resolve dar para beber a borra do último café; do mesmo modo o carvoeiro, furioso mas sob o raio de luz do mandamento ''Não matarás!'', tem de atirar no meu balde uma pá cheia de carvão.
Já minha subida deve decidir o caso, por isso vou a cavalo no balde. Como cavaleiro do balde, ao alto a mão na alça --a mais simples das rédeas--, volto-me com dificuldade e desço a escada; mas embaixo meu balde sobe, soberbo, soberbo: camelos agachados no solo não se levantam tão belos estremecendo sob o bastão do cameleiro. Pela rua dura de gelo avança-se em trote regular; muitas vezes sou alçado à altura dos primeiros andares, não mergulho nunca até o nível da porta do prédio. E diante da abóbada do depósito do carvoeiro pairo extremamente alto enquanto ele bem lá embaixo escreve acocorado junto à sua mesinha. Para deixar sair o calor excessivo ele abriu a porta.
-- Carvoeiro! --brado com a voz cava e crestada pelo gelo, envolto nas nuvens de fumaça da respiração. -- Por favor, carvoeiro, me dê um pouco de carvão. Meu balde já está tão vazio que posso cavalgar nele. Seja bom. Assim que puder eu pago.
O carvoeiro põe a mão no ouvido.
-- Estou ouvindo bem? --ele pergunta por sobre os ombros para sua mulher que está tricotando no banco da estufa.
-- Estou ouvindo direito? Um freguês.
-- Não estou ouvindo absolutamente nada
--diz a mulher, inspirando e expirando tranquila sobre as agulhas de tricô, as costas agradavelmente aquecidas.
-- Oh, você ouve sim
--eu brado
-- sou eu, um velho freguês, fiel e dedicado, só que no momento sem recursos.
-- Mulher
--diz o carvoeiro
-- é alguém, é alguém; tanto assim eu não posso me enganar; deve ser um freguês muito antigo que me fala desse modo ao coração.
-- O que há com você, homem?
--diz a mulher e repousando um instante comprime o trabalho manual no peito.
-- Não é ninguém, a rua está vazia, toda a nossa freguesia está servida, podemos fechar a loja durante dias e descansar.
-- Mas eu estou sentado aqui em cima no balde
--exclamo e lágrimas sem sentimento velam-me os olhos.
-- Por favor, olhem para cima, vão logo me descobrir; estou pedindo uma pá de carvão e se me derem duas vão me fazer muito, muito feliz. Todo o resto da freguesia aliás já está servido. Ah, se eu já ouvisse o carvão batendo no balde!
-- Vou indo --diz o carvoeiro e com as pernas curtas quer subir a escada do porão, mas a mulher já está ao seu lado, segura-o pelo braço e diz:
-- Você fica aqui. Se não parar de ser teimoso, subo eu. Lembre-se da sua tosse forte esta noite. Mas por um negócio, mesmo que seja imaginário, você abandona mulher e filho e sacrifica os seus pulmões. Eu vou.
- Mas então conte todos os tipos que temos no estoque; os preços eu grito depois para você.
-- Está bem
--diz a mulher e sobe para a rua.
Naturalmente ela não me vê logo:
-- Senhora carvoeira! --exclamo.
-- Respeitosa saudação: só uma pá de carvão, bem aqui no balde; eu mesmo o levo para casa; uma pá do pior carvão. Evidentemente pago tudo, mas não agora, não agora.
Como as duas palavras ''não agora'' parecem um som de sino e como elas se misturam perturbadoramente ao toque do anoitecer que se pode escutar da igreja vizinha!
-- O que ele quer, então?
--brada o carvoeiro.
-- Nada --grita de volta a mulher.
-- Não é nada, não vejo nada, não ouço nada. O frio está medonho; amanhã provavelmente vamos ter ainda muito trabalho.
Ela não vê nem ouve nada, no entanto desamarra o cinto do avental e tenta me enxotar com ele. Infelizmente consegue. Meu balde tem todas as vantagens de um bom animal de corrida, mas não resistência; ele é leve demais; um avental de mulher tira-lhe as pernas do chão.
-- Malvada!
--brado ainda, enquanto ela, voltando-se para a loja, dá um tapa no ar, meio com desprezo, meio satisfeita.
-- Você é malvada! Pedi uma pá do pior carvão e você não me deu.
E com isso ascendo às regiões das montanhas geladas e me perco para nunca mais.
* Escritor tcheco. Texto traduzido por MODESTO CARONE e publicado na Folha em 22/10/1995

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