Rubem Alves*
Sérgio tinha 3 anos. Nunca havia visto o mar. Ele se assombrou: as areias sem fim de um lado e do outro e o mar sem fim à sua frente. Brincou a manhã inteira sem se cansar. Caminhando ao fim do dia na direção do apartamento em que estávamos ele me fez uma pergunta que, creio, nenhuma outra pessoa fizera antes dele: “Papai, o que é que o mar faz quando estamos dormindo?”
O seu filho havia morrido de maneira trágica. Ele saía do Instituto onde trabalhava e vinha para a minha sala para chorar. Ali, rosto no meio das mãos, as lágrimas escorrendo pelas faces, os soluços sacudindo o peito. Eu não dizia nada. Apenas passava o meu braço pelo seu ombro.
Era a primeira vez que meus filhos viajavam de avião. O Marcos, de 4 anos, observou: “O vozão estava certo. Ele dizia que não viajava de avião porque avião não tem segurança”. Perguntei: “Como você sabe que avião não tem segurança?” Ele apontou para cima e disse: “Não tem segurança lá”. Demorei a entender. Seguranças são aquelas alças que há nos ônibus para as pessoas segurarem...
Era o ano de 1965. Eu e minha família acabávamos de nos mudar para os Estados Unidos, não por decisão alegre mas porque o medo da repressão havia se tornado insuportável. A Igreja Presbiteriana do Brasil da qual eu era pastor me havia acusado de subversivo comunista. Pairava no ar, a cada dia, a possibilidade de prisão. Amigos estavam presos e outros – Paulo Wright e Ivan Motta Dias - foram mortos. Fomos para os Estados Unidos para parar de respirar medo. Lá fomos alojados num apartamento da universidade. Todas as manhãs o ônibus escolar amarelo vinha pegar as crianças, entre elas o meu filho, que ainda não falava uma palavra de inglês. Ir para a escola, para ele, era uma experiência de medo e solidão: ele não entendia o que se falava, ele não era entendido quando falava. Eu caminhava com ele os três quarteirões que iam do nosso apartamento até o ponto de ônibus e fiz isso por dois meses. Já era o outono, o céu muito azul, as árvores nuas, o vento frio. Caminhávamos debaixo de grossos agasalhos e capuzes. Mas chegou um momento em que percebi que era preciso que o Sérgio, meu filho, aprendesse a se virar sozinho. Ele chorou quando lhe disse de ele teria de caminhar até o ponto de ônibus sem a minha proteção. Mas fiquei firme. Até que a manhã chegou... Fui com ele até a porta do prédio, abracei-o e disse palavras de confiança. Ele ficou duro, segurando o choro, me abraçou e entrou no mundo pela primeira vez, – sozinho. Corri para a varanda do apartamento no segundo andar e o fiquei seguindo com os meus olhos, sem que ele tivesse a mão do pai para segurar. Senti que ali se iniciava a dura lição que todos temos de aprender, a lição da orfandade. Há um momento na vida em que estendemos a mão e o que encontramos é o vazio. Ele não olhou para trás. Caminhou, atravessou a rua, seguiu pelo outro quarteirão, virou a esquina e desapareceu. E pensei: “Quem está mais desamparado? O filho ou o pai?...” Tive de enxugar os olhos com as costas da mão.
Lembro-me de uma noite, eu rolava na cama, sem poder dormir. Já era madrugada. Meu filho Sérgio, menino de 4 anos, chamou-me de sua cama. “Papai!” “O que é, meu filho?”, respondi. E ele disse: “Eu gosto muito de você...” Sou agradecido à ditadura por esse momento eterno que não teria acontecido se ela não tivesse existido.
Havíamos ido ao cinema ver o E.T.. Minha filha, cinco anos, chorava convulsivamente ao voltar para a casa. Depois do lanche quis consolá-la das lágrimas que não paravam. “Vamos lá fora procurar a estrelinha do E.T.!”¸ sugeri. Ela me acompanhou. Mas o céu se cobrira de nuvens. Não havia nenhuma estrela visível. Fiquei sem saber o que dizer. Improvisei, então. Corri para trás de uma árvore e disse: “Venha! O E.T. está aqui!” Ela parou de chorar, olhou-me séria e disse com voz firme: “Papai, não seja bobo. O E.T. não existe.” Essa resposta realista e fria pegou-me desprevenido. Me defendi. Armei um xeque mate: “Não existe? Então, por que é que você estava chorando?” O seu choro não era uma evidência de que ela acreditava na existência do E.T.? Mas quem levou o xeque fui eu. Foi isso que ela me respondeu: “Eu estava chorando por isso mesmo, porque o E.T. não existe.”
Meu filho Marcos, um pouco mais que adolescente, resolveu fazer uma aventura: ir de Campinas até a Bahia num buggy velho. Mas logo os desastres começaram. Apareceu no dedão do pé um inchaço que ele desconhecia. Um baiano viu aquilo é diagnosticou: um simples bicho de pé, já sob a forma de “batata”. É um tipo de pulga que vive próximo aos chiqueiros e que procura os dedos dos pés dos humanos para ali depositar seus ovos. O processo de extirpação da batata é simples: com uma agulha vai-se cuidadosamente cortando as bordas da batata até que, solta, ela pode ser retirada sem dificuldade. Não sei o processo usado pelos especialistas baianos para a extirpação da batata, mas o fato é que a pequena cratera redonda que fica no local da batata não cicatrizou e um líquido começou a correr. Concomitantemente às tardes começou a aparecer uma febre que não cedia. Ele resolveu voltar. Levou o buggy a um mecânico para prepará-lo para a viagem. Quando foi buscar o buggy teve uma surpresa: o mecânico havia resolvido fazer um programa com a namorada na praia, o buggy atolou na areia, o mecânico forçou o motor, o motor fundiu... O jeito foi guinchar o buggy até um posto e ficar à espera de um caminhão que estivesse voltando do Norte, vazio, para transportar o buggy até Campinas. A viagem levou dois dias e, quando chegou, era um mendigo magro, imundo, barba grande. Feitos os exames de laboratório para diagnosticar a causa da febre constatou-se que era hepatite. Dois dias depois, às três horas da tarde, ele sentiu uma dor violenta que se espalhava por todo o corpo. Pensamos em cálculo renal, mas as crises de dor se repetiam de forma regular, de quatro em quatro horas. A dor era tão intensa que o corpo ficava alagado de suor. Depois de longa indecisão quanto ao diagnóstico veio o resultado: endocardite bacteriana. O médico não usou de diplomacia. Disse logo que era doença grave, endocardite bacteriana, o coração havia se transformado num canteiro de bactérias letais que poderiam emigrar para o cérebro ou matar. Hospitalizado, as crises de dor se repetiam. Numa noite eu lhe fazia companhia no quarto do hospital. Aí chegou a crise: um moço grande, coberto de suor, contorcendo-se em dor: ali estava o meu filho e eu nada podia fazer. O desejo que me veio foi tirar a minha roupa, deitar-me ao seu lado e abraçá-lo. Acho que naquele momento compreendi que seria uma ternura homossexual: dois homens nus, abraçados numa cama.
No dia seguinte fui para casa, tomei uma mudinha de jabuticabeira que estava num vaso, à espera de ser plantada. Cavei um buraco num canteiro, plantei a mudinha de jabuticabeira e falei, como num ato de bruxedo: “Meu filho ainda chupará muitas jabuticabas dessa jabuticabeira...”
Dela ele já chupou muitas jabuticabas...
Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Postado pelo Correio Popular/Campinas, 09/08/2009/
Postado pelo Correio Popular/Campinas, 09/08/2009/
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