terça-feira, 4 de agosto de 2009

Os desfiles da eternidade

JOÃO PEREIRA COUTINHO*
O único momento em que um adulto
se veste com bom gosto é
no dia do seu próprio enterro

PASSEI O mês de julho em três funerais. Nada a lamentar. Sempre gostei de funerais. Não por motivos filosóficos, ou seja, pelo confronto do homem com a sua mortalidade e blablablá.Gosto de funerais por motivos essencialmente cênicos: qualquer funeral é incomparavelmente melhor do que todas as peças da Broadway a que assisti. As marcações são perfeitas. Os figurantes não desiludem. O ator principal não tem caprichos de estrela e, mesmo deitado, cumpre o papel na perfeição. E raramente esquece as falas.
Sem falar do resto. Gosto do cortejo fúnebre, silencioso e imponente, como num filme de Visconti. Gosto do choro, genuíno ou não, sobretudo se não. E até gosto das risadas: o constrangimento da situação desperta o humor reprimido que há em nós. As melhores piadas que ouvi foram em funerais. As melhores que contei, também. Freud explica.
E depois existe o sábio amador, que aproveita o momento para atacar com suas plenitudes sobre a existência. "É a vida." "Temos que aceitar." "Deus é que sabe." "Melhor assim que sofrer." Já pensei em escrever um manual de ajuda com frases-clichê para usar em funerais. Editoras, aceitam-se propostas.
Mas os funerais não são apenas teatro; em certos casos, são também gastronomia. Portugal conserva alguns traços de ruralidade que, honestamente, não troco por nada. Dos três funerais de julho, um foi na província. Tradução: engordei três quilos. Boas sopas. Bons assados. A doçaria é imbatível, com destaque para o arroz-doce, o pudim de leite e a chocolataria diversa. Por razões insondáveis, os melhores brigadeiros que já provei foram sempre em funerais. Um mistério. E, em matéria alcoólica, relembro os leitores que 2009 é o centenário de Malcolm Lowry. Respeitei a efeméride e bebi em respeito ao mestre. Por pouco não fui curar a ressaca no caixão.
O meu primeiro impulso seria dizer que os funerais são exatamente como os casamentos. Mas hesito. Primeiro, porque "funeral" e "casamento" não passa de uma redundância. E, depois, porque existe uma diferença fundamental entre ambos: figurino.
Os casamentos, no seu exibicionismo festivo, normalmente cruzam a linha do grotesco. Um vestido de noiva é um insulto estético que deveria estar interdito às mulheres. E, sobre o noivo, a dúvida metafísica: por qual motivo um homem adulto aparece no dia do seu matrimônio vestido de pinguim?
Nos funerais, a sobriedade é a regra. Eu já sabia disso olhando para os figurantes: tons sóbrios, paleta cromática restrita. Mas, desta vez, prestei atenção cirúrgica ao ator principal.
Não é novidade para ninguém que os homens há muito deixaram de se vestir como homens. Vestem-se como os filhos adolescentes que têm em casa, uma forma patética de se confundirem com eles e adiar o envelhecimento inevitável. Não sei quando começou o dilúvio. Desconfio que foi, algures, nos anos 60, quando se abandonou o chapéu. Ou talvez tenha sido antes, quando se abandonou a bengala.
Só os funerais corrigem essa traição. Eu sei. Eu vi. Eu toquei. Junto às urnas dos três cavalheiros, passei revista às gravatas. Duas de lã. Uma de seda. Impossível conter a emoção. Alguns dos presentes aproximaram-se de mim, procurando consolar o meu pranto. "É seda!", murmurava eu, incrédulo. "Não é cedo, não; é a vida", diziam eles, com um sorriso de compaixão.
E, depois das gravatas, as combinações: as camisas brancas, primorosamente engomadas, com colarinhos mais hirtos do que o próprio morto. Os ternos, de bom corte e aprumado tecido, entre o cinzento e o azul escuro. Um dos mortos transportava até a evidência nostálgica de um colete. E os sapatos, meu Deus, os sapatos: limpos, engraxados, espelhados. Será possível?Sim, é possível: no mundo vulgar em que vivemos, não deixa de ser irônico que o único momento em que um adulto se veste com bom gosto é no dia do seu enterro.
Por isso espanta que as publicações da especialidade continuem a apostar nos lugares errados. Milão? Nova York? Paris ou São Paulo? Nada disso. Se eu fosse editor de moda, haveria espaço generoso para cobrir os únicos desfiles que interessam. Os desfiles da eternidade. Com fotos dos modelos. Descrições apuradas das coleções. Comparação de tendências nos funerais outono/inverno e primavera/verão. E, de vez em quando, um prêmio especial para o defunto mais elegante do bairro.
*Escritor e colunista da Folha. Texto postado em 04/08/2009

Um comentário:

  1. Adorei o texto. Ironia humor voltados à crítica dos costumes muito bem alinhavados. Bem sacado. Parabéns.

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