JOÃO PEREIRA COUTINHO
Sem Eva, sem maçã,
as mulheres não teriam lingerie para vestir e,
sobretudo, para despir
SEMPRE GOSTEI da passagem bíblica em que Adão e Eva descobrem a sua própria nudez. Não lembram? Eu relembro: foi no princípio do princípio do princípio, em pleno Jardim do Éden.Criados por Deus e respeitadores das Suas leis, Adão e Eva viviam em harmonia e inocência. Até o dia em que a serpente entra em cena para tentar Eva com os frutos da árvore do conhecimento. O resto, como se diz por aí, é história: Eva prova a maçã; Adão, tentado por Eva, também; Deus, compreensivelmente, não gosta da desobediência e expulsa o casal primevo do paraíso.
É então que ambos experimentam pela primeira primeira vez o que nunca sentiram antes: vergonha. Vergonha dos seus próprios corpos nus. Imagino a cena, tal como Botticelli a pintou: os dois, tapando o rosto e as partes, saindo do Jardim em desgraça.Entendo a importância do episódio na teologia cristã. Ao permitir a queda do Homem, Deus preparava os homens para a vinda do seu filho muito amado, que nos acabaria por redimir. Por isso o pecado original é, de certa forma, necessário e salvífico: sem Queda, não haveria redenção. Mesmo John Milton, que tem certo "flirt" com o diabo no seu "Paraíso Perdido" (ah, esses republicanos...), concordava com Agostinho. Adão e Eva são responsáveis por nossa perdição, mas também pela nossa salvação. Brindo a eles.
Mas brindo também por motivos mais básicos e, digamos, menos ortodoxos. A nudez é um tédio. Sem Eva, sem maçã, sem serpente, jamais teríamos o tweed, a maior invenção do vestuário masculino desde que os homens deixaram de usar collants. E, sem Eva, sem maçã, sem serpente, jamais as mulheres teriam lingerie para vestir e, sobretudo, para despir. Talvez exista algo de errado em mim, mas só começo a olhar para Eva com outros olhos quando ela usa as primeiras calcinhas da Humanidade. Exatamente: folhas de árvore a tapar a genitália. Que mulherão.A nudez é um tédio, repito. Mas existe quem discorde. Eu próprio tive experiência pessoal na semana passada. Uma amiga ligou e convidou-me para um dia de praia. Aceitei o convite, na crença inocente de que praia é praia: areia e mar, com gente semivestida pelo meio.
Pobre de mim. Ainda durante a viagem, ela perguntou-me se eu já tinha experimentado o nudismo. Entre o riso e o pânico, respondi que não. Nem o nudismo, nem o canibalismo. Ela sorriu. Sorriso pérfido. Mas então já era tarde para eu saltar de um carro em andamento.
A experiência não foi completamente traumática. A praia estava habitada pelo tipo de seres humanos que Pedro Álvares Cabral encontrou na sua primeira chegada ao Brasil. A única diferença é que nenhum dos índios ali presentes me ofereceu ouro ou pedras preciosas em troca de meus pobres e deslocados trapos. Que, no momento, me pareceram introcáveis por qualquer preço.
Os amigos da minha amiga aproximaram-se e apresentaram-se. Instintivamente, eu recuava meio metro por cada pênis que avançava. Engana-se quem pensa que a melhor forma de combater a ansiedade social é imaginar os nossos interlocutores despidos. Quem inventou essa mentira? Quando a plateia está despida, nós só temos dois caminhos: fugir ou despir também.
Tentei um compromisso: impossibilitado de fugir e prometendo nu total para mais tarde, imaginei a plateia vestida. Não é fácil transformar qualquer genitália em meras peles de vison. Sobretudo quando há vaginas no perímetro. Mas a alternativa é o açougue: carnes penduradas em sua frieza mórbida, capazes de transformar qualquer ser sexual em vegetariano puro. Fiquei pelo vison.
O problema é que não é possível ficar por muito tempo: as horas passam e, com as horas, passa também o efeito da ilusão. Os outros estão realmente despidos. Nós continuamos de smoking.
A vergonha inverte-se e as nossas roupas são objeto de condenação e de escárnio.
Vergonhosamente, cedi. Vagarosamente, fui despindo. Peça a peça. Como uma stripper octagenária, tomada pelo reumatismo.Péssima solução. Derradeiro conselho: para nudistas renitentes, a única salvação está em imitar Usain Bolt, o homem mais rápido do momento. Entrar no mar; sair do mar; deitar na toalha (sempre de costas): qualquer gesto deve ser realizado com velocidade supersônica. Estamos e já não estamos. Somos e já não somos. Sempre em movimento. Apanhem-me se puderem. Razão tinha o poeta, Pessoa de seu nome: depois das vestes, ficam os corpos; mas depois dos corpos, ficam as sombras.
jpcoutinho@folha.com.br Folha de São Paulo, 25/08/2009
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