Luc Ferry*
"A filosofia ainda tem o dever de responder
às três questões fundamentais
da teoria,
da ética e
da sabedoria,
isto é,
do sentido da vida"
O pensamento de Immanuel Kant, o "mestre de Königsberg", está no centro da filosofia moderna. Suas três maiores obras, "Crítica da Razão Pura", "Crítica da Razão Prática" e "Crítica do Julgamento", publicadas entre 1781 e 1790, marcaram uma ruptura definitiva com a metafísica clássica, herdada dos gregos, e inauguraram a era do humanismo secular. Em pleno Século das Luzes, os escritos éticos, políticos e estéticos de Kant pautaram em grande medida o debate de ideias dos últimos 200 anos.
A leitura do filósofo alemão não é fácil, mas Luc Ferry, um dos principais disseminadores da filosofia para o público geral na França, assumiu a tarefa de explicar suas principais ideias no livro "Kant: uma Leitura das Três Críticas" (Difel). Embora escreva para leigos, Ferry faz questão de não simplificar nem banalizar o pensamento que interpreta. Ao contrário, seu objetivo é guiar a leitura de quem queira mergulhar por inteiro na obra de Kant. Já na introdução, ele adverte: "É impossível entrar na filosofia sem tomar o tempo de entender em profundidade ao menos um grande filósofo".
Conhecido por suas críticas ao pós-modernismo, às correntes mais ingênuas do pensamento ecológico e à globalização sem controle, Luc Ferry é atuante em política como membro da UMP, partido do governo francês. Ele foi ministro da Educação entre 2002 e 2004.
Nesta entrevista, Ferry comenta a política da globalização, os paradoxos da modernidade e a promiscuidade entre a arte contemporânea e o mercado.
Valor: Ainda se pode conceber uma filosofia que produza um sistema como o de Kant? O que pode a filosofia hoje?
Luc Ferry: A forma do "grande sistema" é prisioneira de uma ideia herdada da teologia, segundo a qual a filosofia deve totalizar todos os saberes sob a égide de um princípio único. Ninguém pode mais pensar assim. Isso dito, a filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida. Em outras palavras: o que é o conhecimento; como definir o bem e o mal, o justo e o injusto; e como pensar o sentido de nossa vida. Como, em particular, atingir uma serenidade que passa sempre, ontem como hoje, por uma vitória sobre os medos, principalmente o medo da morte, que nos impede de levar uma boa vida. Nesse sentido, o ideal da "grande filosofia" ainda é atual, mesmo se não assume mais a forma metafísica e ilusória do "sistema".
Valor: Kant transpõe a revolução copernicana para a filosofia. De lá para cá, tivemos outras revoluções científicas, como a mecânica quântica e a cibernética. Como elas afetam o kantismo?
Ferry: Articular a filosofia de Kant com a ciência moderna é perfeitamente natural. O mesmo acontece com Newton, que constitui uma parte da física moderna. É preciso compreender as revoluções newtoniana e kantiana por meio do terremoto intelectual e moral que representa a passagem da cosmologia grega para a física moderna, a ruptura abissal que separa o "mundo fechado" dos antigos e o "universo infinito" de Galileu e Newton. Toda a filosofia de Kant tem um único objetivo: construir o novo edifício do humanismo moderno por cima das ruínas de uma ordem cósmica esgotada. Com a ideia de cosmos, os gregos consideravam o universo como um ser ordenado e animado, cujos órgãos foram concebidos em harmonia com o conjunto. Era isso que a física dos antigos conclamava os humanos a reconhecer e sua ética lhes recomendava imitar. Depois da revolução científica, o universo é um caos infinito e desencantado, sem outro valor senão o que lhe atribuímos. É um campo de forças que se organizam, claro, mas em choque, sem harmonia nem significado. É daí que parte Kant: se o mundo é um caos, um tecido conflituoso de forças, passa a ser "do exterior", pela força do espírito, que o sábio reintroduz a ordem e o sentido na realidade. Essa será a tarefa da ciência moderna. Ela não reside mais na contemplação, que os gregos chamavam de "teoria", mas numa elaboração ativa de leis que deem coerência a um universo desencantado.
Valor: O último capítulo trata da ideia de racionalização política no idealismo alemão em face da Revolução Francesa. Hoje, a era das revoluções está superada, mas no lugar do realismo o que se vê é desilusão com a política. Por quê?
Ferry: A ideia revolucionária morreu, desqualificada para sempre pelo fracasso da URSS e demais regimes totalitários. Isso dito, é verdade que a globalização liberal suscita grunhidos de ódio, agrupados em torno da ideia multiforme do altermundialismo. Nos anos 30, na Europa, o mundo liberal provocava dois tipos de crítica: as que evocavam a restauração de um passado perdido e as que imaginavam um "futuro radiante". Umas desembocaram no fascismo; as outras, no sovietismo. Esses modelos de referência foram desacreditados pela história. Porém, não sobrou muito mais que o gesto da crítica, depois que os modelos positivos, que podiam lhe conferir um sentido "construtivo", desapareceram. Teremos de aprender a fazer uma "crítica interna" ao mundo democrático-liberal. Por exemplo, exigir que esse modelo cumpra as promessas de liberdade e igualdade, bastante negligenciadas. Daqui por diante, a crítica interna será a única realmente subversiva.
Valor: O pós-modernismo, que o sr. critica em "O Pensamento 68", está morto? O que sobra depois que tudo foi relativizado?
Ferry: Sim, está morto e enterrado, não inspira mais nada, nem mesmo a crítica. Aliás, toda a história das vanguardas e da "boemia", sobre a qual estou escrevendo um novo livro, repousa sobre um paradoxo. Na fachada, eram "rebeldes" e "antiburgueses". Na verdade, encorajaram a emergência da sociedade de consumo. De fato, era preciso que os valores tradicionais fossem desconstruídos por jovens rebeldes para que os velhos burgueses pudessem enriquecer. Por quê? Isso ficou claro hoje: se minhas filhas tivessem os valores de minha bisavó, elas não comprariam três celulares por ano! Era preciso derrubar as tradições para que o consumo vencesse. Não é por acaso que, hoje, as corporações são os maiores promotores da arte contemporânea!
Valor: O que a estética de Kant diria sobre a arte contemporânea?
Ferry: A arte se afastou explicitamente da ideia de beleza que Kant tentava pensar. Kandinsky e Schoenberg, em 1910, repetem sem cessar que é uma noção "ultrapassada" e derrisória. A estética de Kant é dominada pela questão, na minha opinião apaixonante, de definir os critérios do belo. Kant e Hume se perguntam, por exemplo, como podemos dizer que "o gosto é subjetivo", se há um consenso tão vasto sobre as "grandes obras", mais até do que na ciência. Não se ouve muito que "Mozart é uma porcaria" ou "Vermeer é muito feio". Já a arte contemporânea se tornou uma arte "de mercado". É comprada pelos grandes burgueses, fascinados com a lógica da inovação pela inovação, que pertencia aos artistas "boêmios", mas virou o pão de cada dia desses capitães da indústria. O executivo que vende celulares sabe que, se não inovar constantemente, como Duchamp ou Picasso, está fora do mercado. A arte contemporânea não se interessa pela ideia de beleza. Os empresários tampouco. A originalidade a qualquer preço é mais importante. Nisso estão de acordo com nossa época de globalização liberal.
Valor: As últimas eleições europeias consagraram os partidos ecologistas. A ecologia pode ser um programa verdadeiramente político?
Ferry: Não. Mas ela põe o dedo numa ferida maior, não tanto a questão ambiental, mas aquilo que chamo de "privação democrática". No universo globalizado, as políticas nacionais são privadas, pouco a pouco, de todos os meios eficazes de ação e reforma. Os altermundialistas se enganam ao acreditar que, atrás dos mercados financeiros, há "peixes grandes", "os poderosos", que, como marionetistas, manipulam às escondidas. Se fosse verdade, seria ótimo: pelo menos, haveria um culpado! Mas isso não passa de uma visão ingênua. O mundo, dominado pelos mercados financeiros, nos escapa e a questão da "governança mundial" é mais importante que nunca. Como retomar as rédeas? Eis a questão central da política moderna e mesmo a única que importa.
Reportagem de DIEGO VIANA, para o Valor, de Paris, 21/08/2009
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