domingo, 12 de setembro de 2010

Patrica Melo - entrevista


Acqua toffana foi seu primeiro livro, publicado em 1994, em um momento de renovação no mercado editorial brasileiro. Um inédito sarau eletrônico foi armado para o lançamento em São Paulo e no Rio de Janeiro, em que artistas como Carolina Ferraz e Marcelo Tas, dirigidos por Tadeu Jungle, surgiram em um imenso videowall fazendo a leitura de trechos da obra. O matador saiu em 1995 e foi um grande sucesso, não só aqui, mas traduzido para diversas línguas, como o russo e o grego, e ganhador dos prêmios Deux Océans, na França, e Deutscher Krimi, na Alemanha. Depois, em 1998, veio Elogio da mentira, também um título com farta carreira internacional, publicado na Espanha, Holanda, Finlândia, China e Suécia. Certamente em vista dessa projeção no exterior, em 1999, a Time Magazine incluiu Patrícia Melo entre os 50 líderes latino-americanos do novo milênio. Aqui, em 2001, recebeu o Jabuti de melhor livro do ano com Inferno. Na sequência, escreveu Valsa negra e Mundo perdido, continuação de O matador, e há dois anos lançou Jonas, o copromanta. Patrícia também trabalhou como roteirista. No cinema, ficou conhecida pela adaptação do livro Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca, que, por sua vez, adaptou o romance dela O matador para as telonas sob o título de O homem do ano. Assinou ainda, entre outros, o roteiro de O xangô de Baker Street, livro de Jô Soares. Escreveu para a TV participando da equipe de Walter Jorge Durst e Walter Avancini, da rede Globo, viveu em Portugal e agora está de mudança para Lugano, na Suíça, com o marido, o maestro John Neschling. Ladrão de cadáveres é o título que acaba de sair. Nesta entrevista, Patrícia Melo conta o tema de seu próximo livro, fala de seu método de trabalho e da criação de seus personagens.


Quando percebeu que queria escrever livros?
No momento em que vi como era difícil trabalhar em cinema e televisão no Brasil. Há 15 anos, a televisão e o cinema eram meios ainda muito difíceis, até havia fórmulas para a televisão, mas o cinema estava completamente estagnado. A gente depende também de uma equipe grande e é um ritmo muito lento – quando digo lento, são sete, oito, dez anos de sua vida dedicados a um projeto. Francamente, não tenho mais paciência. Quando escrevi Acqua toffana, foi uma espécie de libertação. Percebi que a literatura era um espaço no qual podia trabalhar a minha vocação de contadora de histórias de maneira livre, sem depender de casting, de budget... De certa forma, foi meio casual, porque comecei a escrever esse livro pensando que poderia ser futuramente um projeto cinematográfico, o que acabou não acontecendo. No meio do projeto, saquei que era um livro e aí aconteceu tudo.
Mas o ritmo para publicar livros também pode ser muito lento. Não tive essa experiência difícil, comum no Brasil, da busca da editora. Acho que foi um pouco de sorte, porque, naquela época, as editoras estavam mudando a política em relação aos escritores nacionais. Até então, era muito mais fácil comprar originais e traduzir do que publicar autores novos. E peguei bem a transição, quando várias editoras começaram a publicar livros novos de autores brasileiros, como Reinaldo Moraes e Marcelo Rubens Paiva.

Quais escritores, digamos, fizeram sua cabeça?
Alguns autores foram importantes para mim no sentido de serem estimuladores da busca por dicção própria, do meu caminho. Dostoiévski, por exemplo, pela maneira como trabalhava os personagens. Joyce [James] pelo delírio linguístico que faz, que hoje em dia nem é mais delírio. Esse jorro dele, essa mistura, essa incorporação de todos os elementos da modernidade, que vai da propaganda aos diferentes barulhos da rua. No Brasil, o Rubem Fonseca, que foi o primeiro autor a incorporar urbanidade, desespero, loucura e o caos do mundo urbano na ficção brasileira.

Quem você tem gostado de ler hoje?
Amós Oz me comove muito. Gosto tanto de sua prosa que resolvi ler Only Yesterday, do Agnon [Shmuel Yosef], depois de o ver citado na biografia de Oz. O livro de Agnon conta a história da formação do Estado de Israel e nos faz entender um pouco a prosa contemporânea hebraica do David Grossman.

Você tem algum método para inserir realidade na sua ficção?
Como funciona seu trabalho de pesquisa? Não sou muito metódica na pesquisa. Aliás, sempre falo que não dá para chamar de pesquisa, porque é uma coisa tão caótica, tão voltada para o que quero em termos de ficção, que não tem nada a ver com a realidade. A realidade pouco me importa, porque não é crível. A maneira como as coisas acontecem muitas vezes, se transposta para a ficção, certamente vai soar como ficção mal realizada, mal escrita. A realidade é muitas vezes sem sentido e na ficção você tem de ter uma aparência de verossimilhança e coerência. Assim, a realidade não é um bom espelho para a ficção. Ao contrário do que dizem, não acho que a vida imita a arte. A vida é matéria bruta, toda desarticulada.

Como escolhe os temas de suas obras?
Como surgiu e qual é o tema de seu novo livro, Ladrão de cadáveres? A escolha tem relação emocional, mas, na maioria das vezes, isso só fica claro depois. Os últimos anos foram de muitas perdas para mim. Perdas de referências, de afetos, de pessoas importantes na minha vida, como a morte da minha mãe. O romance Ladrão de cadáveres fala basicamente sobre perdas e como lidar com elas. Perdas de referências morais, de valores éticos e de perda no sentido de morte, da necessidade de se conscientizar essa morte e de ter um corpo para entregar. Assim, acho que você sempre é mobilizado por uma questão que está ali na sua vida, no momento, ou consciente ou de forma imperceptível.
Mas o livro trata também da maldade humana. Ladrão de cadáveres originalmente é o título de um conto clássico de Stevenson [Robert Louis], baseado em fatos reais, quando a medicina comercializava corpos para o desenvolvimento da anatomia como ciência. Stevenson usou um escândalo da época – a história de um médico que usava corpos de mendigos – para escrever sobre a dessacralização do corpo, no sentido de ele passar a ser objeto da ciência. Isso no final do século 19. Usei o título no meu livro porque, apesar de ele falar sobre perda, o eixo é a crueldade. E é justamente a crueldade que o relaciona com a história de Stevenson. Meu livro fala de um cara que mora em São Paulo, tem uma experiência ruim profissionalmente e se muda para Corumbá. Um dia, ele vai pescar em um lugar supersolitário, paradisíaco, onde vê um garoto, filho de uma das famílias mais importantes do lugar, morrer em um acidente com um monomotor. Esse acidente comove a cidade, exatamente como estamos acostumados a ver nos jornais hoje em dia. Então, esse cara começa a perceber, de maneira tímida, a possibilidade de explorar aquela comoção da cidade e da família para ganhar dinheiro. Ele começa a chantagear a família dizendo que tem o corpo e quer dinheiro para devolvê-lo. Quando a gente vê um crime horroroso, pensa: como alguém é capaz de fazer isso? Achamos que é algo que exige uma anormalidade enorme, uma carga extra de maldade. No livro, eu quis responder a essa pergunta, mostrando que gestos de crueldade são feitos com maldades rotineiras. Ao contrário do que a gente pensa, não é uma maldade anormal, é uma crueldade que é nossa, que é humana. A gente tem a ilusão de que a maldade é um elemento externo ao homem, de que ele é bom e aprende a ser mau. Eu acho que é exatamente o oposto. A maldade é intrínseca à composição do ser humano. A bondade é que é um aprendizado lento.


Seus personagens são sempre muito bem construídos. Você se apega a eles?
Máicol, que surgiu em O matador e voltou em Mundo perdido, vai aparecer novamente em algum outro livro? Digo que Máicol é meu Ripley [personagem de uma série de livros de Patricia Highsmith, que deu origem ao filme O sol por testemunha. Não consigo matá-lo e tenho, no mínimo, mais uma história para ele. Quero colocar o Máicol vivendo fora do Brasil, trabalhando na Bolívia, na Colômbia, quero fazê-lo mais velho. Gosto muito desse personagem.

Já tem o próximo livro em mente?
Sim e o tema tem a ver com a questão do lixo, com lixo da rua. Sempre penso na quantidade de lixo que as pessoas produzem. Viver é produzir um lixo enorme. Bauman [Zygmunt] fala em A modernidade líquida que o lixo é o produto mais importante do atual momento de nossa sociedade, o mais visível, problemático, e pensamos pouco nele. Em São Paulo, começaram a surgir os catadores de lixo, figuras quase das cavernas, e estou pesquisando um pouco sobre eles.

Como é seu dia a dia de escritora?
Quando começo a escrever um livro, acordo e vou para o computador. Trabalho até a hora que aguento. Tem dias que isso significa seis, oito horas. O ritmo é importante para mim. O ritmo da leitura tem relação com o da narrativa e também com o da escrita. Se você parar e voltar a escrever em três dias, por exemplo, perde o fio dourado que atravessa a história. Por isso, escrevo pelo menos três horas diárias. Sou cheia de caderninhos. Agora, estou começando os caderninhos do próximo livro, em que vou anotando um monte de coisas. Quando vou escrever, já sei o que é o livro pelos caderninhos. Aí, vou juntando os ingredientes como em uma sopa.

Você imagina o leitor quando escreve?
Não. Acho que sou o modelo de leitor, porque gosto muito de ler e me aborreço como leitora. Sou minha própria medida. Edgar Allan Poe dizia que é preciso fazer uma narrativa que não fosse interrompida. Daí talvez o barato que ele tinha de escrever contos, que podem ser lidos em uma sentada. Tenho uma preocupação parecida, pois acho que livros têm de ser lidos em um curto período de tempo. Acho que não é só o ritmo que conta, mas a transcendência também. Quando vamos ao cinema, por exemplo, a luz cai em cima da gente e, por duas horas, estamos em outra, realmente transcendemos. Eu falo que a literatura é a transcendência difícil, porque o mundo não permite mais a introspecção. O momento que ficamos ali, na nossa conchinha, focados naquele mundo de pura imaginação, as coisas ficam nos chamando, o telefone toca... Nesse sentido, também penso no leitor. Quero que meu livro seja lido em pouco tempo, porque o transporte para a fantasia já é tão difícil que, se for dissolvido ou rolar em doses homeopáticas, não acontece.

A literatura, a seu ver, pode ter uma função transformadora?
Não acredito que a literatura possa ter uma função, que ela possa ser uma possibilidade de reflexão, de alteridade. Literatura é literatura, não tem função nenhuma e você não pode esperar isso dela. Como autora, não posso ter essa expectativa e nem posso escrever pensando nisso. Lógico que, como leitora tenho, essa experiência, completamente desvinculada das expectativas do autor. Essas são as minhas inquietações, é a minha busca. Agora, atribuir esse papel à literatura, acho que é roubada.

Para finalizar, você, que já viveu em vários lugares, acha que o comportamento das pessoas está ligado à cultura na qual elas foram educadas?
Sim, acho que as pessoas são culturalmente diferentes. Sinto essa diferença na minha vida social na Europa e no Brasil. A maneira como as pessoas se comportam e como expressam sua afetividade é bem distinta. Tenho uma história do Johnny [John Neschling, o maestro] que é engraçadíssima e mostra bem como funciona a cabeça dos suíços. Ele tinha parado de fumar. Na verdade, estava se enganando e, então, saía na varanda do nosso apartamento em uma pequena cidade da Suíça, fumava um cigarro e arremessava a bituca longe. Fez isso umas três, quatro vezes. Ele era conhecido por ser o maestro da cidade e um dia o delegado perguntou para ele: “Maestro, você fuma?” E ele respondeu que não e explicou que tinha fumado muitos anos, mas agora tinha parado. Aí o delegado perguntou se ele fumava Hollywood, e ele confirmou. O delegado, então, concluiu: “Maestro, acho que o senhor voltou a fumar, porque encontramos bitucas perto de onde o senhor mora e, pelo estudo da projeção delas no asfalto, imaginamos que só podem ter vindo de sua sacada”. É impossível imaginar uma cena dessas em São Paulo, não é? A gente percebe a diferença em como são exercidas a maldade, a bondade, a generosidade...©
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