JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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Pirotecnia vácua do filme "A Origem" não se compara
à elegância e à inteligência de "Amnésia"
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ASSISTO ao último filme de Christopher Nolan, "A Origem". Prefiro não fazer comentários. A última vez que comentei um filme de Nolan ("Adultos em Pijamas", 29/7/ 2008, sobre o seu "Batman - O Cavaleiro das Trevas"), choveram cartas de leitores com insultos e até ameaças de morte.
Apenas digo que tenho pena. E saudades. Christopher Nolan já foi um diretor interessante. Dez anos atrás. Assim de memória, sou capaz de evocar um filme que trata, precisamente, da dita cuja: a memória, sim, em "Amnésia", esse prodígio de escrita e direção que melhora como os vinhos: os anos passam e cada visão adquire um sabor distinto.
Foi o que fiz: depois de "A Origem", cheguei em casa e tentei raspar da cabeça a pirotecnia vácua do último filme de Nolan com a elegância e a inteligência de um dos primeiros.
Cena do filme AMNÉSIA.
"Amnésia" (2000) é a história de Leonard (Guy Pearce), um investigador de seguros que procura vingar o homicídio da mulher. Mas Leonard tem um problema, causado pelo assalto doméstico que levou ao crime: uma forma de amnésia a curto prazo que o impede de recordar os acontecimentos mais recentes.
Pergunta fatal: como investigar as pistas do homicídio, encontrar o assassino e até executá-lo se cada passo de Leonard apaga os passos anteriores?
A solução é cartografar esses passos no sentido mais básico do termo: tatuando no corpo informações relevantes sobre o caso; fotografando (e catalogando) as pessoas em volta que ele vai conhecendo; espalhando mapas e bilhetes pelo quarto como se a sua vida fosse uma guerra permanente contra o esquecimento; e o seu quarto de hotel, uma espécie de quartel-general de informações e contrainformações onde Leonard planeja as suas estratégias para encontrar, reconhecer e derrubar o inimigo.
O filme de Nolan impressionou-me, não apenas pela natureza engenhosa da história. Mas porque não voltei a ver no cinema moderno uma tão profunda reflexão sobre a nossa específica temporalidade: sem memória, isto é, sem a capacidade de relembrarmos o passado, somos incapazes de reconstituir o nosso mundo e a nossa identidade.
Somos nada, no fundo. Apenas escravos do presente; escravos da fugacidade do tempo, obrigados a aprender, e a reaprender, sempre e sempre, não apenas as informações mais triviais (nomes, lugares, rostos, conversas), mas também sentimentos primevos como a perda e a tristeza.
Haverá maior suplício? É Leonard quem o descreve em monólogo assombroso: ele desperta todos os dias, como se todos os dias fossem normais; apercebe-se que um dos lados da cama está vazio; questiona onde terá ido a mulher; e, finalmente, encontra no corpo, escrito na sua carne, a lembrança de que houve um roubo imperdoável.
Todos os dias Leonard experimenta essa dor como se fosse a primeira vez. Uma dor repetitiva, circular, sem possibilidade de superação. Não existe superação porque não existe tempo para o luto. E não existe tempo para o luto porque não existe memória de uma perda.
Nolan é primoroso ao semear pelo filme essas metafísicas inquietações: para que serve a vingança se não temos memória da pessoa que vingamos? Pior ainda: para que serve a vingança se não teremos memória da própria vingança?
E, com a ausência da memória, vem o simulacro venenoso que a procura substituir: as nossas ficções pessoais, que tomamos por verdades inabaláveis; e inabaláveis porque somos incapazes de as testar ou corrigir temporalmente.
Leonard pode grafar na carne os fatos que lhe parecem incontestáveis.
Mas não existem fatos incontestáveis. A realidade será sempre uma interpretação pessoal; uma interpretação onde projetamos os nossos desejos e as nossas fraquezas.
Leonard transforma-se num fundamentalista e digo "fundamentalista" na acepção mais pura do vocábulo: aquele que abraça cegamente a palavra escrita pela impossibilidade de a confrontar com outras versões da mesma realidade.
O resultado dessa cegueira só pode ser um: a distorção da realidade, que passa a representar o que queremos que ela seja e não o que ela é. Começamos perdidos no labirinto do esquecimento. Terminamos mais perdidos ainda no labirinto das falsas certezas.
"Amnésia" é um dos grandes filmes da década. Revê-lo, hoje, depois de três horas de mediocridade, lava a alma mas entristece qualquer cinéfilo.
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*João Pereira Coutinho (Porto, 1 de Junho de 1976) é um jornalista e comentador político português.
Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, acabando por se licenciar em História (na variante de História da Arte), pela Universidade do Porto. Prossegiu estudos na Universidade Católica Portuguesa, onde se doutorou em Teoria e Ciência Política Contemporânea e é, actualmente, Professor Convidado.
Fonte: Folha online, 07/09/2010
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