sábado, 11 de setembro de 2010

A tradição contra o presente degradado

Foto da Internet

"Refém do passado, o tradicionalismo representa uma falsa resistência",

LUÍS AUGUSTO FISCHER*

O Tradicionalismo, entre tantos efeitos que causa, gera também o de representar um limite para o pensamento crítico de esquerda. Sendo uma prática social em muitos sentidos conservadora, o que é rechaçado pela visão crítica do mundo, ele tem no entanto um charmoso aspecto de resistência contra a massificação, contra a macdonaldização do mundo, contra o nivelamento de tudo e de todos pelo único valor que o mercado reconhece como válido, o dinheiro, contra o quê o pensamento crítico também está. Mas o Tradicionalismo faz a apologia do passado, enquanto a visão crítica vive a elaborar o desenho de uma utopia futura, e nisso são antípodas (se bem que alguns setores de esquerda fazem também a apologia de algum passado). Essas reflexões quase vadias ganham atualidade, entre nós, todo setembro, por esse especial evento, tão efusivo e notável, o Acampamento Farroupilha, que mais uma vez se instala na cidade.
É o seguinte: num esquema bem sumário, pode-se dizer que o pensamento crítico olha para o presente como um tempo degradado, marcado pela exploração dos indivíduos, que se mantêm alienados por força da ideologia. Essa degradação do presente fica visível quando contrastada, pela esquerda, com alguma utopia, quer dizer, com um projeto de sociedade nova, em que tais marcas perversas não existiriam. Variando bastante conforme o pensador que estivermos considerando e o grupo político concreto, todas essas mazelas seriam combatidas e idealmente banidas do cenário, e então o tempo seria de felicidade, sem exploração, com os indivíduos conscientes de suas potencialidades, fora do alcance da ideologia mistificadora. No socialismo digamos clássico, essa utopia se chamava sociedade sem classes.
Mas o mesmo presente degradado também é objeto de crítica, ou menos que isso, é a raiz do desconforto para os que inventaram o Tradicionalismo, o gaúcho e outros. Os cultores do que chamam de tradição também olham para o presente e veem um tempo degradado, em que existe um mal-estar difuso mas forte gerado pelo que consideram alienação, não em relação a qualquer utopia socialista futura, mas em relação ao passado, visto como um quadro muito atraente, menos degradado, menos alienado, mais humano, no limite um quadro ideal da vida.
No Tradicionalismo que se tornou hegemônico entre os gaúchos, esse passado é o do mundo da estância de criação extensiva de gado, com pouca tecnologia, protagonizado quase só por homens, que desafiam forças naturais (a intempérie, o animal, o limite do próprio corpo) e humanas (inimigos, gente de outra estância ou genericamente de outra bandeira), assim como, espelhadamente, se desafiam entre si, em trovas e lutas simbólicas por alguma supremacia. É uma ética de duelo, como uma vez observou meu amigo Homero Araújo acerca do tipo de força que se encontra, por exemplo, nos romances de Tabajara Ruas, em versão épica, nos contos de Sérgio Faraco, em versão melancólica (temperamento que também está na poesia de Aureliano de Figueiredo Pinto), na ficção de Luiz Sérgio “Jacaré” Metz, em versão sublimada, quase religiosa. A mesma ética de duelo que, em versão fanfarrona, faz sucesso em canções bravateiras de grande prestígio.
A força da utopia socialista, projetada sempre para o futuro, tem uma capacidade crítica muito superior à força da saudade do passado (tanto na versão tradicionalista gauchesca, com saudade da estância, quanto na versão de parte da esquerda, com saudade do minifúndio familiar), mas as duas se dão as mãos quando se trata de perceber o presente como degradado, como um tempo em que não se pode ser legitimamente feliz, em que as melhores características humanas adormecem abafadas pela opressão, em que o mercado tudo ordena e comanda. (Há outras utopias regressivas entre a esquerda: os saudosistas do regime soviético, com elogios do tipo “A tarifa do metrô nunca aumentou durante o comunismo”, e os saudosistas mais remotos ainda, que consideram a experiências das Missões como um ideal fenecido, em que supostamente todos trabalhavam conforme suas possibilidades e ganhavam conforme suas necessidades.)
Além disso, o Acampamento Farroupilha coloca em cena, concretamente, um particular charme da visão de mundo tradicionalista. O socialista, em qualquer de suas versões, olha com um gosto digamos histórico para o tradicionalista que constrói com as mãos um galpão, faz sua própria comida e nomeia com acerto os variados pelos de cavalo, porque ali está um indivíduo que mantém relações autênticas com o meio e a linguagem, relações não-alienadas, que demonstram um controle soberano daquele sujeito sobre o trabalho, que é (ou era, antes da mais recente revolução tecnológica, a da internet, e antes da hegemonia mundial do capital financeiro em seu momento mais abstrato, mais afastado da produção) o motor do mundo.
O homem que transforma o mundo e dá o nome certo das coisas é, aos olhos críticos do presente, um homem mais senhor de si e da natureza, do trabalho e da linguagem. É um sujeito dotado de uma aura de autenticidade, um artesão, um homo faber, um resistente à alienação e à reificação do mercado, um testemunho do passado anterior à degradação da vida moderna. É um artesão íntegro, não um operário especialista.
Mas o gosto de ver esse indivíduo, pensa o mesmo socialista, perde força quando se sabe que aquela prática é apenas um intervalo na vida, um momento isolado, um período de férias concedido; logo todos vão voltar para a opressão cotidiana. Quer dizer: aquela prática cercada da aura de autenticidade não tem a força da transformação, em direção a alguma utopia, porque logo acaba o acampamento. Para o socialista, o mal-estar com o presente retorna; para o tradicionalista, também?

Riobaldo, gaúcho

Às vezes, a duração e a ênfase do Acampamento Farroupilha – há muitos que tiram suas honradas férias para passar todo um mês acampados – me fazem lembrar certas passagens do grande romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Mineiro, Guimarães Rosa escreveu sobre o mundo do sertão brasileiro, que é também um mundo masculino, patriarcal, guerreiro, a cavalo, em que grupos lutam à morte muitas vezes apenas para preservar ou restaurar o poder discricionário de um chefe político sobre outros, sem qualquer horizonte democrático à vista.
É um romance sensacional, por tudo e mais isto: o personagem-narrador, Riobaldo, que no passado foi jagunço a serviço desses senhores da guerra e que no presente é um fazendeiro a relembrar sua vida, vive uma intensa, rica, literariamente produtiva ambiguidade entre a mera confirmação do “status quo” sertanejo e a soberana invenção de algo que ele mesmo não sabe bem o que é, mas que ele percebe existir; algo além daquilo que se vê, algo que diz respeito à individualidade, à autonomia do sujeito; algo que não cabe no mundo patriarcal e guerreiro, mas que mesmo assim tem grande valor. A forma mais corrente dessa ambivalência está representada por sua constante busca pelo sentido de Deus e da natureza do Mal, tema este reiterado às vezes de modo alucinante no curso do relato.
Há passagens nesse romance – que nós deveríamos considerar como parte integrante do melhor mundo gauchesco, talvez mesmo como o melhor romance sobre gaúchos jamais escrito, tanto quanto Jorge Luis Borges é melhor ensaísta gaúcho de todos os tempos – em que Riobaldo aprofunda suas dúvidas, sem renegar o tanto de angústia que nasce da posição crítica (nada de socialismo há em seu horizonte, claro). São momentos em que aparece sua esperteza, sua intuição poderosa, suas tiradas de humor brejeiro – “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” –, sua verve, seu traço humano mais interessante.
E há outros momentos em que, pelo contrário, ele manifesta uma profunda saudade do tempo em que não se precisava pensar, porque tudo já estava decidido, pelos chefes e pela tradição. Não são tão raras as vezes em que Riobaldo, no miolo do relato de alguma passagem particularmente angustiante, sonha com uma grande assembleia em que os mais sábios se reunissem para decretar de uma vez por todas a não-existência do Demônio, de forma a acalmar a consciência dos atormentados como ele, ou imagina uma utopia regressiva, o “fazendão de Deus”, tão parecido com o mundo de Canudos, aquele outro sertão, em que todos trabalhassem e cantassem hinos, sem parar jamais, numa espécie de acampamento farroupilha interminável.
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*Professor de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da UFRGS, em artigo publicado no jornal Zero Hora, 11-09-2010.
Fonte: IHU online, 11/09/2010

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