segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Crise do capitalismo provoca retorno às fontes da democracia


Autor do livro "Democracia contra capitalismo", entre outros,
o economista francês Thomas Coutrot resgata,
em entrevista à Carta Maior, um fato central na emergência
desta revolta globalizada: ante o esgotamento do modelo capitalista e
 neoliberal e o descrédito dos dirigentes políticos,
 os povos saem à rua e encarnam uma espécie de retorno à raiz da democracia.
"A novidade está precisamente na crítica radical
da representação política", defende.

Eduardo Febbro - Correspondente da Carta Maior em Paris

Há dez anos, Bin Laden e seu sócio carnal, o ex-presidente norteamericano George Bush, globalizaram o terrorismo de massa e a repressão em escala mundial. O Plano Condor em escala universal. Exatamente uma década depois, o movimento dos indignados globalizou o protesto social e a rejeição de um modelo de depredação social, de abuso e de consumo cujo controle está reservado a uma elite violenta e impune. Os protestos que levaram para as ruas dezenas de milhares de pessoas no mundo vem dar corpo a uma corrente moral e política cujos precursores levam anos propondo modelos alternativos ao sistema de destruição neoliberal.
Se Sthéphane Hessel e seu livro “Indigne-se” conseguiu congregar um planeta indignado, há autores cujos ensaios já continham muitas das consignas que agora são escutadas nas ruas do mundo. O economista francês Thomas Coutrot é um deles. Em 2005 publicou um livro que está no coração da crítica formuladas pelos indignados: “Democracia contra capitalismo”. Em 2010 saiu outra obra que representa muito bem a essência do que os indignados reclamam em Paris, Londres, Nova York, São Paulo, Tel Aviv ou Berlim: “Terrenos para um mundo possível: voltar a dar raízes à democracia”.
Economista e estatístico, vice-presidente da ong ATTAC desde 2009, membro da Rede de alerta sobre as desigualdades, Thomas Coutrot resgata um fato central na emergência desta revolta globalizada: ante o esgotamento do modelo capitalista e neoliberal e o descrédito dos dirigentes políticos, os povos saem à rua e encarnam uma espécie de retorno à raiz da democracia. Para Coutrot, a sublevação do mundo ocidental não seria possível sem as revoluções árabes que as precederam.

Para você, o movimento dos indignados significa um retorno às fontes da democracia. No entanto, até agora, os responsáveis políticos do planeta, ou seja, aqueles que foram eleitos mediante processos democráticos, fazem ouvidos surdos às reivindicações deste movimento mundial.
O retorno às fontes da democracia significa a intervenção do povo. É então quase normal que os dirigentes políticos se façam de surdos porque não estão de acordo com isso. Eles consideram que são os representantes do povo e que, por conseguinte, corresponde a eles conduzir os assuntos do povo. De fato, os dirigentes políticos não querem ver que no movimento atual há uma crítica fundamental contra o sistema tal como ele funciona hoje. Será necessário muito tempo e muito trabalho para que a classe política aceite ver que seu papel está sendo questionado. Por isso, o essencial de tudo isso não está tanto na crítica ao sistema financeiro.
Isso não é novo. A novidade está precisamente na crítica radical da representação política, esse grito mundial que diz: “vocês não nos representam”. As pessoas estão dizendo: não é porque votamos em vocês que vão fazer o que bem entendem entre duas eleições contra a nossa opinião. Essa é a inovação fundamental. A reclamação de um retorno às fontes da democracia, à democracia real, é algo histórico.
Muitos analistas criticam os indignados pelo fato de carecerem de lideranças visíveis e de uma estrutura vertical. Esse argumento aposta em um esgotamento do movimento. No entanto, essa não é a sua análise.
Não, de modo algum. É preciso ver esse movimento desde uma perspectiva histórica. Estamos recém no começo de uma crise muito profunda, uma crise que é do sistema capitalista e, mais fundamentalmente, do modo de civilização e do chamado capitalismo planetário. Esse capitalismo planetário está em uma fase terminal e o movimento dos indignados, que tem ressonância mundial, é um dos primeiros sinais que a sociedade está emitindo. As sociedades humanas estão trabalhando, criando alternativas para um modelo democrático que está esgotado. Não se trata então de um movimento conjuntural que vai se apagar rapidamente, ou que se acalmará com a próxima reativação econômica. É preciso vê-lo em uma perspectiva mais ampla, ou seja, face aos próximos dez anos.

Isso equivale a dizer que a reprovação atual vai mais além do conforto, mais além de um hipotético crescimento recuperado ou da recuperação da atividade econômica.
Sim, certamente. Vemos muito bem que o que está sendo questionado é muito mais fundamental que a dominação das finanças e da classe política. O que está em questão é um modelo de desenvolvimento baseado no enriquecimento permanente e no crescimento constante, independentemente de toda finalidade humana. Por isso creio que esse movimento, que explode em plena crise do modelo democrático, está chamado a amadurecer nos próximos anos.

O que vemos hoje é, de fato, a explosão de todo um conjunto de ideias e iniciativas que já estavam postuladas há algum tempo, tanto no chamado Terceiro Mundo, nos países emergentes, nas comunidades indígenas. Esses discursos, que existem há pelo menos três ou quatro décadas, eram minoritários. Hoje são globais e penetraram as democracias ocidentais.
Sim. No interior do movimento altermundista já se via a emergência destes componentes, assim como a crítica radical do modelo de desenvolvimento, não só capitalista, mas também ocidental. Esse modelo se caracteriza por estar baseado unicamente no bem estar material, independentemente dos valores e da solidariedade. Hoje, esse movimento conseguiu desenvolver suas críticas no próprio coração da Europa.

Na sua avaliação, o sistema capitalista não chegou já ao ápice de sua própria barbárie social?
Não creio que tenha chegado ao final. Penso que ainda temos um período a percorrer e que ainda veremos desdobramentos terríveis. A crise econômica e social não terminou. Ainda não chegamos ao final da barbárie social. Temo que o que vem por aí será muito feio com, por exemplo, o desencadeamento dos nacionalismos e a ruptura entre as nações. Já vemos hoje o crescimento das tensões dentro da própria Europa, entre Estados Unidos e Europa, entre China e EUA. As rivalidades se agudizam. As elites tentarão prolongar sua dominação, buscarão legitimá-la recorrendo como sempre a um inimigo externo, o nacionalismo. No entanto, a emergência de um movimento mundial como o dos indignados é um sinal de que não devemos esperar necessariamente pelo pior. A ação da sociedade civil pode ser um muro de contenção.
Estamos em uma corrida mundial entre soluções autoritárias, que implicam a xenofobia e o fechamento em si mesmo, e, de outro lado, vemos a afirmação de uma sociedade civil internacional em torno dos valores da democracia. O curioso é que estes valores são os valores oficiais das elites. Daí o fato de o movimento dos indignados ser, ao mesmo tempo, poderoso e perigoso para as elites porque repousa sobre a ideologia oficial das elites. Mas essas elites se tornaram incapazes de preservar esses valores.

É um paradoxo: faz-se uma espécie de revolução em nome dos valores da elite dominante.
Sim, esse é o grande paradoxo desta crise e deste movimento que defende os valores supremos da sociedade. As elites que se proclamam democráticas estão renunciando à democracia para preservar sua dominação.
Muitos indignados reconhecem a influência determinante que tiveram as revoluções árabes na posterior revolta ocidental. A cronologia demonstra efetivamente que houve uma correlação entre ambos os acontecimentos. Os indignados de Paris, Roma, Madri ou Londres afirmam que as revoluções árabes mostraram a eles que a palavra “povo” tinha um sentido.
As revoluções árabes foram uma faísca fundamental porque demonstraram que, inclusive as situações mais bloqueadas, que inclusive os regimes menos democráticos onde as elites tinham tudo controlado, podiam desembocar em uma situação revolucionária incrível e inesperada. As revoltas árabes aportaram um alento de esperança, um impulso, uma dinâmica. O mundo se deu conta de que as elites dominavam porque nós permitíamos que dominassem. Fazem o que querem conosco porque deixamos que o façam e, frequentemente, votamos para que o façam. As revoluções árabes foram uma mensagem de esperança e um chamado à sublevação dos povos. Hoje, as pessoas renunciaram à resignação.
"Nossa civilização atual não oferece
mais perspectivas: o crescimento, a acumulação,
o controle da natureza, todos esses ideais
estão indo a pique e já não oferecem
uma possibilidade de sobrevivência à humanidade.
Nas próximas décadas nos cabe a tarefa
de inventar uma nova maneira
 de viver juntos."
Outro paradoxo não menos substancial reside no fato de que a França, o país da Revolução por definição, o país do autor do livro por meio do qual se plasmou o movimento – Indigne-se, de Stéphane Hessel – seja hoje o mais passivo, o menos mobilizado.
Trata-se de um autêntico paradoxo. Há várias razões para explicar isso. Talvez a primeira seja o fracasso do movimento social contra a reforma do sistema de aposentadorias impulsionada pelo presidente Nicolas Sarkozy. Foi um movimento muito profundo e majoritário na sociedade que não conseguiu que o governo recuasse em sua reforma. Isso pesou muito na disponibilidade mental dos cidadãos para empreender outra ação coletiva. Também temos a campanha eleitoral em curso, que polariza muito os debates e leva a que muita gente se diga: vamos nos concentrar em Sarkozy e depois veremos o que faremos.
O último elemento é o fato de que a França não conhece no momento uma situação de austeridade tão brutal como a que ocorre na Grécia, Espanha ou Portugal. As políticas de austeridade na França estão muito abaixo das aplicadas em outros países, incluindo aí Grã Bretanha ou Estados Unidos. Esses fatores explicam por que, no momento, a população não se sente tão agredida como em outros países.

O que causou surpresa mesmo foi o surgimento de um movimento social no berço do liberalismo, os Estados Unidos.
Na verdade, o que chamava a atenção desde a eleição de Obama era o fato de que foram os conservadores do Tea Party que ocuparam as ruas, que conseguiram lançar o único movimento social importante desde o ano 2000. Isso foi mais assombroso ainda na medida em que a crise social é consequência do ultra-liberalismo mais dogmático, mas foram os ultraliberais que acabaram cristalizando um movimento de massa, popular. Agora, o despertar do movimento dos indignados nos EUA mostra que a sociedade civil democrática dos Estados Unidos começa a se organizar, a atuar, a plasmar-se em um movimento de massa e popular.

Em suma, estamos em uma fronteira da história da humanidade. Há, por um lado, um sistema que acumula contradições e excessos imperdoáveis, e, por outro, uma resposta nascente.
Sim, nos encontramos em uma época determinante, em um processo de mudanças anda incertas. Não só assistimos ao desmoronamento de um sistema de acumulação capitalista, ou seja, o neoliberalismo, como também, e mais profundamente, o desmoronamento da civilização do consumismo. Estamos em uma fase de decomposição que vai durar várias décadas com seus dois processos simultâneos: o desmoronamento da civilização e a busca de alternativas. Nossa civilização atual não oferece mais perspectivas: o crescimento, a acumulação, o controle da natureza, todos esses ideais estão indo a pique e já não oferecem uma possibilidade de sobrevivência à humanidade. Nas próximas décadas nos cabe a tarefa de inventar uma nova maneira de viver juntos.
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Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: http://www.cartamaior.com.br 23/10/2011

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