Amado Luiz Cervo*
A morte de Muamar Kadafi em 20 de outubro de 2011 pôs fim ao regime que se prolongava por 42 anos. Poucos líderes se aferram ao poder por tanto tempo, pois que não se mantêm sem controlar a oposição, sem governar autoritariamente e sem suscitar o insuportável. O fim do líder autoritário e de seu regime desperta sempre enormes expectativas. Que significa para o mundo e para os líbios a morte de Kadafi?
A comunidade internacional cindiu-se diante do caso líbio. Em março, o Conselho de Segurança aprovou a intervenção da Otan apenas para estabelecer uma zona de exclusão aérea. Na percepção dos Brics, contudo, a Otan excedeu-se, apoiou a insurgência, a captura e a morte do líder, bem como a mudança do regime político. A contrariedade dos emergentes tornou-se clara, quando Rússia e China, com apoio dos demais membros do grupo, em 5 de outubro, vetaram conjuntamente no Conselho de Segurança uma resolução parecida contra a Síria, patrocinada pelos mesmos Ocidentais. O temor de excessos no uso da força prevaleceu.
Com efeito, os excessos da Otan na Líbia, sob instigação principal da França, levantam a questão da intervenção destinada a eliminar líderes e a mudar regimes políticos. Não há consenso internacional quanto a isso. O caso líbio põe em dúvida a estratégia de segurança movida pela violência das intervenções armadas da Otan, especialmente voltadas contra países muçulmanos. O caso líbio, ademais, vem sugerindo nos debates entre políticos e internacionalistas sua substituição por outra estratégia internacional de segurança que respeite as doutrinas da não intervenção em assuntos internos e da solução pacífica de conflitos, defendidas pelos países emergentes. É momento de repensar o direito de ingerência, que chegou ao ponto de envolver-se com a insurgência e a revolução política em nome da causa humanitária.
A penetração da visão arcaica do uso da força externa no desfecho do caso líbio será por certo um problema a enfrentar pelo Conselho Nacional de Transição, cuja função, de fato, agora está iniciando. Como fazer o consenso dos líbios, necessário para viabilizar o novo regime? As dificuldades reais são grandes.
Os membros desse Conselho se propõem nomear um governo transitório, o qual irá preparar eleições em oito meses. Os líbios terão de enfrentar o problema posto pelas circunstâncias trágicas da morte do líder. Fazer emergir novos líderes, conciliar tribos, islâmicos radicais, liberais, antigos colaboradores que passaram à insurgência, pró-ocidentais, nacionalistas, e até mesmo racistas contra negros que chegaram de fora antes e durante a revolução. E como se não bastasse, terão que definir uma estratégia de reconstrução, para a qual a Europa em crise financeira torna-se o pivô.
A reconstrução da Líbia envolve enormes frentes de trabalho para recuperar ruínas, modernizar a infraestrutura e reativar a produção do petróleo. Os europeus dispõem por certo de excedentes de produção, de capacidade ociosa, além da disposição de competir entre si para tirar vantagens do negócio líbio. Será a reconstrução mais uma causa de discórdia? Tanto assim parece que o Ministro de Relações Exteriores do Brasil sugere transferir à ONU a responsabilidade de coordenar a reconstrução e a modernização da Líbia. Para evitar que, a exemplo do passado, o futuro fomente a divisão entre os líbios e a cisão entre as nações.
Talvez o maior desafio que a Líbia deva enfrentar seja a construção de instituições. Nesse ponto, a ingerência humanitária da Otan em nada colabora. Pelo contrário, vem semeando na região o caos social e a ineficiência do Estado, não a democracia. O que será da Líbia cabe somente aos líbios decidir. Um Estado islâmico, laico, liberal, centralizado? De todo modo, instituições representativas, legítimas e eficientes serão o melhor legado do governo de transição. Por que não um modelo de Estado, a exemplo do que a Turquia soube erguer no mundo muçulmano, por vontade e capacidade própria e sem ajuda dos humanitários ocidentais?
-------------------------------* Amado Luiz Cervo é professor titular e Professor Emérito de Relações Internacionais, da Universidade de Brasília e professor titular do Instituto Rio Branco. Possui graduação, mestrado e doutorado em História, todos pela Universite de Strasbourg, França. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea. Atuando principalmente nos seguintes temas: América, Relações Internacionais, Política Exterior. Fonte: http://www.unb.br/24/10/2011
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