Quatro dissertações de mestrado, todas desenvolvidas
na Faculdade de Ciências Médicas
sob orientação do professor Antonio de Azevedo Barros Filho, revelam facetas da obesidade em crianças e jovens
Quatro dissertações de mestrado desenvolvidas na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp miram um dos principais desafios de saúde pública na atualidade: a prevalência da obesidade em crianças e adolescentes.
No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma em cada três crianças de 5 a 9 anos estava acima do peso recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2010. Obesos representaram 16,6% entre meninos e 11,8% das meninas naquela idade. Jovens de 10 a 19 anos com excesso de peso passaram de 3,7% (na década de 1970) para 21,7% e entre as meninas na mesma faixa etária o crescimento do excesso de peso saltou de 7,6% para 19,4%.
Na Unicamp, o tratamento de crianças e adolescentes severamente obesos ganhou impulso há seis anos com a criação, no Hospital de Clínicas da Universidade, do Ambulatório de Obesidade na Criança e no Adolescente. A unidade – hoje com cerca de 200 usuários – proporciona acompanhamento multiprofissional ao paciente e tornou-se fonte de estudos clínicos, como as quatro pesquisas orientadas pelo professor Antonio de Azevedo Barros Filho, do Departamento de Pediatria da FCM.
Especialista em crescimento e desenvolvimento físico da criança e do adolescente, ele costuma lançar mão de uma metáfora lúgubre para expressar com a intensidade desejada todo o seu assombro diante da escalada do problema na população mundial. “A obesidade é o quinto Cavaleiro do Apocalipse”, compara.
De fato, a obesidade de jovens já é considerada epidêmica pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, de acordo com o Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, está superando o tabagismo como principal fator de mortalidade. As causas orgânicas ou genéticas (obesidade endógena) que evoluem para o excesso de peso representam algo em torno de 5%, mas a grande maioria dos casos (aproximadamente 95%) é classificada como obesidade exógena, motivada por fatores ambientais, notadamente alimentação inadequada e sedentarismo, o que, aliás, favorecem sua expansão a níveis alarmantes.
O paradoxo dessa situação, observa Barros Filho, é que em sua trajetória pelo planeta a vida do homem foi marcada pela luta contra a fome. “Na antiguidade o ser humano armazenava gordura para sua própria sobrevivência, mas na atualidade as pessoas do mundo todo têm tido problemas com a obesidade e doenças decorrentes do acúmulo de gordura, aumentando significativamente o índice de mortalidade”, comenta.
Ele é categórico: intervenções medicamentosas são insuficientes para controlar a incidência. A progressão da obesidade não será freada sem mudanças comportamentais, o que requer a premente adoção de estratégias voltadas à prevenção, já que o ganho excessivo de peso é condição que, quanto mais precocemente se instala, mais dificilmente é combatida.
Postos nesse cenário desafiador, os estudos detalhados a seguir são holofotes a lançar, por meio de diferentes resultados e contribuições, novas luzes para a melhor compreensão e abordagem do problema por parte de educadores, profissionais da saúde, famílias e por parte dos principais interessados – os jovens.
Distúrbios do sono são mais freqüentes
A importância do sono é amplamente reconhecida, tanto quanto são claras as implicações e consequências da ausência de um sono reparador, que permite boa saúde e disposição física e mental. Alterações no padrão e na qualidade do sono (denominadas distúrbios do sono) ocorrem com grande frequência e quando afligem pessoas com idade precoce, como crianças e adolescentes, acarretam danos que vão do baixo rendimento escolar até o comprometimento da saúde física e mental. A obesidade contribui para agravar o problema, segundo revela a pesquisa Características do sono, distúrbios do sono e qualidade de vida em adolescentes obesos, elaborada pela psicóloga Giovina Fosco Turco. Ao avaliar a qualidade de vida e a do sono em adolescentes obesos e eutróficos (com peso ideal), ela observou a prevalência de perturbações e, consequentemente, pior qualidade do sono entre os integrantes do grupo obeso. Como reflexo das noites mal dormidas, esses jovens acabam vitimados por uma qualidade de vida inferior.
Coorientado pelo professor Rubens Reimão, responsável pelo Grupo de Pesquisa Avançada em Medicina do Sono da USP, o trabalho englobou um universo de 120 adolescentes de ambos os sexos, entre 10 e 14 anos. O grupo de estudo foi composto por 61 adolescentes obesos moradores de Campinas e região, acompanhados pelo Ambulatório de Obesidade na Infância e Adolescência da Unicamp. Já o grupo comparativo constituiu-se de 59 crianças e adolescentes eutróficos, com idade equivalente, alunos de uma escola pública de Americana (SP).
Ronco, agitação noturna, insônia no meio da noite, pesadelo, medo de dormir sozinho e de escuro, enurese (emissão involuntária de urina) noturna e sonilóquio (fala e/ou emissão de sons durante o sono) estão entre as interferências mais incidentes no grupo de jovens obesos. Quase 20% deles relataram repetência em alguma série escolar e aproximadamente 33% dos entrevistados admitiram ter algum problema de saúde, constatando-se casos de uso de medicamentos para rinite alérgica, depressão, hipertensão arterial, tireóide, diabetes melittus, hiperatividade e problemas digestivos. Seus pais e/ou responsáveis apresentaram índice de massa corporal maior do que o dos pais dos estudantes eutróficos.
“A privação de sono e a má qualidade de descanso na infância e na adolescência prejudicam o aprendizado, a atenção, a concentração, as capacidades intelectuais e produtivas, causando alterações constantes de humor, irritabilidade permanente, falta de concentração e maior risco de desenvolver quadros graves de depressão”, acentua Giovina. E mais: jovens nessa condição geralmente se tornam reticentes à prática de atividades físicas, sobretudo em função do cansaço provocado pelo déficit de sono, e o sedentarismo daí resultante contribui ainda mais para o aumento do sobrepeso e da obesidade.
Aos distúrbios mencionados, ela acrescenta outro importante efeito da obesidade infantil que comumente se manifesta na cama: a Síndrome da Apnéia Obstrutiva do Sono, condição caracterizada por episódios repetidos de obstrução parcial ou completa das vias aérea superiores, associada a episódios de ronco durante o sono e também de leves despertares. A criança com a disfunção pode apresentar alterações no comportamento, sonolência diurna, deficit do desenvolvimento pôndero-estatural e prejuízo escolar.
Embora as perturbações de sono tenham sido mais preocupantes entre obesos, a incidência constatada no grupo de eutróficos também requer atenção, adverte Giovina, pois decorre da falta de limite para o horário de dormir e do excesso de uso de aparelhos eletrônicos, principalmente computadores. Ela recomenda que os distúrbios sejam diagnosticados e tratados precocemente, a fim de minimizar seus impactos sobre o crescimento e o desenvolvimento da população jovem.
Dissertação mensura acúmulo energético
O ganho de peso além daquele considerado adequado ao crescimento corporal é um fenômeno observado desde a década de 1980 na população adolescente. Uma das explicações para o processo é o desequilíbrio entre a energia proveniente da alimentação e a despendida em atividades cotidianas, que resulta em um persistente acúmulo energético, cujo excedente encontra-se acima das taxas requeridas pelo organismo para o necessário amadurecimento físico dos jovens. Com a finalidade de mensurar esse grau de desequilíbrio entre adolescentes brasileiros, a nutricionista Helen Rose Camargo Pereira realizou pesquisa em que quantificou o excesso energético diário em um grupo de 104 voluntários da região de Campinas.
Os resultados mostraram que tanto aqueles com peso adequado quanto os com excesso de massa corporal acumulam entre 150 a 250 calorias diariamente. A investigação ainda corroborou a reconhecida existência de expressiva subnotificação do consumo alimentar na faixa etária analisada e também trouxe à tona outro dado preocupante: mesmo aqueles com peso adequado apresentaram taxas elevadas de gordura corporal, situação capaz de trazer complicações semelhantes às encontradas em obesos, consideradas fatores de risco para o desenvolvimento de diabetes e doenças cardiovasculares. Para a elaboração do estudo Balanço energético de adolescentes eutróficos e com diferentes graus de excesso de peso, Helen avaliou 39 adolescentes eutróficos, 33 com sobrepeso e 32 obesos, de 11 a 17 anos, alunos de duas escolas do município de Paulínia. A partir dos hábitos relatados, ela verificou que todos os grupos, independentemente do estado nutricional, apresentaram baixo gasto energético em atividades físicas, dieta pobre em frutas, legumes e verduras, consumo elevado de açúcares (sob a forma de refrigerantes e sucos em pó) e alta proporção de gorduras na alimentação, decorrente da ingestão excessiva de sanduíches de hambúrgueres, pizzas e salgados.
A coleta de dados também permitiu confirmar a predisposição dos adolescentes, sobretudo meninas obesas, à sistemática omissão da real ingestão calórica. “Quem tem excesso de peso esconde o que come”, diz Helen. Em sua pesquisa, os obesos subestimaram em média 31% do consumo alimentar estimado. Os resultados do trabalho corroboram outros achados da literatura acerca do comportamento predominantemente sedentário dos adolescentes, caracterizado por alto tempo despendido em atividades de baixa intensidade. Os escolares ouvidos por Helen passam cerca de cinco horas diárias na frente da televisão ou do computador, tempo quase três vezes superior que o recomendado pela Academia Americana de Pediatria.
Como a ingestão energética do adolescente deve ser suficiente para equilibrar o dispêndio energético, permitindo a manutenção dos níveis saudáveis de tamanho e composição corporal, qualquer interferência no balanço pode levar à obesidade. Um exemplo para melhor compreender essa equação: basta o consumo diário excedente de 100 calorias (equivalente às de uma singela maçã) para o organismo ganhar cinco quilos ao longo de um ano, em consequência do processo cumulativo.
Os dados encontrados pela pesquisa podem contribuir para o desenvolvimento de formas eficazes de prevenção da obesidade. De acordo com Helen, modificações relativamente simples na rotina alimentar e de atividades físicas dos adolescentes (a substituição de produtos industrializados e a adição de 30 minutos diários de caminhada) seriam suficientes para prevenir o ganho excessivo de peso.
“Não é para reverter, mas impedir que a prevalência aumente. Primeiro é preciso parar de engordar, para depois pensar em emagrecer”, argumenta ela.
O descompasso entre as férias e o ano letivo
Na busca de explicações para o sobrepeso na infância e adolescência, alguns olhares têm se voltado para as escolas. O estudo Comportamento antropométrico de adolescentes durante o ano letivo e período de férias, desenvolvido pelo professor de Educação Física Fábio Cássio Ferreira Nobre, apresentou como objetivo a investigação da influência do calendário escolar no ganho de peso de adolescentes. Ele avaliou a interferência do período de férias e período letivo no ganho de peso em cerca de 600 jovens na faixa etária de 11 a 15 anos, alunos de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental de escolas estaduais de Campinas. Os resultados do estudo demonstraram que a prevalência de sobrepeso e obesidade já atinge três em cada 10 adolescentes do município. O período de férias é colaborador importante no ganho ponderal e o aumento é evidenciado igualmente em ambos os sexos, durante o período denominado pubescência (10 a 14 anos).
No Brasil, observa Fábio, a escola contribui para a inserção da prática obrigatória de atividade física semanal nos currículos escolares, bem como o oferecimento de uma alimentação balanceada na merenda, ambos pautados em legislações nacionais. Nos momentos de férias escolares, contudo, os alunos ficam desobrigados a manter estes padrões de alimentação e atividade física, contribuindo para o aumento de peso.
De acordo com ele, frequentemente os alunos modificam seus hábitos durante as férias, dormindo e acordando fora do horário habitual, se alimentando em períodos incompatíveis com a refeição do momento (tomam café da manhã quando normalmente estariam almoçando, por exemplo). As famílias, por sua vez, fornecem alimentos mais calóricos e diferentes daqueles convencionais ou comumente servidos na escola. O tempo destinado à prática de exercícios físicos – atividade geralmente exigida na escola – também sofre substancial redução, já que os adolescentes costumam passar mais tempo na frente da televisão ou com os amigos na internet.
Qual o resultado desse descompasso? O autor constatou que os adolescentes acabam ganhando mais peso em massa gordurosa durante o recesso escolar. Os adolescentes do sexo masculino apresentaram maior quantidade de gordura corporal na região central, enquanto as adolescentes femininas demonstraram gordura corporal distribuída proporcionalmente pela massa corporal total. Outro achado importante da pesquisa foi o crescimento em estatura abaixo do esperado. Ou seja, ao comparar a altura dos adolescentes com o que eles deveriam medir, verificou-se que eles estavam crescendo menos do que o previsto, independentemente do sexo. Para Fábio, o período letivo apresenta função importante na redução do ganho de peso, principalmente entre os adolescentes com sobrepeso e obesidade.
“Podemos justificar, pelas experiências desenvolvidas no Brasil, que a escola ainda pode ser considerada um ambiente protetor no desenvolvimento da obesidade e que deve ser cada vez mais trabalhada a fim de se formar uma consciência coletiva em saúde”, salienta. Para que a escola se torne um meio preventivo do aumento de peso, é necessário instituir no currículo escolar programas de atividade física aeróbica direcionada às diferentes faixas etárias, com respectivo aparelhamento das escolas e treinamento de seus profissionais, bem como educação em saúde e qualidade de vida, sugere ele, amparado em experiência já documentada cientificamente em países como os Estados Unidos.
Mães tendem a minimizar problemas de ‘gordinho’
Como a mãe percebe o filho obeso? A percepção materna pode se relacionar ao modo como ela cuida da prole? Com a finalidade de conhecer e compreender a percepção materna a respeito da origem e da natureza da obesidade dos filhos e entender como essa percepção pode afetar os cuidados com a criança com excesso de peso, a psicóloga Ana Paula Paes de Mello de Camargo entrevistou um grupo de oito mães de crianças e adolescentes com obesidade exógena em tratamento no Ambulatório de Obesidade na Infância e na Adolescência da Unicamp. Partindo do pressuposto de que as crianças são dependentes da figura materna, tanto na formação da sua personalidade quanto no estilo de vida, o trabalho permitiu à pesquisadora aferir que a percepção materna inadequada influencia negativamente a relação não só da mãe com a criança, mas também desta com seus cuidadores primários (avós, tios, irmãos), causando um impacto pernicioso nos hábitos cotidianos, como a inapropriada ingestão de alimentos super calóricos e a baixa frequência de atividades físicas.
De acordo com Ana, a percepção materna pareceu se constituir de experiências contraditórias e ambivalentes a respeito de si mesma e também a respeito do filho. Se por um lado a mãe relatou a insatisfação com o próprio corpo (sete das entrevistadas estavam acima do peso, conforme suas próprias informações), por outro ela tentou minimizar a condição de excesso de gordura corporal do filho.
“Por alguns motivos a mãe vê o filho obeso apenas como gordinho e isso é um grande complicador, pois influencia o modo como ela lida com as orientações recebidas dos profissionais de saúde no serviço ambulatorial”, explica a autora da dissertação Obesidade na infância e na adolescência e a percepção das mães: um estudo qualitativo, coorientada pelo professor Joel Sales Giglio.
O fato de não conseguir seguir no dia a dia todas as recomendações médicas ficou evidente nos depoimentos a respeito dos hábitos de alimentação e de atividade física. A mãe não relatou hábitos de alimentação que pudessem contribuir para a baixa ingestão calórica e não demonstrou perceber a relação da prática da atividade física como algo fundamental para a reversão dessa situação. Segundo o estudo, a percepção materna distorcida minimiza o quadro de obesidade, afeta os cuidados com os filhos – consequentemente, o estado atual de peso da criança muda muito pouco, ou nem muda – e os expõem aos riscos a que estão suscetíveis, como diabetes, doenças coronarianas e alta taxa de colesterol, entre outras, problemas inclusive observados em familiares citados nas entrevistas, principalmente os pais.
A investigação realizada por Ana confirmou constatações da literatura científica acerca da influência do comportamento familiar nos casos de obesidade na infância e na adolescência, conforme ela pode constatar na revisão de artigos em língua inglesa e portuguesa que conduziu para a elaboração de sua dissertação. Alguns trabalhos apontam para conclusões de que as taxas de obesidade infantil estão associadas com a obesidade materna, indicando a relação mãe-filho como fator de risco para a obesidade infantil.
“Portanto, o tema da percepção materna é atual e relevante para ampliarmos a compreensão do complexo problema da obesidade na infância. Reconhecer que há excesso de peso pode ser um primeiro passo na mudança para um estilo de vida mais saudável”, salienta a psicóloga, que continuará a explorar o material coletado agora na pesquisa de doutorado.
PUBLICAÇÕES
Dissertação: “Características do sono, distúrbios do sono e qualidade de vida em adolescentes obesos”
Autora: Giovina Fosco Turco
Orientador: Antonio de Azevedo Barros Filho
Coorientador: Rubens Reimão Reimão
Unidade: Faculdade de Ciências Médica (FCM)
Dissertação: “Balanço energético em adolescentes eutróficos e com diferentes graus de excesso de peso”
Autora: Hellen Rose Camargo
Orientador: Antonio de Azevedo Barros Filho
Unidade: Faculdade de Ciências Médica (FCM)
Dissertação: “Comportamento antropométrico de adolescentes durante o ano letivo e período de férias”
Autor: Fábio Cássio Ferreira Nobre
Orientador: Antonio de Azevedo Barros Filho
Unidade: Faculdade de Ciências Médica (FCM)
Dissertação: “Obesidade na infância e na adolescência e a percepção das mães: um estudo qualitativo”
Autor: Ana Paula Paes de Melo de Camargo
Orientador: Antonio de Azevedo Barros Filho
Coorientador: Joel Sales Giglio
Unidade: Faculdade de Ciências Médica (FCM)
------------------------------
Reportagem por PAULO CESAR NASCIMENTO
Fonte: Jornal de Unicamp on line - http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/outubro2011/ju511_pag67.php
Nenhum comentário:
Postar um comentário