quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Tempos difíceis podem aproximar as pessoas, diz socióloga

A crise econômica mundial deve aumentar os casos de depressão. Mas, se houver uma determinaçãoem dar respostas compartilhadas, ela pode aproximar as pessoas e trazer boas consequências psicológicas. A análise é da socióloga australiana Raewyn Connell, 67, que participa hoje de debate em Caxambu (MG) durante o Encontro Anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
Professora da Universidade de Sydney, ela nasceu como Robert Connell. Especializada em questões de gênero, conta que a vida de uma mulher transexual não é glamurosa nem divertida, mas difícil a maior parte do tempo. Nessa entrevista ela fala das discriminações contra mulheres e gays. Apesar de avanços --ressalta o papel feminino nas revoltas árabes--, opina que o poder patriarcal ainda é muito forte.
Ex-consultora sobre questões de gênero para a ONU, ela escreveu vários livros sobre o tema. Agora se dedica a estudar como as ciências sociais são dominadas pela visão européia e norte-americana, o que desenvolveu no seu "Southern Theory" [Teoria do Sul] que ela também comenta aqui.

Folha - Como a sra. analisa os movimentos de protesto pelo mundo?
Raewyn Connell- Há uma grande diversidade. A Primavera Árabe no Norte da África e no sudoeste da Ásia é uma insurreição popular contra a corrupção, a violência e o egoísmo dos regimes locais. A juventude liderou as manifestações de rua, mas foram apoiados por grupos mais estabilizados da oposição e parcela dos militares. O aspecto mais notável talvez seja o papel das mulheres nas mudanças políticas, apesar de os novos regimes parecerem ser controlados por homens. Os tumultos na Grã-Bretanha foram feitos principalmente por jovens trabalhadores homens das regiões mais pobres da Inglaterra, furiosos com o governo e com a polícia, mas que não tentam mudar o regime. Na Grécia e na Espanha é também diferente. É a juventude, grupos de trabalhadores e partidos contra os cortes em serviços sociais e contra o desemprego --as medidas de corte que estão sendo tomadas para proteger os interesses de bancos estrangeiros principalmente. Assim, os movimentos sociais são diversificados Mas eles encorajam uns aos outros, como geralmente ocorre nos movimentos sociais.

Alguns afirmam que a crise internacional faz crescer os casos de depressão e de suicídio. A sra.. concorda?
Provavelmente os casos de depressão vão aumentar, na medida em que mais pessoas perderem renda ou suas casas e terão que enfrentar situações mais difíceis. Não se pode dizer necessariamente o mesmo em relação a suicídios, já que geralmente eles ocorrem em situações de isolamento, como na depressão. Mas tempos econômicos difíceis podem aproximar as pessoas, mais do que afastá-las. Depende muito de como será a resposta social para a crise econômica, das comunidades aos sindicatos. Se houver uma determinação em compartilhar a resposta, as conseqüências psicológicas podem ser até muito boas. Mas se a resposta for "cada um por si e o diabo fica com o último", mais pessoas terão que lutar.

A crise trará mudanças de comportamento?
Nos negócios provavelmente não. A elite corporativa dos EUA já está de volta com os seus velhos truques, seus bônus e lucros enormes. Parece não ter aprendido nada. E os governos são geralmente intimidados pelo capital financeiro --bancos, agências de risco, seguradoras e outros-- por causa do medo da fuga de capitais. Na classe média as pessoas terão mais cautela em relação à tomada de riscos de suas aplicações em esquemas diabólicos. Na Austrália a classe média parece estar segurando as suas economias com mais força agora. Os trabalhadores não têm muito poder para mudar o que ocorre agora. Mas acho que os partidos políticos da classe trabalhadora estão começando reconsiderar seus casos de amor com o neoliberalismo. Então poderemos ver mudanças nas estratégias políticas no decorrer do tempo.

Xenofobia, preconceito e egoísmo vão crescer no mundo?
No s últimos 10, 15 anos a xenofobia certamente tem crescido na Austrália, na Europa e nos EUA. Tem muito a ver com os políticos, principalmente os de direita, que incitam a xenofobia para obter ganhos políticos pessoais. É uma estratégia repugnante, mas tem sido bem-sucedida no curto prazo. Ela é construída a partir da mensagem de egoísmo que tem sido promovida nos últimos 30 anos pela ideologia do mercado e também pelo medo e a insegurança despertados pelo capitalismo global fora de controle.

Como está a situação da mulher no mundo?
De forma geral, a situação da mulher numa escala global está melhorando nos últimos 50 ou 60 anos. Comparado com 1950, muitas mais mulheres estão alfabetizadas. Mais meninas têm uma educação adequada. Mais mulheres estão no mercado de trabalho e têm a sua própria renda --e assim têm mais poder no mundo. Mas de outras maneiras, o poder patriarcal ainda está forte. Praticamente todos os principais executivos das corporações multinacionais são homens. Todos os generais, almirantes, bispos, papas, mulás, monges-chefe, secretários-gerais de partidos são homens. Brasil e Austrália gora têm pela primeira vez mulheres na cabeça do governo. Parabéns para nós! Mas esses governos não são feministas. Homens controlam a maior parte da riqueza do mundo, a maior parte das armas, da tecnologia, do poder. Um grande número de mulheres são vítimas de violência doméstica. Todas as mulheres estão sujeitas a ameaças de estupro e de assédio. Temos ainda um longo caminho para a igualdade de gênero para todas as mulheres e homens.

A imagem da mulher está muito ligada à beleza, juventude, magreza. A sra. prevê alguma mudança nesse padrão?
É uma imagem que reflete dependência _a dependência das mulheres nos homens com dinheiro, a procura por maridos como única forma de preencher a vida das mulheres. A mídia comercial investiu tanto nessa imagem para a mulher que acho que não haverá mudança tão cedo. Apesar de conhecermos as terríveis consequências de fenômenos como o da anorexia entre mulheres adolescentes, que encorajam a dependência no lugar da competência. Apesar dos números crescentes de mulheres que ganham sua própria renda e sustentam suas famílias sozinhas sem depender de um homem, acho que há muito ceticismo entre as mulheres sobre essa imagem. Sabemos que as imagens nas fotos de anúncios são fabricadas, retocadas, de plástico. Mas é muito difícil se livrar dessa imagem: está presa nas nossas cabeças como a maneira pela qual os homens querem as mulheres. Precisamos celebrar outras imagens de corpos femininos, corpos esportivos, maternais, duradouros, habilidosos, envelhecidos também. Conheço mulheres velhas muito bonitas. Precisamos expandir nossa ideia de beleza.

As revoltas no mundo árabe podem levar a uma revolução em termos de gênero?
Provavelmente não a uma revolução. O papel das mulheres nas revoltas não parece estar mantendo a mesma importância nos novos governos. De fato em alguns deles, como no Egito, parecem ser profundamente patriarcais. Espero estar errada. Mudanças em relações de gênero são sempre muito lentas. E há muita coisa para mudar: locais de trabalho, famílias, governos, religiões também. As mudanças estão acontecendo. Por exemplo: há um intenso debate das mulheres do islã sobre a maneira pela qual o Corão apoia a igualdade de gênero.

No Brasil, as mulheres ganham cerca de 70% do salário dos homens para a mesma tarefa. Como comparar essa situação com a de outros países?
Na Austrália, se é realmente o mesmo trabalho, as mulheres recebem cerca de 90% do que recebem os homens. Mas o ponto principal é que geralmente não é o mesmo trabalho. Há muitas formas de segregação no mercado de trabalho. Os trabalhos das mulheres geralmente são os que têm pagamento menor, são os que exigem menor qualificação, têm menor respeitabilidade, são os mais inseguros. Além disso, mais mulheres do que homens trabalham meio período. Muitas mulheres estão fora do mercado de trabalho completamente. Também mais homens no topo do nível de emprego são capazes de trocar renda por capital, e vice-versa, e o seu rendimento real se torna parcialmente invisível. O resultado de tudo isso é a enorme diferença na renda agregada das mulheres como um grupo em relação ao conjunto dos homens _muito maior do que aparece nas discussões da mídia sobre diferenças salariais. É um tema muito importante na questão da justiça social. Todos os países do mundo têm grandes desigualdades.

Como explicar ataques contra gays em metrópoles como São Paulo?
Fico triste em dizer que há também ataques contra gays nas ruas da Austrália e em muitos outros países. Há ataques também contra lésbicas, mas geralmente contra homens gays. Os atacantes são geralmente jovens homens trabalhadores e atuam em grupos. Por que isso acontece? Está muito relacionado com problemas de masculinidade. Homens gays e travestis são vistos como uma ofensa à masculinidade por homens que possuem idéias rígidas e velhas sobre masculinidade. E para jovens homens que não possuem um lugar seguro no mundo, a violência contra gays pode ser entendida como uma forma de afirmar a masculinidade e ganhar respeito de amigos que admiram força e afirmação de poder. É um padrão social amplo e que vai além da questão do ataque a gays. Afirmação de poder e dominação é também central na violência contra as mulheres. As feministas sabem disso há muito tempo: estupro é sobre poder, não sobre sexo.

Por que a sra. decidiu trocar de sexo?
Ser uma mulher transexual é geralmente uma situação ao longo da vida, o que é o meu caso. Você enfrenta muitas questões difíceis sobre como viver _difícil por causa do seu impacto sobre outras pessoas, incluindo as que você ama. Não é exatamente mudança de sexo, é uma mudança na maneira pela qual você lida com as profundas contradições sobre gênero que já existem na sua vida. Geralmente uma mulher transexual só faz isso quando ela não tem mais opções, quando é o único caminho possível. Não é uma escolha de estilo de vida, não é glamuroso, não é divertido. É difícil em quase todos os dias. Mas, com apoio, é possível sobreviver. Sou afortunada por ter tido apoio e aceitação por parte da minha família e dos meus colegas de profissão.

Como é a sua "teoria do sul"?
É parte de um esforça internacional para desafiar a hegemonia da Europa e dos EUA nas ciências sociais. Tenho trabalhado por 25 anos nesse problema, estudando os escritos dos pensadores de diferentes partes da periferia, ou seja, da maior parte do mundo. O que eu chamo de teoria do sul não é exatamente o conhecimento indígena. Ao contrário, é um pensamento social que responde à experiência da colonização, da sociedade colonial e pós-colonial e da globalização neoliberal. É um campo muito rico, embora seja sub-representado no ensino da teoria social, mesmo nos próprios países do sul. Meu livro "Southern Theory" [Teoria do Sul] critica inicialmente (em alguns detalhes) a forma tradicional eurocêntrica das ciências sociais. Depois discute o trabalho de uma gama de pensadores da África, Índia, Irã, América Latina e Austrália. E acaba com uma meditação sobre o significado da terra para a compreensão da sociedade e o que está envolvido na construção de uma ciência social mais democrática e globalmente mais inclusiva. Depois da publicação do livro, continuei a trabalhar no tema, ampliando a colaboração com acadêmicos de outras partes do sul global. Estou trabalhando agora nas perspectivas no sul para estudos de gênero e sobre o neoliberalismo.

Que nomes brasileiros a sra. destacaria?
Celso Furtado, certamente. Todos os debates sobre desenvolvimento e a periferia global são relevantes. E, claro, Fernando Henrique Cardoso, antes de se tornar político, escreveu excelente ciência social. Discuto um dos seus livros no meu "Southern Theory". Entre os sociólogos escritores contemporâneos, José Maurício Domingues está fazendo um interessante e impressionante trabalho sobre a modernidade global. João Marcelo Maia escreveu um trabalho fascinante sobre a história do pensamento social brasileiro. Na educação, conhecemos alguns escritos de Paulo Freire, mas não sabemos muito a fundo sobre o seu trabalho. É uma falha do mundo de língua inglesa. Na Austrália não aprendemos muito sobre a América Latina, assim como vocês não devem aprender muito sobre a Austrália. Mas todos nós aprendemos muito sobre as idéia que vem da Europa e da América do Norte. Enquanto estiver no Brasil espero aprender mais sobre o trabalho brasileiro nas ciências sociais.
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Reportagem por ELEONORA DE LUCENA DE SÃO PAULO
Fonte: Folha on line, 26/10/2011
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