sábado, 29 de outubro de 2011

De Hamlet a Borgesm

Marcelo Rocha*

Pouco tempo depois do encontro com o fantasma do pai, Hamlet, na peça shakespeariana, entra em cena lendo um livro. Parece ocorrer, então, uma pausa na ação. Quando Polônio pergunta ao príncipe o que está lendo, ele responde, evasivamente: “Palavras, palavras, palavras”. De certa forma, o leitor da tragédia infere que o conteúdo do livro parece menos importante do que o próprio ato de ler.
Em análise do escritor Ricardo Piglia, a ação de Hamlet expõe dois universos que parecem, a um primeiro olhar, distintos, quais sejam: o percurso da tragédia com suas relações internas de causa e efeito e o momento antitrágico do protagonista que lê – ou que simula uma leitura. O príncipe, nesta perspectiva, vacila no ritmo da oscilação do texto. A indecisão de Hamlet mostra uma circunstância de isolamento e solidão que, aproximada a um percurso de subjetividade, é mediada pela leitura.
De todo modo, a representação do ato de ler como uma prática apartada da realidade não se constitui como uma imagem incomum. No entanto, em alguns momentos ela tomou uma dimensão pública e política. O escritor argentino Jorge Luis Borges lembrava que, na década de 50, durante as manifestações populistas organizadas pelo governo Perón contra os intelectuais da oposição, os manifestantes bradavam: “Sapatos sim, livros não”. Forçava-se, então, mais uma vez a segmentação entre os leitores, como apreciadores de um objeto supérfluo – o livro – e a população, ansiosa por uma transformação imediata e concreta da sociedade, simbolizada por uma peça básica do vestuário – o sapato.
"O livro, tal como um espelho,
auxilia, por fim, a entendermos
quem somos."



Não é difícil perceber que essa falsa separação entre leitura e realidade possui uma clara intenção ideológica. Na medida em que se estabelece um conflito entre o mundo dos livros e o nosso cotidiano, aparta-se, também, a necessidade de reflexão sobre a circunstância em que vivemos. O medo da leitura, de modo análogo, representa o medo da democracia, do dissenso e da alteridade. Não raro os textos são considerados os verdadeiros vilões em regimes autoritários, pois podem comprometer a lógica absoluta e inconteste das versões oficiais. Além disso, o ato da leitura faculta, igualmente, um contato do leitor com um outro – ou outros – e consigo mesmo. O livro, tal como um espelho, auxilia, por fim, a entendermos quem somos.
De certo modo, a Feira do Livro de Porto Alegre consegue conciliar a importância da leitura – e do próprio evento, reconhecido desde o ano passado como patrimônio imaterial da cidade – ao espaço cotidiano e coletivo da praça pública. Logo, as oscilações do príncipe da Dinamarca e os anseios por uma sociedade mais justa encontram espaço por entre bancas e jacarandás, unindo o texto e as pessoas na humana – e cada vez mais urgente – necessidade do diálogo.
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*Professor da Unipampa/São Borja lista
Font: ZH on line, 29/10/2011
Imagens da Internet

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