WILSON ALVES-BEZERRA*
O argentino Piglia acrescentou aos inovadores “Respiração Artificial” e “Cidade Ausente”
novelas policiais e ensaios sobre literatura,
psicanálise e tragédia.
Cinquenta anos depois do início do boom da literatura latino-americana, amadurece uma nova geração de escritoresMario Vargas Llosa, em outubro do ano passado, recebeu a mais alta distinção da Academia Sueca, o Prêmio Nobel de Literatura. O prêmio foi acolhido como um reconhecimento tardio a uma obra que, segundo a Academia, faz “a cartografia das estruturas de poder e suas imagens mordazes da resistência, revolta e derrota do indivíduo”.
Quando o boom da literatura latino-americana ocorreu, no início dos anos 60, Vargas Llosa era um escritor promissor de 20 e poucos anos de idade, que acabara de publicar o romance A Cidade e os Cachorros (1963). Com o boom, a literatura produzida no continente – incluindo-se aí brasileiros como Guimarães Rosa e Clarice Lispector – passou a ser traduzida e publicada na Europa e nos Estados Unidos, rompendo as barreiras nacionais e proporcionando reconhecimento e ganhos financeiros até então inauditos a escritores que estavam acostumados a vender tiragens de poucos milhares de exemplares. O momento foi propício também a autores maduros como Jorge Luis Borges, que recebeu em 1961 o Prêmio Fomentor das mãos de três dos grandes editores europeus (Gallimard, Einaudi e Barral).
Embora seja comum associar os escritores daquela geração à literatura insólita – inclusas aí as vertentes do fantástico, maravilhoso etc –, muitos dos escritores, como o próprio Vargas Llosa, trazem em sua escrita a história da América Latina como ingrediente importante da sua matéria ficcional. A história e a colonização americana estão presentes em autores tão diversos como José María Arguedas – em Os Rios Profundos (1956) – e Gabriel García Márquez – em Cem Anos de Solidão (1967). Também assim com o recentíssimo O Sonho do Celta (2010) e o recém-relançado Lituma nos Andes (1992), de Vargas Llosa, partem da realidade latinoamericana. Em Lituma exploram-se as torturas e assassinatos perpetrados pelo Sendero Luminoso, grupo armado peruano atuante nos anos 1980 e 1990. Em O Sonho do Celta entram em cena o sadismo dos colonizadores do Congo, no fim do século 19, e dos seringueiros na Amazônia peruana contra os índios, no ciclo da borracha, vistos pelos olhos do cônsul britânico Roger Casement.
Ao impertinente leitor fica a dúvida quanto ao Nobel atribuído a Vargas Llosa: é por sua literatura realista ou por ter sido autor do boom? Ora, a geração do boom foi premiada, em 1982, com o Nobel atribuído a García Márquez. Quanto aos narradores latino-americanos que, de alguma forma, executam sua “cartografia das estruturas de poder”, podemos recordar alguns.
Entre os recentíssimos, destaca-se o colombiano Evelio Rosero (nascido em 1958), que, com Os Exércitos (2007), retratou a guerra das Farc com o exército e as milícias e apreendeu sua falta de sentido da perspectiva de um velho que se perdeu da mulher e vaga pelo labirinto de tiros e estranhos que se tornou sua cidade natal. Seu relato faz lembrar – em alguns momentos – o pesadelo engendrado pelo mexicano Juan Rulfo, em seu Pedro paramo (1955). Mas Rulfo tratava de uma guerra terminada da qual se sofriam as consequências – a Revolução Mexicana –; já Rosero fala de uma guerra viva, da qual ainda se ouvem os estrondos.
Outro autor que se enfrentou em sua prosa com a realidade histórica é Roberto Bolaño (1953 – 2003). Ainda jovem, Bolaño experimentou a ditadura de Pinochet e o exílio, primeiro no México e depois na Catalunha, onde produziu parte considerável de seus livros, até morrer vitimado por uma doença no fígado, em 2003. Em seus livros aparecem personagens e sotaques dos dois continentes, em trânsitos possibilitados pelos mais variados exílios e turismos. Em 2666 (2004) – o romance inacabado de Bolaño –, o mote são os assassinatos – nunca elucidados pela polícia – de mulheres na mexicana Ciudad Juárez, metamorfoseada no romance em Sonora.
O realismo de Vargas Llosa, em O Sonho do Celta, leva a um distanciamento tal que nem sentimos o pulsar de Roger Casement, o cônsul que presencia e faz a denúncia dos abusos coloniais. Em Lituma o resultado é melhor logrado, pois é do diálogo entre dois peruanos, um mestiço e um limenho, que se constrói a narrativa. Entretanto, o recurso frequente de Vargas Llosa ao flashback instaura uma sorte de anteparo entre a violência e o leitor; por mais que as torturas sejam dignas de pesadelos, o leitor sempre sabe que será delicadamente retirado da cena pelo bondoso narrador, pois tudo já passou. Em Bolaño, pelo contrário, o pesadelo está sendo agora, e dele – parafraseando Joyce – não é possível despertar.
Uma contrapartida interessante a Bolaño é o catalão Enrique Vila-Matas, que, embora nascido em Barcelona, logrou inscrever-se na literatura latino-americana pela influência de Borges, Quiroga, Onetti, Cortázar e da influência comum de Joyce, Beckett, Gracq, Barthes. Vila-Matas, com sua realidade tecida de linguagem – através de citações nem sempre fiáveis de literatura, cinema, música –, aproxima-se muito mais do universo borgiano e é detentor de uma obra singular e engenhosa, cujo último título acaba de ser lançado no Brasil: Dublinesca (2010). Nesse livro, a literatura, o livro impresso e um editor fracassado são o mote da trama.
Nessa linhagem, pode-se citar ainda o argentino Ricardo Piglia (nascido em 1940), que, se começa como um autoproclamado seguidor de Roberto Arlt, Gombrowicz e Borges e tem romances nos quais discute as formas de narrar e ao mesmo tempo fala da história argentina, como Respiração Artificial (1980) e Cidade Ausente (1992), mas tem enveredado num gênero policial menos interessante, com obras como Dinheiro Queimado (1997) e Blanco Nocturno (2010). Seus ensaios curtos trazem sempre boas iluminações e ajudam a pensar sobre literatura, tragédia, psicanálise e afins; aí destacam-se O Laboratório do Escritor (1994), Formas Breves (1999) e O Último Leitor (2005).
Ainda entre os argentinos há outros nomes vigorosos nas gerações mais recentes, como Martín Kohán (nascido em 1967), que reconstrói a apoteose argentina na Copa de 1978 sob a aura da ditadura, numa narrativa contida que mostra a microfísica do poder manifesta sob o ponto de vista de um soldado argentino. O soldado fica inquieto diante de um erro ortográfico encontrado num caderno de anotações: “A partir de que idade se pode comesar a torturar uma criança?”. Trata-se de Duas Vezes Junho (2002).
Duas Vezes Junho, de Kohán, Os Exércitos, de Rosero, e 2666, de Bolaño, cada um à sua maneira, indicam caminhos para conceber literariamente isso que se chama a realidade histórica. A nota lamentável é o Nobel de Literatura de 2010 não ter sido outorgado a essa classe de escritas vivas e vigorosas do continente latino-americano.
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*WILSON ALVES-BEZERRA PROFESSOR DE DEPARTAMENTO DE LETRAS DA UFSCAR, TRADUTOR, AUTOR DE “REVERBERAÇÕES DA FRONTEIRA EM HORACIO QUIROGA” (HUMANITAS/FAPESP)
Fonte: ZH on line, 29/10/2011
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