sábado, 22 de outubro de 2011

O diálogo possível entre Freud e Kertész

ENTRE A CIVILIZAÇÃO E O AUTOANIQUILAMENTO

Antes de se tornar psicanalista, a francesa Laurence Kahn completou formação como historiadora, helenista e psicóloga

Psicanalista francesa que visitará Porto Alegre propõe atualização da noção freudiana de cultura a partir da experiência do século 20Valendo-se das obras de Sigmund Freud e de Imre Kertész, a psicanalista francesa Laurence Kahn, que estará em Porto Alegre na próxima semana, nos faz refletir sobre o extermínio e o totalitarismo. Também aborda a relação que levou Kertész, escritor húngaro e Nobel de Literatura de 2003, a pensar no que chamou de ausência de destino ou no Holocausto como cultura.
A experiência de ler Kertész – seja através de Kadish – Por uma Criança Não Nascida, seja por Liquidação, seja ainda pela série de conferências A Língua Exilada – faz com que apenas possamos imaginar aquilo que foi a vivência real de muitos seres humanos. Lê-lo nos permite a aproximação dessa experiência da barbárie humana que foi o Holocausto e a possibilidade de pensarmos o horror sobre a noção de civilização através da individualidade. A tal aproximação imaginária poderia ser acrescida a narrativa do russo Vassili Grossmann em Vida e Destino, que está para a guerra e o totalitarismo stalinista como Kertész para os campos de concentração.
Ainda que muitas vezes se torne impossível encontrar uma compreensão plena do ser humano, vamos nos servir de Freud para buscá-la. Ele define cultura como “tudo aquilo que faz com que a vida humana se eleve acima da condição animal”. Parece óbvio, mas, embora o homem sempre se diga acima dessa condição, nem sempre o é. Freud fazia questão de enfatizar que o processo cultural aparece ligado a duas forças opostas: Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte). Essa última revela o potencial agressivo e destrutivo do ser humano.
Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud diz que a família é a primeira formação de grupo natural. Ali ocorre a conversão do ciúme em solidariedade, as posições narcísicas se metabolizam e a identificação transforma a intolerância contra o rival em cimento da aliança. Nesse círculo, as crianças compartilham o amor dos pais, deixam de se opor e encontram o modo de concordância que implica o reconhecimento de “algo como si mesmo” no Outro. Laurence Kahn dirá que a noção de grupo mudou de sentido desde a época em que Freud escreveu esse artigo, e a noção de ideais também. As ideologias trouxeram sua carga de assassinatos industrializados (sim, o homem abaixo da condição animal). Como lembra a autora, infelizmente, os grupos possuem em seu fundamento o vetor de uma regressão sempre possível à barbárie, o que não foi desmentido pela história. Isolado, o homem pode ser um indivíduo culto; em grupo, possui a violência, a ferocidade, os entusiasmos dos seres primitivos, isto é, sua irresponsabilidade. E se a possui em grupo, significa que a possui, sem sombra de dúvidas.

“O segredo da sobrevivência é a colaboração”,
a colaboração mental graças à
qual se tenta encontrar as aparências da lógica."

Como pensar, então, uma possibilidade psíquica para suportar dor, frustração avassaladora, potencial de destrutividade e aniquilamento psíquico engendrados pelo próprio homem, como exemplificados nos campos de extermínio e no totalitarismo stalinista?
A resposta que emerge a partir de Kertész, que na adolescência viveu num campo, é retomada por Laurence Kahn: “Como explicar a irrealidade real que ressurge incansavelmente nos testemunhos daqueles que voltaram dos campos de concentração? O impossível tratamento dessa realidade, que perdeu qualquer vínculo com o imaginário – e, por conseguinte, com o próprio real –, sempre se expressa no obstáculo que se opõe à recomposição pela narrativa desse antípoda do sonhável, cujo grau de irrealidade abissal deve, mesmo assim, ser restituído”.
Para Laurence Kahn, é sempre um nó que a narrativa civilizatória desejaria desfazer relacionando o extermínio em massa a alguma origem do assassinato e da destruição e tentando, por sua vez, opor-se à repetição. Porém, o nó, desta vez, funciona como um nó corredio. O desafio da obra de Kertész será mostrar que deve a sua sobrevivência ao fato de ter conhecido a coerência de uma continuidade, de nunca ter esperado uma catarse qualquer que permitisse a vida livre, de ter tido de escrever num presente prolongado de Auschwitz.
Laurence Kahn entende que “falando do totalitarismo com outro totalitarismo, ele conseguiu, no presente, ser o porta-voz de todos. Porque a liberdade que ele encontrou no tempo sombrio que se seguiu imediatamente aos sombrios tempos nada devia à esperança ou à confiança. Era a opressão em si que criava a liberdade, negando-a dia após dia e tornando, dia após dia, sua existência mais evidente. Deve-se entender que Kertész encontrou no totalitarismo stalinista o itinerário que lhe permitiu reconstituir imaginariamente o círculo dos naufragados, formando um novo círculo de resistência. Que isso foi, para ele, a condição para conseguir transformar a experiência do campo de concentração em vivência humana e introduzir na cultura a descoberta dessa nova forma da universalidade, a ausência de destino. Para isso, era preciso ainda inventar uma língua – a língua atonal”.
Ele nos revelará, lembra Kahn, que no terror stalinista, a língua permanece um empréstimo: “Como se apropriar dessa língua dos outros de modo que ela diga o verdadeiro, não desmentindo o fato de que seu poder, aqui, agora como antes, é o do ‘Nós’ místico de qualquer estado totalitário? E como fazê-lo falar sem desconhecer que aqui, agora como antes, não há mais Eu nem Tu, que, entre a estatização do pensamento e a organização do entusiasmo, o homem é funcional, e a imoralidade, coletiva?”.
Diz Kertész: “Qual língua poderia pretender ser o Eu dominante do Holocausto, a língua do Holocausto?” Cabe então ao poeta inventar uma língua sem nota fundamental, sem baixo contínuo. E mais: “O segredo da sobrevivência é a colaboração”, a colaboração mental graças à qual se tenta encontrar as aparências da lógica.
Penso no imenso trabalho da cultura, que, ao mesmo tempo, abre também para a loucura, a credulidade, a sugestionabilidade do homem: homo sapiens demens, como nos disse Edgar Morin.
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REPORTAGEM POR: LUCIANE FALCÃO PSICANALISTA, MEMBRO EFETIVO DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
Fonte: ZH on line, 22/10/2011

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