Armando Raggio**
“A ciência, disse ele a Sua Majestade,
é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo”.
Simão Bacamarte em O Alienista *
A medicina se encontra entre duas culturas: a humanística e a científica, assim já se reportava Charles Percy Snow (¹) à ambiguidade da profissão em seu livro “As duas culturas e um segundo olhar”, publicado em 1959.
Para um feiticeiro, um xamã ou um pajé, a doença é uma manifestação do sobrenatural. Tratar a doença é penetrar num mundo sombrio e desconhecido (²).
No código de Hamurabi, 1700 antes de Cristo, se um médico abrisse um tumor, ou tratasse com faca uma ferida grave, ou curasse um olho doente, ele receberia dez siclos de prata. Se o paciente fosse um homem livre; cinco siclos. Se fosse um descendente de plebeus; dois siclos, se fosse um escravo.
Montaigne, Moliére, Flaubert, Tostoi e inclusive Shaw se recusaram a endossar a idéia do médico como sacerdote. E, ao fazê-lo, humanizaram a profissão e ensinaram aos próprios médicos uma lição de humildade (²).
Hoje a questão é saber se a medicina moderna, científica, que nasceu em fins do século 18 com o aparecimento da Anatomia Patológica, entre Morgani e Bichat, é ou não é individual (³).
Na medida em que a medicina é ligada a uma economia capitalista, deve ser uma prática individual, individualista, reconhecendo unicamente a relação de mercado do médico com o doente, ignorando a dimensão global e coletiva da sociedade? Não, a medicina é uma prática social, que somente em um de seus aspectos é individualista, e valoriza as relações médico-pacientes.
A medicina é uma estratégia bio-política na mesma medida em que o corpo é uma realidade bio-política. O corpo humano foi o primeiro objeto socializado desde fins do século 18 e início do século 19, enquanto força de trabalho e força de produção. Assim se baseou Foucault (³) para afirmar que o controle da sociedade sobre os indivíduos começou pelo corpo, com o corpo e não simplesmente pela consciência ou pela ideologia.
A Revolução Industrial, a aglomeração urbana, a falta de saneamento, o trabalho extenuante e as doenças transmissíveis determinavam a forma de adoecer no século 19. No Brasil de então, o trabalho escravo trazia a morte mais cedo e reduzia a esperança de vida ao nascer só comparável aos tempos de Cristo.
Já na primeira metade do século 20, com o “fordismo” promovendo a expansão capitalista para a periferia, a industrialização também nos alcança para substituir o modelo agrário exportador brasileiro. E nós transitamos do mutualismo anarquista à previdência social, a partir de 1923 com a Lei Eloy Chaves, ao criar-se as Caixas e depois os Institutos de Aposentadoria e Pensão na República Nova.
A 1ª e a 2ª Conferência Nacional de Saúde, em 1941 e 1950, indicariam a modernização do aparelho sanitário nacional, com a criação das secretarias estaduais de saúde e o desmembramento dos ministérios da Educação e da Saúde, em 1953. E dez anos depois, a 3ª Conferência Nacional, em1963, viria indicar a municipalização da saúde, sendo seus objetivos retomados pela 8ª Conferência, em 1986, e a Constituinte de 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde, em 19 de setembro de 1990.
Adoecer então, entre 1950 e 2000, já não seria das doenças infecto-parasitárias, mas dos “males da civilização”, ou seja, das doenças crônico-degenerativas, com a maximização da esperança de vida ao nascer, superando os 70 anos no raiar do novo século.
O avanço do capital no setor saúde atinge atualmente todo o mundo, com a produção se deslocando cada vez mais para o setor serviços, inclusive os serviços de saúde, e assim também no Brasil.
O que significará o trabalho médico no século 21?[!]
O médico do nosso século terá que enfrentar as crescentes agressões da natureza; as persistentes doenças hereditárias e cada vez mais as doenças causadas pelas relações humanas e, como diria Freud, (4) estas serão as mais difíceis de tratar, pois podem afetar toda a humanidade, agravadas pelo mal-estar da pós-modernidade, (5) quando trocamos a segurança social por liberdade individual a qualquer custo.
Segundo o aforismo hipocrático, (6) a vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora e o julgamento muito difícil... Mas naquele tempo o cuidado era mais importante que a intervenção. A técnica, tal como a conhecemos hoje, era muito incipiente. O trabalho era principal, embora também pouco reconhecido.
Ser médico no século 21 exigirá de cada um a capacidade de resolver problemas como na origem da nossa civilização, retomando o cuidado das pessoas, antes que elas se percam e se consumam, consumindo uns aos outros!
* Papéis Avulsos, Machado de Assis, 1882
1. Snow,C.P. 1905-1980
2. Scliar, M. A Paixão Transformada, 1996
3. Foucault, M. O Nascimento da Medicina Social em Microfísica do Poder, 1979
4. Freud, S. Mal Estar da Civilização, 1929
5. Bauman, Z. O Mal Estar da Pós-Modernidade, 1997
6. Hipócrates de Cós, Século IV aC
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**Armando Martinho Bardou Raggio é Diretor do Hospital Unversitário de Brasília - HUB. Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Paraná, tem experiência na área de Medicina Preventiva e Saúde Pública com ênfase em Planejamento e Gestão da Saúde, Bioética e Economia da Saúde, Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Gestão Participativa e Controle Social na Saúde, além de Patologia e Medicina Legal.
Fonte: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/artigo.php?id=462 18/10/2011
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