sábado, 29 de outubro de 2011

Filhos, por quê?

Michel Onfray*


Por que fazer filhos? Em nome do que? Para fazer o que deles? Que legitimidade temos para fazer surgir do nada um ser a que, no fim das contas, só se propõe uma breve passagem por este planeta antes de voltar para o nada de que provém? Gerar pertence em grande parte a um ato natural, a uma lógica da espécie a que obedecemos cegamente, ao passo que tal operação, metafísica e realmente pesada, deveria obedecer a uma escolha razoável, racional, informada.

Somente o solteiro que ama superiormente os filhos enxerga além da ponta do seu nariz e avalia as consequências a infligir a pena da vida a um não ser. É assim tão extraordinária, alegre, feliz, lúdica, desejável, fácil a vida para que a demos de presente aos filhos do homem? Deve-se amar a entropia, o sofrimento, a dor, a morte para que, apesar disso, ofereçamos tanto assim esse trágico presente ontológico?

A criança, que não pediu nada, tem direito a tudo, principalmente a que cuidemos dela totalmente, absolutamente. A educação não é uma criação, como a de animais – o que supõem os que falam em criar filhos. Mas a atenção de cada instante, de cada momento. O adestramento neuronal necessário à construção de um ser não tolera um só minuto de desatenção. Você destrói um ser com um silêncio, uma resposta diferida, uma negligência, um suspiro, sem perceber, cansado pela vida cotidiana, incapaz de ver que o essencial para o ser em formação não se joga de tempo em tempo, mas em permanência, sem trégua.

É preciso muita inocência e muita inconsequência para se engajar na edificação de um ser, quando com frequência, com muita frequência, não se dispõe nem sequer dos meios de uma escultura de si ou de uma construção de seu próprio para na forma apropriada do seu temperamento. Freud previu, entretanto: o que quer que se faça, uma educação é sempre fracassada. Quanta razão lhe dá um olhar sobre a biografia da sua filha Anna!

O filho obtido numa família une definitivamente o pai à mãe. La Palice¹ confirma: um homem (ou uma mulher) pode deixar de amar sua mulher (ou seu marido), todavia ela (ou ele) continuará sendo para sempre a mãe (ou o pai) de seus filhos. A confusão entre a mulher, a mãe e a esposa no casal clássico – idem para o arranjo do homem, pai, marido – provoca irreparáveis danos aos filhos, uma vez desfeito esse arranjo. A procriação age como uma nova armadilha para impedir o Eros leve e condenar ao peso de uma erótica a serviço de mais do que ela, a saber, a sociedade.

Não há, como ouço com frequência , uma alternativa que oponha o egoísmo dos que se recusam a ter filhos à generosidade compartilhadora dos casais inteiros na abnegação, mas seres que têm o interesse, tanto um como outro, de agir, como agem. O egoísmo de genitores que seguem sua inclinação vale tanto quanto o egoísmo de quem opta pela esterilidade voluntária. Creio no entanto que só um real amor aos filhos dispensa alguém de fazê-los...

1- Grande marechal da França, La Palice teve seu nome associado às afirmações óbvias, tautológicas (chamam-nas uma “verdade de La Palice”), por causa da infelicidade destes versos de uma canção que exaltava sua coragem: “quinze minutos antes de morrer, / ele ainda estava vivo”. (N. do T.)
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*Michel Onfray (Argentan, Orne, 1 de Janeiro de 1959) é um filósofo francês, fundador da Universidade Popular de Caen. Seu pensamento se caracteriza pela afirmação da razão, do hedonismo e de um ateísmo militante.
Do livro: ONFRAY, Michel: A potência de existir. Ed. Martins Fontes, SP, 2010, pp.69/70.
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