segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Como julgar os juízes?

ROBERTO DAMATTA*

Um dos inventores da sociologia, Emile Durkheim, dizia que numa sociedade de santos os pecados veniais seriam faltas escandalosas. Como julgar um santo entre santos? E como dentro da espessa tradição legalista do Brasil – uma tradição segundo a qual todos os problemas podem ser resolvidos por decreto e muitos agentes do governo são “blindados” ou vacinados contra a igualdade perante a lei – ilegalizar seus agentes mais importantes: os juízes que lavram a sentença final, encerrando o assunto até que, é óbvio, haja um recurso? Porque, tal como no paraíso e no mundo ideal onde o que conta é o que está formulado nos autos, cabe sempre um apelo para cima ou para baixo.
Como, faz tempo, me disse um sertanejo goiano: todos temos um patrão, e até mesmo o patrão dos patrões também tem patrão. E, como dizem os jornais, só há um magistrado preso. Em cadeia domiciliar e com vencimentos integrais. Essa seria, na prática, a maior punição de um juiz no Brasil.
Num universo onde o legalismo jurídico é a cabeça da administração (outros poderes seriam os braços, outros as pernas ou os pés) e no qual constitucionalidades e inconstitucionalidades são arguidas a todo instante pelo governo e pela oposição, embora a Constituição, ela própria, tenha mudado muitas vezes, como recortar o mundo para situá-lo em algum lugar quando nossa tradição jurídica assevera que ele jamais está onde o colocamos? Como estabelecer a famosa linha amarela que circunscreve um território onde o crime ocorreu e ali demarca o local da investigação?
Cansei de ouvir discussões banais transformadas em debates jurídicos complicados quando alguém, em geral surtado por alguma norma ou regimento, argumentava que o problema estava resolvido porque estava previsto em lei, como manda nossa velha tradição Ibérica e Contrarreformista. O melhor exemplo foi a Lei da Ficha Limpa com a qual nós, o povo, queríamos expurgar criminosos eleitos, mas que os juristas entenderam como algo que afetava o calendário eleitoral. Mal comparando, estávamos querendo jogadores de futebol sem passagem pela prisão, mas muitos entendidos julgaram que estávamos falando da estrutura do campeonato.
CONFLITO
A ministra Eliana Calmon, da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça,
 e o ministro Cézar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal, têm visões opostas
sobre a fiscalização do Judiciário
(Foto: Nelson Jr./SCO/STF)




Quando se trata de Direito, o leigo não vê problemas onde o especialista – que constrói o mundo pela realidade real da lei – faz uma distinção chocante entre o habitual e o legal. O resultado é que algumas condutas podem ser imorais, mas legais. O costumeiro pode levar à prisão. Assim prescrevemos o roubo dos dinheiros públicos, mas o apanhador de passarinhos é devidamente enjaulado. Já o jogo do bicho, esse brasileirismo, como dizia Gilberto Freyre, um jogo moralmente aprovado e parte da nossa concepção de mundo, é uma contravenção!
O combate crucial entre o Conselho Nacional de Justiça e a Associação dos Magistrados Brasileiros, com ecos no Supremo, lembra o fosso de nossa índole hierárquica, recriado pela Contrarreforma Portuguesa quando fez face à revolução individualista, ampliada e tornada hegemônica com a ética do protestantismo e do calvinismo. Nela, os letrados são parte fundamental do poder. E uma Justiça feita de muitos conselhos presta mais atenção a direitos que a deveres. Hoje, tenta-se impedir o controle do poder dos magistrados pela sociedade, um dado essencial para o bom funcionamento do Judiciário e da democracia. Trata-se de levar adiante (ou não) um processo básico em qualquer sistema burguês e liberal: submeter todos os cargos da República à regra da lei. Mas eis que esbarramos na secular resistência a esse controle da sociedade (representada pelo CNJ) para a qual todos os funcionários públicos devem trabalhar.
O conflito entre o CNJ e a magistratura (e o STF) é um dos vários sintomas de um sistema que claramente combina hierarquia aristocrática e a prevalência da totalidade. Nele, tudo aquilo que diferencia e individualiza, criando conflitos normais em qualquer sistema igualitário, é lido como crise. A todo momento, ideais republicanos como a liberdade e a igualdade chocam-se com a pesada carga hierárquica e aristocrática que governa por meio de leis, portarias, marcos regulatórios e decretos – autoritariamente. Trata-se do fantasma do velho Portugal, onde o Poder Executivo englobou nobres e burgueses e inventou procuradores, ouvidores, curadores, desembargadores e corregedores com sua notória hipersensibilidade ao esquema republicano constituído de uma trindade de poderes em equilíbrio instável e permanente. Outro ponto importante desse conflito é o surgimento da velha dualidade entre a sociedade, com seus costumes e tradições (tidas por quase todos os intérpretes do Brasil como equivocadas, senão doentias – as tais “taras e origem”), e o Estado, que, forte, culto e bem aparelhado, iria europeizá-la, embranquecendo-a e civilizando-a por meio de regras, decretos, constituições e – eis o ponto-chave que cabe discutir e politizar – funcionários especiais que, sendo autores das leis, delas podiam escapar. Seja por meio de laços de família, seja por meio de provisões legais contidas no próprio cargo que era apropriado e se confundia com seu ocupante, como é o caso exemplar dos magistrados.
"Temos aqui mais um exemplo de
 um sistema que quer ser igualitário no ideal,
mas continua aristocrático na prática"
Não há a menor dúvida de que temos aqui mais um estertor de um sistema que escolheu ser igualitário no ideal, mas que, na prática, continua querendo ser aristocrático; que, no céu, tem um regime legal que vale para todos, mas ainda hesita em suprimir cláusulas que excepcionalizam cargos, protegendo seus ocupantes e dando-lhes privilégios de nobreza na terra. Tal nobilização – que torna certos funcionários filhos diletos do Estado e do governo, contra toda a onda universalista das mais diversas igualdades, da moeda única e consistente até a meritocracia e a competição regrada, sem esquecer, é claro, o tratamento dos opositores políticos como adversários, e não mais como inimigos – conduz à pressão para suprimir esses dois pesos e medidas para que a imprensa e os observadores mais atentos, bem como um ou dois estudiosos do sistema, têm chamado a atenção. Impossível ter liberalismo sem igualdade. Impossível a igualdade sem a submissão de todos os cargos à regra da lei. Impossível, ainda, perseguir esse ideal não discutindo a separação entre cargos e pessoas; entre os papéis que são da sociedade e seus eventuais ocupantes. Tomando partido da igualdade como valor e ideal que não impede, mas dificulta o uso de éticas aristocráticas em plena república.
Caso contrário, estaremos fadados a repetir a paródia mencionada por um notável especialista em história social do Direito, Harold Berman. Nela, uma autoridade em lei e teologia islâmica, um mulá (cargo equivalente a ministro do STF), ouve uma disputa e, diante dos belos argumentos do reclamante, sentencia: “Creio que você tem razão”. Ouve, a seguir, a defesa e, novamente encantado, exclama: “Acredito que você está certo”. Horrorizado, o escrivão lembra que “ambos não podem estar certos”. Ao que o mulá responde dizendo: “Você também está certo!”.
Tal e qual no Brasil antigo que precisa mudar, é impossível aceitar a velha (mas tradicional) resposta, segundo a qual todos têm razão. Seja porque são amigos ou porque, como se diz entre nós, todos “têm o rabo preso”. O que está em pauta no momento é a dificuldade de fazer justiça salvando a honra senão dos mais importantes, senão de todos os implicados. E, para isso, temos de escolher entre blindar certos cargos aristocratizando-os ou seguir a norma da igualdade que impede usar dois pesos e duas medidas.
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* ROBERTO DAMATTA é antropólogo, autor de Carnavais, malandros e heróis (1979) e Pé em Deus e fé na tábua (2010).
Fonte: Revista ÉPOCA on line, 07/10/2011

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