Faustino Teixeira*
“Que ele me beije com os beijos da sua boca!
São melhores que o vinho teus amores,
Como a fragrância dos teus refinados perfumes.
Como perfume derramado é o teu nome,
Por isso as adolescentes enamoram-se de ti” (Ct 1,2-3)
Gregório de Nissa (séc IV) foi o pioneiro em âmbito cristão de uma reflexão mística fundada numa teologia negativa (apofática), que exercerá um importante influxo no pensamento de Dionísio Areopagita (séc V). Ele introduziu a clássica doutrina teológica que distingue a essência divina escondida de suas energias manifestadas no mundo, que fará escola na teologia da Igreja ortodoxa oriental. Em sua visão, o mistério de Deus não pode ser alcançado em sua essência, mas somente de forma modesta e sutil nos rastros que deixa na criação e no interior de cada ser humano. Todos os nomes que falam de Deus constituem alusões limitadas a um mistério que é sempre maior. Alguns preferem recorrer à categoria Realidade Última ou Real para dar conta de seu significado. Trata-se de uma formulação mais neutra e com maior densidade macro-ecumênica. Ainda que exígua e limitada, a nossa percepção desta Realidade pode ser preciosa e verdadeira. Basta aperfeiçoar os sentidos e educar o olhar para saber captar o Real que se espraia por toda criação e história.
No início do Cântico dos Cânticos, em passagem que inspirou grandes nomes da tradição cristã, como Orígenes e Gregório de Nissa, o Amado manifesta-se com um perfume suave e difuso (Ct 1,3). A natureza ilimitada de Deus está protegida por uma barreira “impenetravelmente densa”, mas dela emana um perfume suave que possibilita um vislumbre de sua presença no mundo. Basta ter um coração puro para perceber este odor, ou seja, esta presença que é simples, florescente e delicada. Nada mais, nada menos do que “abrir os olhos” para poder desocultar o outro mundo que habita este mundo.
Em seu trabalho de orientação espiritual dos noviços trapistas na abadia de Gethsêmani (EUA), Thomas Merton mostrou de forma límpida e transparente que a vida contemplativa não é uma possibilidade distante, mas bem acessível. Consiste em “simplesmente viver, como o peixe n´água”, e ter o ouvido musical para captar a presença de um mistério que nos envolve por toda parte. A experiência mística, como vem mostrando Raimon Panikkar em trabalhos recentes, não é algo destinado apenas a determinados virtuosos, mas é um evento que se dá na abertura à dinâmica integral da vida e da realidade.
Os sinais do mistério estão aí, por todo canto, para além do “fragor retumbante das máquinas”, da dinâmica consumista e da busca irrefreada de poder. Eles se revelam teimosos na força inesgotável do que é Simples. O olhar se ilumina na medida em que novos espaços são criados para experiências de profundidade, quando se educa a vista para sentir o tempo de forma apaixonada, e se dá atenção ao pequenos detalhes da vida cotidiana.
A experiência mística irrompe quando nos sentimos “tocados” pelo mistério, quando acendemos o olhar para a “infinita Realidade que existe dentro de tudo o que é real”. Ela acontece quando nos despertamos para o “caráter sagrado da vida e do ser”.
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* Faustino Teixeira: Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Doutorado e Pós-Doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Pesquisador do CNPQ e Consultor do ISER/Assessoria (RJ). Linhas de pesquisa nas áreas de teologia das religiões, diálogo inter-religioso e mística comparada.
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