ANSELMO BORGES
Realizou-se nos dias 8 e 9 deste mês, em Valadares, Seminário da Boa Nova, com mais de duzentos participantes, um Colóquio internacional, subordinado ao tema: "Quem foi (é) Jesus Cristo?"
Jesus Cristo está na base da maior religião: mais de dois mil milhões de seres humanos espalhados pelo mundo reclamam-se hoje da fé nele e dizem-se cristãos. A sua figura foi de tal modo determinante que a História se dividiu em antes e depois de Cristo. Ninguém tem dúvidas de que sem ele a História seria diferente.
No entanto, viveu num recanto do Império Romano e a sua intervenção pública pode não ter chegado a dois anos. Morreu como blasfemo religioso e subversivo social e político. Uma coligação de interesses religiosos e políticos de Jerusalém e Roma condenou-o à morte e morte de cruz, própria dos escravos.
Com essa morte ignominiosa, deveria ter sido o fim. O que se passou, para que, pouco depois, tivesse começado em seu nome um movimento que transformou o mundo e que chegou até nós? Após a dispersão, os discípulos voltaram a reunir-se, afirmando que ele está vivo em Deus.
Como escreve o historiador E. P. Sanders, professor em Oxford e Cambridge, "sabemos quem foi Jesus, o que fez, o que ensinou e porque morreu; e, talvez o mais importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas que lhe foram tão fiéis que mudaram a História". "Em rigor, a ressurreição não faz parte da história do Jesus histórico, mas pertence ao resultado da sua vida."
Sem a convicção de fé dos discípulos de que ele é o Vivente em Deus, não haveria cristianismo. Só assim se entende a passagem do Jesus da história ao Cristo da fé, de tal modo que o seu nome agora é Jesus Cristo, Jesus em quem se acredita como o Cristo, o Messias e Filho de Deus.
Para os crentes, se Jesus não fosse o Cristo, não passava de mais um combatente bom pela Humanidade e um revolucionário crucificado. Há, porém, um outro perigo, mais subtil: o de se ficar apenas com o Cristo Senhor glorificado, esquecendo o Jesus histórico de Nazaré, e o que ele queria, e o que ele fez, numa mensagem e comportamento que o levaram à cruz.
Veja-se o que se diz no Credo: "Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Por ele todas as coisas foram feitas. E, por nós, homens, e para nossa salvação desceu dos céus. E encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus." Pergunta-se: e entre o nascimento e a morte na cruz, o que se passou? Não aconteceu nada? Ele não fez nada?
Este é que pode ser e tem sido o grande esquecimento. Tudo começou em São Paulo, que não tinha conhecido o Jesus histórico e, assim, só contactou com o Jesus glorificado, o Senhor, o Kyrios. Foi este Jesus Kyrios (Senhor) que ocupou o centro no quadro de interesses imperiais, como é sabido desde Constantino, e que acabou por legitimar poderes, domínios, guerras, uma Igreja senhorial.
Pensou-se então que bastava prestar-lhe culto -missas, procissões, adorações ao Santíssimo... -, sem a exigência de segui-lo no seu Evangelho do Reino de Deus, no que ele quis e fez com os pecadores, as mulheres, os estrangeiros, na relação com o dinheiro, com a política, os pobres, Deus e a religião. O cristão não precisaria de converterse.
Há um texto terrível do filósofo agnóstico Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt: "Jesus morreu pelos homens, não podia guardar-se para si próprio avaramente e pertencia a tudo o que sofre. Os Padres da Igreja fizeram disso uma religião, isto é, fizeram uma religião, que também para o mal (moral) era uma consolação. Desde então isso teve um êxito tal no mundo que pensar em Jesus nada tem a ver com a acção e ainda menos com os que sofrem. Quem lê o Evangelho e não vê que Jesus morreu contra os seus actuais representantes não sabe ler."
---------------------------*Colunista do jornal português Diário de Notícias
Fonte: DN, 18/10/2011
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