domingo, 22 de junho de 2014

A escritora Fernanda Pacheco: escrevo quando quero

Marcelo Vinicius*
 
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Um dia desses estava lendo uma entrevista da escritora Fernanda Pacheco. Para quem não a conhece, é autora do livro "A culpa é do Chet Baker" (Editora Patuá). E, enquanto lia a tal entrevista, eu pensava: "até que enfim encontrei alguém, dessa novíssima geração, que usa a escrita como eu."

Uns dos relatos dela são até universais, como: “o que conforta, acomoda e traz sossego não faz parte da minha escrita. Não é algo que eu busque pra escrever até porque não me instiga nem um pouco.”

Isso me fez lembrar de uma entrevista que realizaram comigo para o site Mais Bahia, em 2012, em que eu disse: “para mim, a produção de um livro é sempre desgastante, não só porque a escrita em si lhe exige certas habilidades, mas também porque quando escrevo sempre advêm de uma inquietação.”

E, entre outros dizeres, eu continuei: “e quando me perguntam o que eu quero falar, eu respondo sempre: o absurdo, e digo também que eu quero articular com todos que se estabelecem além das agruras de simplesmente viver, que procuram se desenvolver, se perguntar ‘Por quê?’. Nesses meus escritos estão sempre os problemas últimos da existência: a angústia, o desejo, a perplexidade, o amor, o temor da morte e o anseio de eternidade, a revolta diante do absurdo da existência.”

O famoso poeta Ferreira Gullar também comentou, sobre sua própria escrita, algo semelhante:

 “a poesia só existe quando nasce de um acontecimento existencial. Se não for assim, não me interessa [...] eu afirmei aqui que, de um modo geral, minha poesia nasce do espanto. Platão diz que o conhecimento nasce do espanto. É isso, pelo menos, o que acontece comigo…”

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Escritor Ferreira Gullar

Outro ponto interessante numa entrevista com Fernanda Pacheco é sobre a inspiração para escrever, e que, para mim, foi bem mais singular, pois a maioria escreve constantemente, entra na síndrome do papel em branco, jamais deve parar de escrever e deve ficar ali esperando a inspiração aparecer, etc. Só que antes de comentar o que ela pensa a respeito disso, esse tema faz me voltar a um trecho, até longo, que escrevi para um livro meu, mas que nunca publiquei; esse deixei na gaveta (apesar de tê-lo postado na internet em 2010, as suas partes devem ainda estar navegando por aí…), que dizia sobre essa questão da falta de imaginação. O pedaço da história contava:

"[...] por estar um pouco agoniado, se levantou da cadeira e se sentou ao lado de suas anotações organizadas, flertando com a idéia de que, talvez, esses seus escritos poderiam esperar, porém logo mudou esta opinião:

“Sim, eu considero essa premissa muito forte: deixar para escrever depois. Mas não, tenho que terminar o que comecei. Apesar da doce noite de sono que chegará me pedindo, como crianças abandonadas e cães de rua, para que eu vá me deitar, eu resistirei. Eu me nego a dormir até que o trabalho seja feito… Mas como está o trabalho que eu tenho realizado até agora? Certamente que ele iria me inspirar a terminar isto tudo? Eu olho para o que eu tenho criado com esforço. No entanto, sinto-me como um bicho-preguiça: hesitante e lento. Até agora, a minha iniciativa incipiente se provou frustrante, para mim, e minha vontade está lentamente desaparecendo por causa do estresse incessante dessa frustração” — refletiu Michael.

Ainda tentando escrever algo, ele entrelaçou as suas pernas debaixo de si mesmo em uma postura que visava reforçar a sua vontade. Mesmo assim, os demônios da falta de imaginação se insinuavam. Ele tentou agitar a fluidez da sua mente e olhou para a uma lâmpada do quarto, que projetava uma considerada iluminação. “Como seria bacana escrever no escuro” — disse Michael em voz alta — “a escuridão traz idéias esplêndidas, se comparada com as luzes quando permanecem brilhando”.

Mas mesmo o incômodo persistindo, por causa daquela claridade, ele procurou ignorá-lo da melhor maneira possível, pois precisava terminar o seu trabalho. Tinha que desbloquear a prisão dos seus pensamentos e permitir a concepção do seu mundo para começar a escrever.

Michael “raspou” as entranhas da sua mente e encontrou apenas folhas em branco, desprovidas de inspiração. Os pensamentos permaneceram estagnados. Olhou perplexo para o pedaço de papel em branco. As linhas permaneceram perfeitamente em seu curso reto. O poço de sumidouros no seu estômago o fez sentir um peso decepcionante que crescia, manifestando-se em algum canto escuro da sua consciência.

Até o momento, a sua mente tinha sido obscurecida por distrações desnecessárias: uma mente excêntrica desvendada pelos encargos de um monstro, aquele monstro que tanto aparece na mente de um escritor: o Demônio da procrastinação, que é uma besta alimentada pela dúvida e pela incerteza; sustentada pelo perfeccionismo que afeta, em horas intermináveis, a mente inquieta, travando uma batalha inacabável do perfeccionismo com as próprias imperfeições do escritor. Esta besta sorriu para Michael, o qual olhou de volta para ela com espanto.

Na verdade, Michael estava perplexo com a subsistência desta besta e assim tornou-se fascinado por ela. Estudou seu rosto enigmático, tentando sufocar a sua aflição, mas sabia que não poderia sufocá-la. “Por que você não me deixa?” — perguntou Michael para tal besta e se manteve em silêncio aguardando a sua resposta, mas nada o respondeu.

Michael estava preso pelas pressões da sua situação e trancado em seu desejo de escapar de tudo isso. Por causa do seu estado, ele gritou de frustração para a tal besta: “apenas me deixe ser!”. Mas ele sabia que era inútil. A luta seria para sempre e sempre iria lutar para escapar dela.

Então, de repente, as idéias pareciam que estavam queimando dentro da sua mente com entusiasmo apaixonante. Suas pernas tremiam de emoção. Sua mente dificilmente poderia manter seus pensamentos frenéticos.

Colocando a ponta da caneta sobre a página, ele sorriu. Ele disse para si mesmo as primeiras palavras que iria cometer ao papel: “e assim eu…”. Mas sua mão hesitou. Ele tremeu. Deste modo, ele tentou jogar fora a sua invisível preocupação em relação a sua mão. Ele moveu a ponta da sua caneta para trás rapidamente, tentando quebrar esse feitiço. Mas não havia tinta sobre a superfície branca do papel. Por isso, irritado, atirou a caneta ao chão.

Em um mundo onde os artistas lutam e os humanos lutam para viver, Michael se viu olhando para o papel em branco com nenhum texto de sua autoria. No entanto, mesmo quando a besta, o monstro ou o demônio, como queira chamar a falta de inspiração, “comia” Michael e o distraía do seu propósito, não havia mais nada que ele preferiria estar fazendo, isso é o que ele é: um escritor com a maldição de ser um escritor e por isso só podia se sentar e esperar o monstro deixá-lo. Ele só podia se sentar com as suas páginas em branco.

A cada dia os artistas lutam para encontrar a imagem perfeita, a palavra perfeita para a frase perfeita, o enredo perfeito que irá abalar as nossas emoções como o guitarrista ao tocar as suas cordas ao ritmo do coração de um artista. Não há cura ou solução definitiva para isso, só há busca de inspiração.

“Nossa, o que é que eu estou fazendo? Esfregando minha caneta contra meus lábios e suspirando em silêncio, esperando que algo aconteça? Eu penso sobre minhas palavras, uma a uma… Eu acho que o monstro ainda está me olhando… Eu penso sobre o ‘Estranho da Madrugada’, agora… Porra…” — pensou Michael, confuso e que certamente se convenceria de que a sua inspiração não surgiria…"

É incrível saber que o drama dessa história, aqui contada, com o meu personagem Michael ao tentar, sem sucesso, escrever algo, não se tornaria em um problema para escritora Fernanda Pacheco, ela tiraria isso de letra, pois em uma situação dessas, simplesmente Pacheco agiria da forma como respondeu a uma entrevista: “não forço verso. Posso enlouquecer com a cabeça a mil por hora, mas se a caneta não consegue rabiscar uma palavra, então eu largo e sei lá, tomo uma cerveja, assisto desenho animado russo, tiro a cutícula. Volto ao poema só quando tiver que ser.”

Assim, toda minha historinha que contei aqui e o meu personagem Michael se tornariam desnecessários, isso se Fernanda Pacheco fosse minha personagem, ao invés do próprio Michael.

E o engraçado é que, apesar de ter escrito o drama do protagonista Michael com sua tormenta devida a falta de inspiração para escrever, eu sou como a Fernanda Pacheco disse sobre ela mesma na entrevista e que também me faz lembrar, de novo, do poeta Ferreira Gullar, quando este comentou: “entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto. Não determino o instante de escrever: ‘Hoje vou sentar e redigir um poema’. A poesia está além de minha vontade. Por isso, quando me indagam se sou Ferreira Gullar, respondo: ‘Às vezes.’”
Como diz outra escritora, Cristina Lasaitis: “já há muito ruído de fundo no mundo, então escrevo quando tenho algo importante a dizer.”

Enfim, como expressou o grande jornalista, autor, cientista Benjamin Franklin: “ou escreves algo que valha a pena ler, ou fazes algo acerca do qual valha a pena escrever.” No mais, meu caro escritor, é melhor não perder seu tempo olhando para o papel em branco, porém, digo isso porque não funciona comigo. Não é à toa que eu disse, logo no início, que o pensamento de Fernanda Pacheco é tão singular. O escritor que espera um momento ideal para escrever, vai morrer com papel em branco.
Mas, se você, leitor, pensa diferente, ótimo; a historinha do Michael aqui contada, então, lhe cairá muito bem. Digo isso sem moralismo e sem ironia, eu acho ótimo mesmo, acredite…
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* Marcelo Vinicius é um fotógrafo e escritor de olhar inquieto e apaixonado pelo novo. É amante da arte, seja fotografia, cinema ou literatura. Participou de jornais regionais, escreve para o portal Obvious e é colunista do site Homo Literatus. É graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Faz parte da equipe editorial da Revista IDEAÇÃO, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia; é integrante do grupo de estudo em Filosofia da Arte de Arthur Danto e do grupo de estudo em Filosofia Contemporânea; participou também do projeto de extensão sobre cinema e produção de subjetividade (Sala de Cinema) e do grupo de pesquisa em Psicologia Social na UEFS. Além disso, é certificado pelo curso de fotografia do CUCA – Cento Universitário de Cultura e Arte.
 

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