Alessandro Martins*
Há dois anos, num dia frio como hoje, perdi um pedaço. Não uma fatia,
não um naco. Não um ventrículo, não um átrio do coração. Nenhuma sístole
ou diástole foi negligenciada. Não perdi uma das suas muitas válvulas,
ou veias, ou artérias, feixes musculares. Não o vazio da escura caverna
fibrosa, não o oco quando o sangue falta, não o som surdo quando o
sangue flui, não o oxigênio, o ferro e a glicose que nutrem o órgão na
sua continuidade involuntária. Ou mesmo a resultante química e física do
processamento orgânico dessa combustão, nem isso perdi.
Há dois anos,
num dia frio como hoje, perdi um pedaço e não sangrei. Não explodi em
hemorragia que colorisse as paredes do aposento. Não caí e não me
joguei. Foi mais como ruir para dentro. Ainda funciono, como um relógio
funciona. Um relógio funciona, ainda que sem ponteiros. Mas não perdi
ponteiros. Apenas não quero ver as horas.
Num dia frio, como hoje, elas
passam do mesmo modo como nos dias quentes. E não há novidade nisso.
Perdi um pedaço e a conta dos pedaços que restaram não bate na
contabilidade entre o que havia e o que, agora, há. Desmontei todas as
peças, tudo se encaixa, nada sobrou e está tudo perfeito. Ao colocar na
balança, falta algo e, ainda assim, o conjunto pesa mais do que no
início. O que me faz concluir: seja lá o que perdi, era mais leve que o
ar. Planava no peito, no sutil equilíbrio de correntes ascendentes, sem
bater asas, sem propulsão. Deslizava em si mesmo, caudaloso. Não uma
parte que existia, mas uma que, do nada, surgiu. Não congênita, mas
adquirida, brotada, vital e viçosa, se enroscando por dentro com
gavinhas e buscando o sol, enraizando-me no mundo, no lado de fora, nos
outros. Ligando o ponto A interno com o ponto B externo. Como se, então,
eu tivesse de aprender a andar sobre essa corda bamba imaginária com um
par de pernas novo em folha e isso não fosse mau. Pois era o movimento
do encontro. E, de repente, piso em falso.
Não perdi, há dois anos, num
dia frio como hoje, nada que eu de início tivesse, mas aquilo que passei
a ter e, agora, não tenho mais. Não sou apenas a presença, mas também
as lacunas, os trechos, os pontilhados, os vazados, o caule despetalado,
a ponte levada pelas águas, os nomes omitidos, as pedras que não
serviram para construir e voltaram para o rio, silenciosas sob as águas,
a toca de bicho, abandonada, a órbita vazia sob o tapa-olho, o cômodo
lacrado, a pele que sai com o curativo, tudo o que em mim também é
ausência, tudo o que é silêncio, tudo o que era, não é mais e não mais
será.
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* Escritor. Cronista.
Fonte: http://alessandromartins.me/ 23/06/2014
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