João Pereira Coutinho*
1. Confesse, leitor: sempre que a seleção joga, você sente a adrenalina a
correr mais forte. O álcool é bebido com outra intensidade. E quando o
jogo termina, surge a velha e shakespeariana pergunta: bater ou não
bater, eis a questão.
Resumindo, aqui está um estudo recente do Reino Unido, divulgado pelo
"Guardian", que traz avisos sérios para a Copa do Mundo: sempre que a
Inglaterra joga, a violência doméstica aumenta. E aumenta em qualquer
dos cenários: se a Inglaterra perde, alguém apanha; se a Inglaterra
ganha, alguém apanha também.
Claro que existem diferenças: nas derrotas, há um crescimento de 38% na
violência entre o casal; em caso de vitória, o crescimento é de 26%. Mas
a conclusão é unívoca: futebol traz violência dentro de casa. E nem
sequer discrimina sexualmente: eles batem nelas, sim; mas elas também
batem neles.
E, para que as minorias não sejam esquecidas, a orientação sexual não altera o pugilato: eles batem neles; elas batem nelas.
Por isso as autoridade nativas estão atentas: o primeiro jogo da
Inglaterra na Copa será contra a Itália. O que significa que as
autoridades policiais já identificaram várias famílias nas quais esse
tipo de violência tem histórico e pode irromper de forma selvática.
Não sei, honestamente, que tipo de intervenção está prevista para o dia
da partida. Boicotar a transmissão do jogo —via rádio ou TV— para
residências problemáticas? Separar preventivamente o casal em jaulas
eletrificadas? Arrombar a porta ao mínimo sinal de discussão e louça
quebrada?
Esperemos para ver. Mas o futuro promete: se o estudo ganha dimensão
internacional, não será de excluir que apareça algures um comitê
politicamente correto, de preferência sob o alto patrocínio das Nações
Unidas, propondo seriamente a criminalização do futebol por suas
influências nocivas na harmonia do lar.
Depois da Lei da Palmada infantil, só falta uma Lei da Porrada conjugal.
2. Provocou comoção a atitude do papa Francisco de rezar pela paz com os
presidentes israelense e palestino. Pena que, no encontro histórico do
Vaticano, não tenha havido a mais vaga menção aos obstáculos reais (e
tradicionais) que definem o conflito. E que, hoje, em 2014, ainda não
têm qualquer solução à vista.
Ninguém sabe o que fazer com Jerusalém, cidade reivindicada pelos dois povos para futura capital dos dois Estados.
Ninguém sabe o que fazer com os 4 milhões de refugiados palestinos
(estimativa conservadora) que a Autoridade Palestina exige que regressem
a Israel (e que Israel, logicamente, recusa, por ver nesse regresso o
seu suicídio demográfico como "Estado judaico").
Ninguém sabe como convencer Israel a retirar da Cisjordânia depois da
experiência traumática da Faixa de Gaza, quando Ariel Sharon retirou do
território e o Hamas passou a usá-lo como rampa de lançamento de
foguetes para o interior de Israel.
E, por falar em Hamas, ainda ninguém sabe se, no novo governo de unidade
palestino, o Hamas está disposto a renunciar totalmente ao terrorismo e
a reconhecer, pela primeira vez na sua história, a existência da
"entidade sionista" com a qual terá de dividir o território.
Uma oração pela paz talvez seja uma forma de pedir um milagre para o
conflito israelense-palestino. O papa Francisco, com a sua habitual
sabedoria, sabe bem que só um milagre pode ressuscitar um "processo de
paz" sepultado.
3. Leitores vários não gostaram das comparações abusivas que fiz nesta
Folha entre as campanhas antifumo de hoje e as utopias sanitárias do
fascismo e do nacional-socialismo ("Fascismo light", 3/6/2014).
Entendo o desconforto: também eu abomino a ligeireza das analogias históricas, sobretudo quando abusivas e ofensivas.
Acontece que, desta vez, não há ligeireza alguma. E aos leitores
indignados só posso aconselhar, pela milésima vez, a leitura de "The
Nazi War on Cancer" (a guerra nazista contra o câncer), o estudo
magistral de Robert N. Proctor sobre a primazia do Terceiro Reich na
luta contra o fumo.
A propaganda que hoje domina essa luta, no estilo e no tom (o fumante
como ser infecto; o culto do físico perfeito; etc.) foi uma moda
iniciada pela Alemanha nazista, 80 anos atrás.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha online, 10/06/2014
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