sábado, 7 de junho de 2014

O MESTRE DO ABSURDO

 Rodrigo Suzuki Cintra*
 Jakob Lemke/Deutsche Presse-Agentur/Newscom / Jakob Lemke/Deutsche Presse-Agentur/Newscom
 Museu Franz Kafka, em Praga, República Checa: morto há 90 anos, escritor foi fundamental para a literatura do século XX e virou adjetivo que reflete agruras contemporâneas

"Uma gaiola saiu à procura de um pássaro." A frase, de autoria de Franz Kafka (1883- 1924), propõe uma imagem inusitada. Não é próprio das gaiolas se moverem, são objetos inanimados e, menos ainda, saírem a procurar justamente o que vão oprimir. De certo modo, se os pássaros podem simbolizar a liberdade, uma vez que podem voar, as gaiolas representariam as estruturas que prendem, que cerceiam, que impedem voos maiores. E, nesse caso, tudo se dá como se os pássaros fossem os seres que não podem se mover e as gaiolas, que normalmente são inertes, é que pudessem empreender o movimento. E saindo de uma inércia potencial, essa estranha gaiola, uma quase prisão, parece sair atrás de seu prisioneiro. Não é, propriamente, o ato de voar que faz com que o pássaro mereça a sua gaiola.

Nessa imagem desconcertante, a infelicidade de estar preso, sendo pássaro, fica até diminuída frente à desfaçatez da gaiola. É a própria estrutura, a cerca, a prisão que vem até o pássaro. Há algo de invertido nessa história contada em uma única linha, em um aforismo, mas, por outro lado, seria o caso de perguntar: não é assim mesmo que funcionam as nossas estruturas de dominação? É evidente que em um caso como esse, ao contrário do que se poderia imaginar, toda a impostura é a do pássaro. Ele não podia voar livremente desde o começo. Talvez a gaiola já estivesse destinada a ele por princípio. Mas, quanto a isso, é claro que não podemos ter certeza. A única coisa que parece ser correta é que não são os pássaros que tornam necessárias as gaiolas para aprisioná-los, mas o contrário, a existência das gaiolas é que viabiliza a liberdade dos pássaros. Reverso de mundo, em Kafka, a opressão é anterior à liberdade.

Não foram poucos os pensadores que se debruçaram sobre a obra de Franz Kafka. Há, sem dúvida, algo de alta voltagem em seus escritos. Muitos críticos literários, como Harold Bloom, por exemplo, colocam Kafka ao lado de autores fundamentais para o século XX, como James Joyce e Marcel Proust. Diferentemente desses autores, no entanto, Kafka não faz peripécias de linguagem ou de narrativa. Seu fascínio reside em outros atributos. Se, por um lado, Kafka não é um escritor desses tipos de artimanhas literárias, por outro, sua escrita é, certamente, essencial em outros níveis. Não podemos dizer, propriamente, que o século XX foi "joyceano", ou mesmo, "proustiano", mas, não há dúvida que foi "kafkiano".

A expressão "kafkiano" foi, inclusive, assimilada na maioria dos dicionários ocidentais. Significa alguma coisa labiríntica, complicada, estranha e absurda. Poucos autores têm o privilegio de virar verbete de dicionário. E, mais ainda, fazer de seu universo particular uma palavra que dê conta do mundo da vida do homem moderno. Uma situação "kafkiana" é, certamente, incômoda e esbarra sempre na questão de uma falta de sentido, uma irracionalidade que nos envolve e proclama regramentos que, apesar de oficiais, por vezes não os conhecemos e nos tornam culpados de crimes que não sabíamos que éramos responsáveis, desde o início.

Mesmo a letra "K", símbolo dos personagens dos romances kafkianos que sempre ostentam essa letra (Joseph K, em "O Processo"; o agrimensor K., em "O Castelo"; Karl Rossmann em "Amérika"), foi plenamente cooptada para todo o sempre por Kafka. Na literatura, basta falar essa letra para adentrarmos em um universo de estranhamentos, circunstâncias insustentáveis, confrontos com o poder e situações absurdas. A letra "K", variante genérica do próprio nome do autor, certamente enquadra Kafka como um autor que escrevia, de uma forma ou de outra, sobre si mesmo.

Kafka escreveu romances (todos inacabados), novelas, contos, cartas e diários. Pouco antes de morrer, pediu a um amigo, Max Brod, que destruísse todos os seus escritos. Não foi, obviamente, atendido. Seus textos, até hoje, são alvo de disputas interpretativas. Temos desde quem sustente que sua obra é um gigantesco acerto de contas com seu pai, o dominador Hermann Kafka, até quem encontre em suas linhas, em um caráter premonitório, o horror à ascensão do sistema nazifascista.

A verdade é que os filósofos encontraram diversas formas de entrada na obra de Kafka. Autores como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Albert Camus, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek, entre outros, leram e escreveram sobre Kafka. É notável como um autor cuja escrita é direta ao ponto, objetiva, por vezes protocolar, tenha suscitado tantas interpretações diferentes sobre o conteúdo de seus textos. Porém, se os filósofos parecem discordar sobre os sentidos dos textos de Kafka, não discutem sobre a importância do autor para a literatura do século XX.

Autores como W. H. Auden, por exemplo, o idolatravam a ponto de classificá-lo como o "Dante do século XX". Mesmo escritores consagrados do realismo fantástico, como Gabriel García Márquez, admitiam sua dívida para com os escritos do autor tcheco. García Márquez chegou mesmo a dizer que "A Metamorfose" teria lhe mostrado que era possível escrever de outra maneira.

Podemos dizer que Kafka sofreu a influência de quatro fatores determinantes para a constituição de sua obra: a origem judaica, a familiaridade com a cultura tcheca, a formação pela língua alemã e a graduação em uma faculdade de direito. Todos esses fatores, certamente, auxiliaram no estilo e nos temas abordados pelo autor nos seus textos.

É perceptível nos textos kafkianos uma obsessão pelo tema da irracionalidade da burocracia, o sentimento de estranheza e absurdo frente ao mundo, as leis e as penas arbitrárias e a luta contra a opressão nas suas mais variadas formas.

Por meio de imagens altamente impactantes, o autor tcheco elaborou todo um universo do estranho. Um homem que acorda e se vê transformado em um monstruoso inseto ("A Metamorfose"), uma máquina de tortura eficaz que escreve a pena do condenado através de agulhas que perfuram o corpo até a morte ("Na Colônia Penal"), um macaco que se transforma em homem ("Um Relatório para a Academia"), um ser absolutamente improvável, quase impossível de ser descrito, que desafia o bem-estar de um homem bem estabelecido ("Tribulações de um Pai de Família"). Kafka, que publicou pouquíssimos textos em vida, apesar de declarar que tudo que não fosse literatura o aborrecia, foi capaz de inventar um estilo literário inconfundível ao mesmo tempo em que tecia os contornos de um mundo imaginário todo próprio em que o absurdo podia muito bem ser a regra.

Então, qual seria o método mais eficaz para a leitura dessa obra singular que nos coloca frente ao desafio de interpretar imagens completamente desconcertantes?

Talvez uma metáfora nos auxilie a compreender como devemos ler Kafka. Não há outra maneira de adentrar no universo kafkiano que não seja por meio de um labirinto. Assim, o leitor de Kafka deve estar disposto a caminhar por passagens que são verdadeiros becos sem saída, voltar, muitas vezes, aos mesmos túneis principais, se sentir perdido ao meio das opções de trajeto e ter a impressão de que o labirinto, em verdade, não tinha saída desde o princípio...
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* Rodrigo Suzuki Cintra, filósofo e doutor em direito pela USP, leciona na Universidade Mackenzie
Fonte: Valor Econômico online, 07/06/2014

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