Rodrigo Suzuki Cintra*
"Uma gaiola saiu à procura de um pássaro." A frase, de autoria de
Franz Kafka (1883- 1924), propõe uma imagem inusitada. Não é próprio das
gaiolas se moverem, são objetos inanimados e, menos ainda, saírem a
procurar justamente o que vão oprimir. De certo modo, se os pássaros
podem simbolizar a liberdade, uma vez que podem voar, as gaiolas
representariam as estruturas que prendem, que cerceiam, que impedem voos
maiores. E, nesse caso, tudo se dá como se os pássaros fossem os seres
que não podem se mover e as gaiolas, que normalmente são inertes, é que
pudessem empreender o movimento. E saindo de uma inércia potencial, essa
estranha gaiola, uma quase prisão, parece sair atrás de seu
prisioneiro. Não é, propriamente, o ato de voar que faz com que o
pássaro mereça a sua gaiola.
Nessa imagem desconcertante, a infelicidade de estar preso, sendo
pássaro, fica até diminuída frente à desfaçatez da gaiola. É a própria
estrutura, a cerca, a prisão que vem até o pássaro. Há algo de invertido
nessa história contada em uma única linha, em um aforismo, mas, por
outro lado, seria o caso de perguntar: não é assim mesmo que funcionam
as nossas estruturas de dominação? É evidente que em um caso como esse,
ao contrário do que se poderia imaginar, toda a impostura é a do
pássaro. Ele não podia voar livremente desde o começo. Talvez a gaiola
já estivesse destinada a ele por princípio. Mas, quanto a isso, é claro
que não podemos ter certeza. A única coisa que parece ser correta é que
não são os pássaros que tornam necessárias as gaiolas para
aprisioná-los, mas o contrário, a existência das gaiolas é que viabiliza
a liberdade dos pássaros. Reverso de mundo, em Kafka, a opressão é
anterior à liberdade.
Não foram poucos os pensadores que se debruçaram sobre a obra de
Franz Kafka. Há, sem dúvida, algo de alta voltagem em seus escritos.
Muitos críticos literários, como Harold Bloom, por exemplo, colocam
Kafka ao lado de autores fundamentais para o século XX, como James Joyce
e Marcel Proust. Diferentemente desses autores, no entanto, Kafka não
faz peripécias de linguagem ou de narrativa. Seu fascínio reside em
outros atributos. Se, por um lado, Kafka não é um escritor desses tipos
de artimanhas literárias, por outro, sua escrita é, certamente,
essencial em outros níveis. Não podemos dizer, propriamente, que o
século XX foi "joyceano", ou mesmo, "proustiano", mas, não há dúvida que
foi "kafkiano".
A expressão "kafkiano" foi, inclusive, assimilada na maioria dos
dicionários ocidentais. Significa alguma coisa labiríntica, complicada,
estranha e absurda. Poucos autores têm o privilegio de virar verbete de
dicionário. E, mais ainda, fazer de seu universo particular uma palavra
que dê conta do mundo da vida do homem moderno. Uma situação "kafkiana"
é, certamente, incômoda e esbarra sempre na questão de uma falta de
sentido, uma irracionalidade que nos envolve e proclama regramentos que,
apesar de oficiais, por vezes não os conhecemos e nos tornam culpados
de crimes que não sabíamos que éramos responsáveis, desde o início.
Mesmo a letra "K", símbolo dos personagens dos romances kafkianos que
sempre ostentam essa letra (Joseph K, em "O Processo"; o agrimensor K.,
em "O Castelo"; Karl Rossmann em "Amérika"), foi plenamente cooptada
para todo o sempre por Kafka. Na literatura, basta falar essa letra para
adentrarmos em um universo de estranhamentos, circunstâncias
insustentáveis, confrontos com o poder e situações absurdas. A letra
"K", variante genérica do próprio nome do autor, certamente enquadra
Kafka como um autor que escrevia, de uma forma ou de outra, sobre si
mesmo.
Kafka escreveu romances (todos inacabados), novelas, contos, cartas e
diários. Pouco antes de morrer, pediu a um amigo, Max Brod, que
destruísse todos os seus escritos. Não foi, obviamente, atendido. Seus
textos, até hoje, são alvo de disputas interpretativas. Temos desde quem
sustente que sua obra é um gigantesco acerto de contas com seu pai, o
dominador Hermann Kafka, até quem encontre em suas linhas, em um caráter
premonitório, o horror à ascensão do sistema nazifascista.
A verdade é que os filósofos encontraram diversas formas de entrada
na obra de Kafka. Autores como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Hannah
Arendt, Albert Camus, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Giorgio Agamben e
Slavoj Zizek, entre outros, leram e escreveram sobre Kafka. É notável
como um autor cuja escrita é direta ao ponto, objetiva, por vezes
protocolar, tenha suscitado tantas interpretações diferentes sobre o
conteúdo de seus textos. Porém, se os filósofos parecem discordar sobre
os sentidos dos textos de Kafka, não discutem sobre a importância do
autor para a literatura do século XX.
Autores como W. H. Auden, por exemplo, o idolatravam a ponto de
classificá-lo como o "Dante do século XX". Mesmo escritores consagrados
do realismo fantástico, como Gabriel García Márquez, admitiam sua dívida
para com os escritos do autor tcheco. García Márquez chegou mesmo a
dizer que "A Metamorfose" teria lhe mostrado que era possível escrever
de outra maneira.
Podemos dizer que Kafka sofreu a influência de quatro fatores
determinantes para a constituição de sua obra: a origem judaica, a
familiaridade com a cultura tcheca, a formação pela língua alemã e a
graduação em uma faculdade de direito. Todos esses fatores, certamente,
auxiliaram no estilo e nos temas abordados pelo autor nos seus textos.
É perceptível nos textos kafkianos uma obsessão pelo tema da
irracionalidade da burocracia, o sentimento de estranheza e absurdo
frente ao mundo, as leis e as penas arbitrárias e a luta contra a
opressão nas suas mais variadas formas.
Por meio de imagens altamente impactantes, o autor tcheco elaborou
todo um universo do estranho. Um homem que acorda e se vê transformado
em um monstruoso inseto ("A Metamorfose"), uma máquina de tortura eficaz
que escreve a pena do condenado através de agulhas que perfuram o corpo
até a morte ("Na Colônia Penal"), um macaco que se transforma em homem
("Um Relatório para a Academia"), um ser absolutamente improvável, quase
impossível de ser descrito, que desafia o bem-estar de um homem bem
estabelecido ("Tribulações de um Pai de Família"). Kafka, que publicou
pouquíssimos textos em vida, apesar de declarar que tudo que não fosse
literatura o aborrecia, foi capaz de inventar um estilo literário
inconfundível ao mesmo tempo em que tecia os contornos de um mundo
imaginário todo próprio em que o absurdo podia muito bem ser a regra.
Então, qual seria o método mais eficaz para a leitura dessa obra
singular que nos coloca frente ao desafio de interpretar imagens
completamente desconcertantes?
Talvez uma metáfora nos auxilie a compreender como devemos ler Kafka.
Não há outra maneira de adentrar no universo kafkiano que não seja por
meio de um labirinto. Assim, o leitor de Kafka deve estar disposto a
caminhar por passagens que são verdadeiros becos sem saída, voltar,
muitas vezes, aos mesmos túneis principais, se sentir perdido ao meio
das opções de trajeto e ter a impressão de que o labirinto, em verdade,
não tinha saída desde o princípio...
------------------- * Rodrigo Suzuki Cintra, filósofo e doutor em direito pela USP, leciona na Universidade Mackenzie
Fonte: Valor Econômico online, 07/06/2014
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