Aos 77 anos, Madeleine Albright mostra-se surpreendentemente
desarmada para quem foi uma das mulheres mais poderosas do mundo, como
secretária de Estado no governo de Bill Clinton. Nos corredores do
Copacabana Palace, ela caminhava e falava tranquilamente com lideranças
empresariais na área de infraestrutura, que participaram de um encontro
organizado pela consultoria McKinsey na semana passada.
Nascida em Praga, filha de um diplomata tcheco que fugiu duas vezes
de sua terra natal - primeiro da ocupação nazista e depois do regime
soviético -, a garota batizada Marie Jana fez sua vida nos Estados
Unidos. No livro "Inverno de Praga - Uma História Pessoal de Recordação e
Guerra, 1937-1948", recém-lançado no Brasil pela editora Objetiva, ela
relembra esse refúgio e sua trajetória até cruzar o Atlântico, onde
chegou ao centro das decisões mundiais na virada do século. Nesta
entrevista, concedida em uma brecha entre inúmeros encontros com
empresários no Rio de Janeiro, Madeleine fez uma análise das eleições
legislativas que tiveram partidos de extrema-direita como destaque,
falou sobre a crise na Venezuela e enfatizou a necessidade de reconhecer
o Brasil como uma "grande potência". Ela acabava de voltar de Kiev,
onde acompanhou as eleições presidenciais na Ucrânia, e fez questão de
destacar que punições unilaterais, como as adotadas por Washington
contra a Rússia, têm hoje efeito limitado. "A globalização deixou as
nossas economias interconectadas de tal forma, em termos de negócios,
que as sanções precisam ser multilaterais para funcionar de verdade",
disse a ex-secretária ao Valor.
Valor: O ano de 2014 está cheio de efemérides,
como os cem anos de início da Primeira Guerra Mundial e os 70 anos do
fim da Segunda Guerra Mundial. À luz desses aniversários, o resultado
das eleições legislativas na União Europeia parece ganhar ainda mais
simbolismo. Como a senhora avalia essas eleições e o renascimento do
nacionalismo que beira a xenofobia?
Madeleine Albright: O século XX foi o mais sangrento
da história em termos de pessoas matando umas às outras simplesmente
por suas origens. Sempre é fácil fazer analogias históricas. Há um
renascimento de sentimentos nacionalistas, o que certamente levou à
Segunda Guerra, mas desta vez é importante notar as megatendências em
curso e suas contradições. Uma dessas megatendências é a globalização.
Da mesma forma que deixa as pessoas mais próximas, ela faz com que
também fiquemos meio perdidos. Nesse processo, as pessoas tentam se
identificar cada vez mais com seus próprios grupos. Quando há
dificuldades econômicas, isso acontece ainda mais. As estruturas de
governança da União Europeia foram criadas sem que se tivesse consultado
muito seus cidadãos. Houve a crise global e era preciso culpar alguém
pelo que tem acontecido. Normalmente, coloca-se a culpa nos outros. E
isso faz renascer o nacionalismo, refletido nas eleições, que mostram a
insatisfação das pessoas com programas de austeridade e o tipo de vida
que estão lhe impondo.
"A globalização deixou as (...) economias
interconectadas de tal forma (...) que sanções precisam ser
multilaterais
para funcionar de verdade"
Valor: Qual deve ser a resposta dos líderes europeus diante do recado das urnas?
Madeleine: Foram eleições legislativas e o
Parlamento Europeu, embora tenha mais poder do que tinha antes, não é um
órgão verdadeiramente decisivo dentro do sistema. Mas o resumo é que os
cidadãos europeus consideram não ter voz suficiente e querem ver seus
grupos reconhecidos. Parte do problema é que pouca gente na UE tem
ideia, por exemplo, do que é o Tratado de Lisboa. Talvez seja preciso
mais democracia e mais empenho das autoridades para mostrar os prós e
contras da integração.
Valor: A senhora esteve na Ucrânia, no domingo
retrasado, para acompanhar pessoalmente as eleições presidenciais. Como a
comunidade internacional pode contornar a crescente tensão entre a
Rússia e a Ucrânia?
Madeleine: A Ucrânia é um país fascinante, mas
complicado. Não tenho dúvidas de que a maioria dos ucranianos quer fazer
parte da Europa. Você falava de efemérides, e também há aniversários
sendo celebrados na Polônia: 25 anos de queda do muro de Berlim e dez
anos de entrada na União Europeia. Muitos ucranianos olham para o outro
lado da fronteira e se perguntam por que não podem seguir a trajetória
da Polônia. Há um longo caminho a percorrer. Sua economia não está nada
bem e eles realmente precisam de ajuda da comunidade internacional, não
só em termos de empréstimos financeiros, mas também com assistência
técnica para tirar melhor proveito do financiamento. O grande desafio é
ter uma perspectiva de olharem para si mesmos como parte da Europa e, ao
mesmo tempo, ter uma relação funcional com a Rússia. Não tem que ser um
jogo de soma zero. Essa é a estratégia de [Vladimir] Putin, mas não
devemos permitir que isso aconteça.
Valor: Sanções contra a Rússia e também contra a Venezuela são a melhor forma de a comunidade internacional agir?
Madeleine: Os dois casos são obviamente bem
diferentes. Mas, se queremos que a comunidade internacional funcione, é
preciso deixar claro quando não aprovamos certas condutas. As
ferramentas de qualquer país, mesmo o mais poderoso do mundo, são
limitadas. Temos ferramentas diplomáticas, ferramentas econômicas e o
uso da força - ou a ameaça de uso da força. Acredito que as ferramentas
econômicas estão se mostrando cada vez mais produtivas, mas temos sempre
essas discussões envolvendo sanções multilaterais ou unilaterais. Isso
nos leva à discussão anterior que você colocou. A globalização deixou as
nossas economias interconectadas de tal forma, em termos de negócios,
que as sanções precisam ser multilaterais para funcionar de verdade.
Valor: Que perspectivas a senhora enxerga para a crise na Venezuela?
Madeleine: Não sou uma especialista em Venezuela,
mas posso entender como Hugo Chávez foi eleito. O país tinha governos
que não entregavam os benefícios da democracia à população local. Só que
Chávez também não foi capaz de fazer isso. A distribuição [da riqueza],
pelo menos para quem vê a situação de fora, tem sido acompanhada de
medidas autoritárias. Quais são os elementos realmente importantes de
uma democracia? Eleições são necessárias, mas não suficientes. A
existência de um partido forte de oposição é certamente um desses
elementos. Isso dá às pessoas não só uma alternativa de poder, mas
oferece mecanismos de controle do governo. Na Venezuela, a oposição tem
enfrentado dificuldades para continuar existindo, com cerco à liberdade
de imprensa e à liberdade de expressão. Também não existe democracia sem
um Estado de direito, sem previsibilidade nas regras, e isso tem sido
igualmente difícil de encontrar na Venezuela. É uma situação trágica.
Valor: A economia brasileira não anda tão
brilhante como estava em meados da década passada e a presidente Dilma
Rousseff tem menos interesse por assuntos internacionais do que seu
antecessor. O papel do Brasil na política global encolheu?
Madeleine: O Brasil tem potencial para desempenhar
um enorme papel na arena internacional. Você pode escolher qualquer
critério para ilustrar a importância do país: sua economia, seu tamanho,
o dinamismo de sua população. Merece e precisa ser respeitado como uma
grande potência. É normal que países tenham altos e baixos, mas o
potencial do Brasil é imenso.
"Não existe democracia sem um Estado de
direito (...),
e isso tem sido (...) difícil de encontrar na Venezuela.
É
uma situação trágica"
Valor: Há um dado curioso na relação entre os
governos brasileiros, seja de qual partido forem, e os democratas que
assumem a Casa Branca. No Brasil, sempre espera-se muito dessa relação,
mas as coisas acabam fluindo melhor quando há um republicano como
presidente em Washington. Por que essa frustração constante?
Madeleine: Bem... (ela hesita um pouco) Francamente,
eu não sei. No geral, tanto para democratas quanto para republicanos, a
nossa relação com a América Latina é sempre complicada. Quando damos
mais atenção à região, vários países dizem: "Deixem-nos em paz". Quando
os deixamos em paz, há quem diga: "Deem-nos atenção". No momento,
deve-se acentuar que temos uma série de problemas domésticos nos Estados
Unidos, devido à crise financeira internacional. Talvez os democratas
estejam mais atentos a isso. Mas tenho certeza de que há um desejo de
relações robustas com países como o Brasil. Desculpem-nos que seja
assim.
"Inverno de Praga - Uma História Pessoal de Recordação e Guerra, 1937-1948"
Madeleine Albright (com Bill Woodward).
Trad.: Ivo Korytowski.
Objetiva. 480 págs., R$ 59,90.
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