sábado, 7 de junho de 2014

O BRASIL É UMA GRANDE POTÊNCIA

 David Paul Morris/Bloomberg / David Paul Morris/Bloomberg

Aos 77 anos, Madeleine Albright mostra-se surpreendentemente desarmada para quem foi uma das mulheres mais poderosas do mundo, como secretária de Estado no governo de Bill Clinton. Nos corredores do Copacabana Palace, ela caminhava e falava tranquilamente com lideranças empresariais na área de infraestrutura, que participaram de um encontro organizado pela consultoria McKinsey na semana passada.

Nascida em Praga, filha de um diplomata tcheco que fugiu duas vezes de sua terra natal - primeiro da ocupação nazista e depois do regime soviético -, a garota batizada Marie Jana fez sua vida nos Estados Unidos. No livro "Inverno de Praga - Uma História Pessoal de Recordação e Guerra, 1937-1948", recém-lançado no Brasil pela editora Objetiva, ela relembra esse refúgio e sua trajetória até cruzar o Atlântico, onde chegou ao centro das decisões mundiais na virada do século. Nesta entrevista, concedida em uma brecha entre inúmeros encontros com empresários no Rio de Janeiro, Madeleine fez uma análise das eleições legislativas que tiveram partidos de extrema-direita como destaque, falou sobre a crise na Venezuela e enfatizou a necessidade de reconhecer o Brasil como uma "grande potência". Ela acabava de voltar de Kiev, onde acompanhou as eleições presidenciais na Ucrânia, e fez questão de destacar que punições unilaterais, como as adotadas por Washington contra a Rússia, têm hoje efeito limitado. "A globalização deixou as nossas economias interconectadas de tal forma, em termos de negócios, que as sanções precisam ser multilaterais para funcionar de verdade", disse a ex-secretária ao Valor.

Valor: O ano de 2014 está cheio de efemérides, como os cem anos de início da Primeira Guerra Mundial e os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. À luz desses aniversários, o resultado das eleições legislativas na União Europeia parece ganhar ainda mais simbolismo. Como a senhora avalia essas eleições e o renascimento do nacionalismo que beira a xenofobia?
Madeleine Albright: O século XX foi o mais sangrento da história em termos de pessoas matando umas às outras simplesmente por suas origens. Sempre é fácil fazer analogias históricas. Há um renascimento de sentimentos nacionalistas, o que certamente levou à Segunda Guerra, mas desta vez é importante notar as megatendências em curso e suas contradições. Uma dessas megatendências é a globalização. Da mesma forma que deixa as pessoas mais próximas, ela faz com que também fiquemos meio perdidos. Nesse processo, as pessoas tentam se identificar cada vez mais com seus próprios grupos. Quando há dificuldades econômicas, isso acontece ainda mais. As estruturas de governança da União Europeia foram criadas sem que se tivesse consultado muito seus cidadãos. Houve a crise global e era preciso culpar alguém pelo que tem acontecido. Normalmente, coloca-se a culpa nos outros. E isso faz renascer o nacionalismo, refletido nas eleições, que mostram a insatisfação das pessoas com programas de austeridade e o tipo de vida que estão lhe impondo.

"A globalização deixou as (...) economias interconectadas de tal forma (...) que sanções precisam ser multilaterais 
para funcionar de verdade"

Valor: Qual deve ser a resposta dos líderes europeus diante do recado das urnas?
Madeleine: Foram eleições legislativas e o Parlamento Europeu, embora tenha mais poder do que tinha antes, não é um órgão verdadeiramente decisivo dentro do sistema. Mas o resumo é que os cidadãos europeus consideram não ter voz suficiente e querem ver seus grupos reconhecidos. Parte do problema é que pouca gente na UE tem ideia, por exemplo, do que é o Tratado de Lisboa. Talvez seja preciso mais democracia e mais empenho das autoridades para mostrar os prós e contras da integração.

Valor: A senhora esteve na Ucrânia, no domingo retrasado, para acompanhar pessoalmente as eleições presidenciais. Como a comunidade internacional pode contornar a crescente tensão entre a Rússia e a Ucrânia?
Madeleine: A Ucrânia é um país fascinante, mas complicado. Não tenho dúvidas de que a maioria dos ucranianos quer fazer parte da Europa. Você falava de efemérides, e também há aniversários sendo celebrados na Polônia: 25 anos de queda do muro de Berlim e dez anos de entrada na União Europeia. Muitos ucranianos olham para o outro lado da fronteira e se perguntam por que não podem seguir a trajetória da Polônia. Há um longo caminho a percorrer. Sua economia não está nada bem e eles realmente precisam de ajuda da comunidade internacional, não só em termos de empréstimos financeiros, mas também com assistência técnica para tirar melhor proveito do financiamento. O grande desafio é ter uma perspectiva de olharem para si mesmos como parte da Europa e, ao mesmo tempo, ter uma relação funcional com a Rússia. Não tem que ser um jogo de soma zero. Essa é a estratégia de [Vladimir] Putin, mas não devemos permitir que isso aconteça.
 
Ucranianos em abrigo subterrâneo antibombas, durante ataque aéreo a insurgentes pró-Rússia: 
'Não tenho dúvidas de que a maioria dos ucranianos quer fazer parte da Europa'
 
Valor: Sanções contra a Rússia e também contra a Venezuela são a melhor forma de a comunidade internacional agir?
Madeleine: Os dois casos são obviamente bem diferentes. Mas, se queremos que a comunidade internacional funcione, é preciso deixar claro quando não aprovamos certas condutas. As ferramentas de qualquer país, mesmo o mais poderoso do mundo, são limitadas. Temos ferramentas diplomáticas, ferramentas econômicas e o uso da força - ou a ameaça de uso da força. Acredito que as ferramentas econômicas estão se mostrando cada vez mais produtivas, mas temos sempre essas discussões envolvendo sanções multilaterais ou unilaterais. Isso nos leva à discussão anterior que você colocou. A globalização deixou as nossas economias interconectadas de tal forma, em termos de negócios, que as sanções precisam ser multilaterais para funcionar de verdade.

Valor: Que perspectivas a senhora enxerga para a crise na Venezuela?
Madeleine: Não sou uma especialista em Venezuela, mas posso entender como Hugo Chávez foi eleito. O país tinha governos que não entregavam os benefícios da democracia à população local. Só que Chávez também não foi capaz de fazer isso. A distribuição [da riqueza], pelo menos para quem vê a situação de fora, tem sido acompanhada de medidas autoritárias. Quais são os elementos realmente importantes de uma democracia? Eleições são necessárias, mas não suficientes. A existência de um partido forte de oposição é certamente um desses elementos. Isso dá às pessoas não só uma alternativa de poder, mas oferece mecanismos de controle do governo. Na Venezuela, a oposição tem enfrentado dificuldades para continuar existindo, com cerco à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão. Também não existe democracia sem um Estado de direito, sem previsibilidade nas regras, e isso tem sido igualmente difícil de encontrar na Venezuela. É uma situação trágica.

Valor: A economia brasileira não anda tão brilhante como estava em meados da década passada e a presidente Dilma Rousseff tem menos interesse por assuntos internacionais do que seu antecessor. O papel do Brasil na política global encolheu?
Madeleine: O Brasil tem potencial para desempenhar um enorme papel na arena internacional. Você pode escolher qualquer critério para ilustrar a importância do país: sua economia, seu tamanho, o dinamismo de sua população. Merece e precisa ser respeitado como uma grande potência. É normal que países tenham altos e baixos, mas o potencial do Brasil é imenso.

"Não existe democracia sem um Estado de direito (...), 
e isso tem sido (...) difícil de encontrar na Venezuela. 
É uma situação trágica"

Valor: Há um dado curioso na relação entre os governos brasileiros, seja de qual partido forem, e os democratas que assumem a Casa Branca. No Brasil, sempre espera-se muito dessa relação, mas as coisas acabam fluindo melhor quando há um republicano como presidente em Washington. Por que essa frustração constante?
Madeleine: Bem... (ela hesita um pouco) Francamente, eu não sei. No geral, tanto para democratas quanto para republicanos, a nossa relação com a América Latina é sempre complicada. Quando damos mais atenção à região, vários países dizem: "Deixem-nos em paz". Quando os deixamos em paz, há quem diga: "Deem-nos atenção". No momento, deve-se acentuar que temos uma série de problemas domésticos nos Estados Unidos, devido à crise financeira internacional. Talvez os democratas estejam mais atentos a isso. Mas tenho certeza de que há um desejo de relações robustas com países como o Brasil. Desculpem-nos que seja assim.

"Inverno de Praga - Uma História Pessoal de Recordação e Guerra, 1937-1948"
Madeleine Albright (com Bill Woodward). 
Trad.: Ivo Korytowski. 
Objetiva. 480 págs., R$ 59,90.
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Reportagem por Daniel Rittner
Fonte: Valor Econômico online, 07/06/2014

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