Daniel Martins de Barros*
Um padre e um rabino foram assistir a uma
luta de boxe. Ao entrar no ringue um dos lutadores faz o sinal da cruz,
ao que o rabino perguntou para o padre: “O que significa aquele sinal?”.
“Nada”, disse o ele, “se o sujeito não souber lutar”. Famosa depois de
fazer parte do filme O [...]
Um padre e um rabino foram assistir a uma luta de boxe. Ao
entrar no ringue um dos lutadores faz o sinal da cruz, ao que o rabino
perguntou para o padre: “O que significa aquele sinal?”. “Nada”, disse o
ele, “se o sujeito não souber lutar”.
Famosa depois de fazer parte do filme O Vôo da Fenix, de 2004, lembro
dessa piada diante da louvável iniciativa do papa Francisco de reunir,
no Vaticano, os líderes israelense Shimon Peres e palestino Mahmoud
Abbas, para conversar e orar pela paz. Vale a pena pensar se e como essa oração pode funcionar.-
Vários estudos já foram feitos para tentar verificar o poder real da
intercessão espiritual – na área da saúde, por exemplo, pesquisas
realizadas procuraram descobrir se pacientes que recebem oração melhoram
mais do que os outros. Mas os resultados são controversos, por várias
razões. Em primeiro lugar, a metodologia é complicada: o padrão das
pesquisas médicas é sempre comparar uma intervenção que se imagina
eficaz com outras ineficazes, o chamado placebo. E como seria possível
fazer uma oração placebo: pedir para Deus, mas sem fé? Nesse caso não
seria uma oração legítima. E se compararmos pacientes que receberam
oração com os que não receberam, podemos não estar fazendo as medidas
corretas – as diferenças que porventura existissem poderiam não ser
decorrentes da ação divina, mas da mentalização ou outras variáveis de
confusão. Mas a maior dificuldade é compatibilizar o discurso religioso e
o científico. A religião é um sistema fechado: por ser dogmática, não
está aberta ser questionada e “provada falsa” – a cada resultado
negativo, haverá uma explicação do tipo “não foi da vontade de Deus”. A
ciência, por seu turno, tem o foco na negação das hipóteses, não em sua
comprovação – e a cada resultado positivo haverá também uma explicação,
seja sobre artefatos estatísticos ou tamanho pequeno da amostra. Como
disse Dostoiévski, “O verdadeiro realista, caso não creia, sempre
encontrará em si força e capacidade para não acreditar no milagre, e se o
milagre se apresenta diante dele como um fato irrefutável, é mais fácil
ele descrer de seus sentidos que admitir o fato. E se o admite,
admite-o como fato natural, que apenas lhe fora até então desconhecido”.
Mas a oração do papa pode muito bem funcionar por outros meios.
Primeiro, porque orar implica em abrir espaço mental para determinado
assunto, tanto racional como emocionalmente, trazendo o tema para o
foco de nossa atenção, o que pode canalizar mais da nossa energia para
buscar soluções. A expectativa de um resultado positivo, sabe-se bem,
pode influenciar no resultado de diversos processos, aumentando a chance
de realmente tal resultado ocorrer. Ao colocar a paz no Oriente médio
como objeto de oração, o papa Francisco injeta mais força no assunto e
de alguma forma aumenta as expectativas sobre ela. Além disso há o
componente do compromisso público que é assumido com essa atitude. Ao
unir em oração líderes católicos, judeus e muçulmanos, o Papa não só
mostra que as religiões podem conversar – mais do que apenas conviver.
Faz também com que as autoridades assumam publicamente a postura de
pedir para que seu Deus os ajude a encontrar a paz, tornando mais
constrangedor para eles futuramente trabalharem contra essa mesma paz
que diante de todos pediram a Deus para promover.
Como o sinal da cruz do pugilista, só orar pela paz não vai valer
muita coisa se os atores políticos não souberem como buscá-la
efetivamente. Mas mesmo que não leve a guerra a nocaute, esse foi um
golpe bonito de se ver.
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* Daniel de Barros é psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas (IPq-HC), onde atua como coordenador médico do Núcleo de
Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor). Doutor em ciências e
bacharel em filosofia, ambos pela USP.
Fonte: Estadão online, 10/06/2014
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