Carlito Azevedo*
Antipoesia pode ser encontrada em João Cabral, nos marginais e até na bossa nova
Querido Parra, era preciso que um poeta brasileiro, menino
prodígio dos matagais, não dos maiores, mas dos que saúdam as carroças e
derramam lágrimas pelo aviador extraviado no nevoeiro, anjo boxeador
vencido pela própria sombra, viesse dizer que desde sempre estivemos
preparados para recebê-lo com sua poesia por aqui. Nós, que limitamos ao
norte com o inferno de Wall Street, de Sousândrade, nossa cordilheira, e
por toda a parte pela poesia pau-Brasil de Oswald de Andrade
(“Amor/humor”), tendo ao centro a pedra no meio do caminho de Drummond,
estivemos sempre esperando que você chegasse. A antilira de João Cabral
já prenunciava a chegada dos antipoemas, do antipoeta. As vanguardas
beberam em Pound, sim, mas também se nutriam, felizmente, de folhas de
parra. A poesia marginal dos anos 70 era, sem saber, cria sua, e quando
um jovem Nicolas Behr gritava, ainda à sombra dos generais sem flor:
“Quem teve a mão decepada/ levanta o dedo”, não estava longe do seu
luminoso “Aparecer apareceu/ só que numa lista de desaparecidos”. A
mesma ditadura nos cortava os fluxos vitais, de Chile e Brasil, o mesmo
riso nos dignificava.
O
que era preciso então dizer é que mesmo sem uma edição decente de sua
poesia circulando no país sempre fomos parrianos. E como a poesia é
muito caprichosa, e disso sabem os bailarinos à beira do abismo que com
ela vão flertar, nunca fomos nerudianos. Cada novo modo de tratar a
linguagem, já se disse, acarreta uma nova forma de estar no mundo.
Sempre quisemos fazer como você, estar no mundo de um modo novo, não
retórico.
E agora que você chega aos 100 anos e continua a dançar
sua dança, e continua a se perguntar o que é mais real, a água da fonte
ou a garota que nela se contempla, e continua a pedir que se faça de
barro a sua estátua, para que dure o menos possível e porque a mais feia
pedra é superior sempre à mais bela estátua, o melhor que posso pedir é
que sigamos parriando.
O que quer dizer também: oferecer a outra
face, se nos beijam ou esbofeteiam, mas não dispensar a possibilidade de
um direto no queixo do antagonista. Fazer uma ou outra menção às
andorinhas e a cada nove versos escrever um que seja tremendamente
obscuro, que ninguém entenda, nem nós. Seguir pedindo ao Cordeiro de
Deus um pouco de lã para costurar um suéter nos dias frios, e que não se
imiscua em assuntos sagrados.
Por falar em sagrado, segundo você o
amor destrói os homens e as mulheres. E não há seres humanos que nos
toquem mais do que estes: os destruídos, quebrados, os homens e mulheres
imaginários, fugindo de Santiago ou Rio de Janeiro para Puerto Montt ou
São Paulo num trem que está parado, instantâneo como um sonho, e onde
se atropelam com malas e bagagens e tropeçam e se conhecem e se
reconhecem no abismo da viagem, no torvelinho. Só esses têm alguma coisa
a dizer sobre a vida: as marias, pedros, simones, natashas, palomas,
carlos, as de dois metros de mármore de Carrara e as que devemos
iluminar à noite, no escuro, com um fósforo (aquela sim foi uma noite de
Walpurgis), e nos revelam o enigma do tempo e as arbitrariedades do
espaço, mesmo se falta café ao despertar. A literatura é feita, toda,
por tais ressuscitados Lázaros que, cenho franzido, voltam sempre do
inferno de Dante para tornar a encenar a mesma comédia do amor que
destrói o homem e outras estrelas. Aqui estamos, até aqui chegamos.
O
caso é que seus antipoemas me parecem presentes até no desafinado da
bossa nova, seus poemas de emergência, seus artefatos, pareciam, ao
jovem de vinte anos que os descobria, conter tudo o que poderia desejar
aquele que não teme descer montanha-russa abaixo pela própria espinha e
sentimentos. Suas canções russas sempre me lembraram Ossip Mandelstan
indo para a Sibéria e sussurrando ao ouvido de sua corajosa Nadejda:
“Quem lhe meteu na cabeça que você deveria ser feliz?” Quem nos meteu
isso na cabeça, Nicanor? “O mundo é o que é e não o que um filho da puta
chamado Einstein diz que é”, ou Freud, ou Marx, ou o Cristo de Elqui,
como gritaram, não sei se em desespero ou se em amor, as tantas vozes
com que você dinamitou seu próprio edifício antipoético quando lhe
pareceu que corria o risco do museu, do unívoco. Mas cuidado, Parra, que
esquerda e direita unidas jamais serão vencidas, e olha que te expulsam
de Cuba por comer um hot dog na Casa Branca, dos EUA por assistir a uma
missa no Kremlin, olha que te agarra a bocarra da Perspectiva Nevski.
Vivemos,
desde Adão e Eva (para não ir muito longe), uns tempos calamitosos e
como disse Stéphane Mallarmé: os contemporâneos não sabem ler poesia, e
tudo é poesia (menos, é lógico, a poesia). Ainda bem que aí está você,
que aí sempre esteve você, como quando os que ontem exigiam a cabeça dos
ditadores passaram a se conformar com o fato de eles agora estarem mais
bem penteados pelo salão de beleza da democracia televisionada, para
indagar e nos ajudar a indagar: “E agora, quem nos libertará de nossos
libertadores?”
Este é só um desejo de feliz aniversário, feliz
centenário, querido Parra. Quis o destino que você chegasse aos 100 anos
quando começamos, por aqui, a descobrir se somos um país ou paisagem
só.
Um abraço fraterno.
P.S.: Começa a cair um pouco mais de
chuva e é sempre sob um pouco mais de chuva que nos chega um amigo bem
informado, semideus egípcio com cabeça de pássaro, dizendo que a poesia
terminou conosco. A poesia terminou comigo, e neste post-scriptum também
me retrato de tudo o que não disse.
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*Carlito Azevedo é poeta e tradutor, autor de “Monodrama”
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