sábado, 7 de junho de 2014

Obra de Nicanor Parra ecoa na poesia brasileira, mesmo sem livros seus traduzidos no país

 Carlito Azevedo*

O poeta chileno Nicanor Parra, que completa 100 anos em setembro
Foto: El Mercurio 

Antipoesia pode ser encontrada em João Cabral, nos marginais e até na bossa nova

Querido Parra, era preciso que um poeta brasileiro, menino prodígio dos matagais, não dos maiores, mas dos que saúdam as carroças e derramam lágrimas pelo aviador extraviado no nevoeiro, anjo boxeador vencido pela própria sombra, viesse dizer que desde sempre estivemos preparados para recebê-lo com sua poesia por aqui. Nós, que limitamos ao norte com o inferno de Wall Street, de Sousândrade, nossa cordilheira, e por toda a parte pela poesia pau-Brasil de Oswald de Andrade (“Amor/humor”), tendo ao centro a pedra no meio do caminho de Drummond, estivemos sempre esperando que você chegasse. A antilira de João Cabral já prenunciava a chegada dos antipoemas, do antipoeta. As vanguardas beberam em Pound, sim, mas também se nutriam, felizmente, de folhas de parra. A poesia marginal dos anos 70 era, sem saber, cria sua, e quando um jovem Nicolas Behr gritava, ainda à sombra dos generais sem flor: “Quem teve a mão decepada/ levanta o dedo”, não estava longe do seu luminoso “Aparecer apareceu/ só que numa lista de desaparecidos”. A mesma ditadura nos cortava os fluxos vitais, de Chile e Brasil, o mesmo riso nos dignificava.
 
O que era preciso então dizer é que mesmo sem uma edição decente de sua poesia circulando no país sempre fomos parrianos. E como a poesia é muito caprichosa, e disso sabem os bailarinos à beira do abismo que com ela vão flertar, nunca fomos nerudianos. Cada novo modo de tratar a linguagem, já se disse, acarreta uma nova forma de estar no mundo. Sempre quisemos fazer como você, estar no mundo de um modo novo, não retórico.

E agora que você chega aos 100 anos e continua a dançar sua dança, e continua a se perguntar o que é mais real, a água da fonte ou a garota que nela se contempla, e continua a pedir que se faça de barro a sua estátua, para que dure o menos possível e porque a mais feia pedra é superior sempre à mais bela estátua, o melhor que posso pedir é que sigamos parriando.

O que quer dizer também: oferecer a outra face, se nos beijam ou esbofeteiam, mas não dispensar a possibilidade de um direto no queixo do antagonista. Fazer uma ou outra menção às andorinhas e a cada nove versos escrever um que seja tremendamente obscuro, que ninguém entenda, nem nós. Seguir pedindo ao Cordeiro de Deus um pouco de lã para costurar um suéter nos dias frios, e que não se imiscua em assuntos sagrados.

Por falar em sagrado, segundo você o amor destrói os homens e as mulheres. E não há seres humanos que nos toquem mais do que estes: os destruídos, quebrados, os homens e mulheres imaginários, fugindo de Santiago ou Rio de Janeiro para Puerto Montt ou São Paulo num trem que está parado, instantâneo como um sonho, e onde se atropelam com malas e bagagens e tropeçam e se conhecem e se reconhecem no abismo da viagem, no torvelinho. Só esses têm alguma coisa a dizer sobre a vida: as marias, pedros, simones, natashas, palomas, carlos, as de dois metros de mármore de Carrara e as que devemos iluminar à noite, no escuro, com um fósforo (aquela sim foi uma noite de Walpurgis), e nos revelam o enigma do tempo e as arbitrariedades do espaço, mesmo se falta café ao despertar. A literatura é feita, toda, por tais ressuscitados Lázaros que, cenho franzido, voltam sempre do inferno de Dante para tornar a encenar a mesma comédia do amor que destrói o homem e outras estrelas. Aqui estamos, até aqui chegamos.

O caso é que seus antipoemas me parecem presentes até no desafinado da bossa nova, seus poemas de emergência, seus artefatos, pareciam, ao jovem de vinte anos que os descobria, conter tudo o que poderia desejar aquele que não teme descer montanha-russa abaixo pela própria espinha e sentimentos. Suas canções russas sempre me lembraram Ossip Mandelstan indo para a Sibéria e sussurrando ao ouvido de sua corajosa Nadejda: “Quem lhe meteu na cabeça que você deveria ser feliz?” Quem nos meteu isso na cabeça, Nicanor? “O mundo é o que é e não o que um filho da puta chamado Einstein diz que é”, ou Freud, ou Marx, ou o Cristo de Elqui, como gritaram, não sei se em desespero ou se em amor, as tantas vozes com que você dinamitou seu próprio edifício antipoético quando lhe pareceu que corria o risco do museu, do unívoco. Mas cuidado, Parra, que esquerda e direita unidas jamais serão vencidas, e olha que te expulsam de Cuba por comer um hot dog na Casa Branca, dos EUA por assistir a uma missa no Kremlin, olha que te agarra a bocarra da Perspectiva Nevski.

Vivemos, desde Adão e Eva (para não ir muito longe), uns tempos calamitosos e como disse Stéphane Mallarmé: os contemporâneos não sabem ler poesia, e tudo é poesia (menos, é lógico, a poesia). Ainda bem que aí está você, que aí sempre esteve você, como quando os que ontem exigiam a cabeça dos ditadores passaram a se conformar com o fato de eles agora estarem mais bem penteados pelo salão de beleza da democracia televisionada, para indagar e nos ajudar a indagar: “E agora, quem nos libertará de nossos libertadores?”

Este é só um desejo de feliz aniversário, feliz centenário, querido Parra. Quis o destino que você chegasse aos 100 anos quando começamos, por aqui, a descobrir se somos um país ou paisagem só.
Um abraço fraterno.

P.S.: Começa a cair um pouco mais de chuva e é sempre sob um pouco mais de chuva que nos chega um amigo bem informado, semideus egípcio com cabeça de pássaro, dizendo que a poesia terminou conosco. A poesia terminou comigo, e neste post-scriptum também me retrato de tudo o que não disse.
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*Carlito Azevedo é poeta e tradutor, autor de “Monodrama”

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