Jovem, moderna, politizada, divertida e desafiadora.
Esses são alguns adjetivos que cabem à atriz e produtora cultural
Leandra Leal, 31 anos, que pode ser vista, atualmente, no filme O lobo
atrás da porta, dirigido por Fernando Coimbra. O longa é inspirado nas
diferentes versões da história real de uma jovem que se relaciona com um
homem casado e se envolve em um caso criminal. Em breve, ela poderá ser
vista também na próxima novela das nove da TV Globo, Falso brilhante,
escrita por Aguinaldo Silva, na qual interpretará a mocinha batalhadora
Cristina; e nos filmes O Rio nos pertence, de Ricardo Pretti; Éden e O
uivo da gaita, ambos dirigidos por Bruno Safadi e realizados pelo
coletivo de cinema Operação Sonia Silk.
Para viver mulheres que, em comum, são fortes, determinadas e femininas, Leandra Leal gosta de se transformar, inclusive fisicamente, no que denomina ser seu processo de criação. “Ator é um bicho que muda tanto”, brinca. Desse modo, a rotina parece não fazer parte de sua vida. Filha da atriz Ângela Leal e neta do produtor cultural Américo Leal, ela é uma das três sócias da produtora Daza e gosta de tomar a dianteira em seus próprios projetos: entre eles, a administração – ao lado da mãe – do Teatro Rival, criado pelo avô e que completa agora 80 anos; e a realização do documentário Divinas divas, a respeito da primeira geração de artistas travestis do Brasil, que atuam há 50 anos, e para o qual arrecadou verba por meio do sistema de crowdfunding.
A Leandra, da entrevista a seguir, é ainda aquela que tem um fascínio imenso por sambar, sendo, há cinco anos, a porta-estandarte do Cordão do Bola Preta, que, a cada ano, reúne milhões de pessoas no Rio de Janeiro; e também a que diz sentir falta de filmes que retratem a história do Brasil.
O lobo atrás da porta é um filme muito intenso, que revela como o desejo pode muitas vezes nos levar a atitudes extremas. De que modo podemos encarar a violência que o filme aborda?
No filme, são apresentadas duas versões e você pode escolher em qual delas acredita. Na versão da Rosa, existe um grau de machismo bem alto, que é o cara ter uma amante e achar que isso é natural e que é normal esconder dela que é casado. A versão do Bernardo é outra. Ele já tinha falado tudo desde o início. A grande qualidade do filme é apresentar as personagens, sem vilanizá-las e vitimá-las. Todos foram, de certa forma, agentes daquela situação. Uma coisa que me angustia é que, a qualquer momento, a Rosa pode não fazer o que fará. Tem um plano do filme que acho muito legal que é quando ela está em uma encruzilhada, pega outra direção e fica olhando. É como se pudesse dar mais uma volta e, a qualquer momento, o desfecho pode não acontecer. E, na verdade, o filme trata de como uma pessoa aparentemente normal pode ser levada a cometer um crime. Mas acho que tudo é fruto de uma relação amorosa doente, patológica mesmo.
E como você avalia a maneira de o filme tratar a violência contra a mulher?
Na versão da Rosa, apenas por ela falar que não se arrepende e que é culpada, existe um machismo muito grande. O Bernardo é um cara que a envolveu. Ela não sabia e, quando viu, estava apaixonada, sem volta. E o cara, para segurar a família em uma hipocrisia, comete uma violência brutal contra ela. É muito forte. Agora, isso não justifica o que ela faz e a escolha dela. Olho por olho, dente por dente. Ela é louca. Muito selvagem. Ela poderia ter denunciado ele.
Nos seus dois próximos filmes, que estão para estrear, também há personagens femininas que nos parecem bem fortes, como em Éden, no qual, com oito meses de gravidez, a personagem perde o marido assassinado. Que mulheres são essas que você escolhe para interpretar?
Éden é um projeto mais antigo do Bruno [Safadi, diretor]. O filme é sobre uma situação real, de extermínio de jovens negras nas periferias. E a personagem tem uma família que vai sendo formada. O marido morre e ela tem que cuidar sozinha daquela criança. No processo de luto, acaba acolhida por uma igreja evangélica da comunidade onde vive. O que me parece muito lindo no filme é que ela descobre a salvação não na religião, mas no próprio filho, na própria continuidade. Houve um final de semana de intervalo entre Lobo e Éden. Foi um período de trabalho muito intenso, porque eram duas energias muito diferentes. Era um filme sobre o luto, a perda. Aí, depois do Éden, me envolvi também como produtora e não só como atriz, em um coletivo de cinema, que se chama Operação Sonia Silk, que tem dois filmes de ficção e um documentário sobre o processo de realização deles – O Rio nos pertence e O uivo da gaita. Eles foram feitos com o mesmo elenco e a mesma equipe. Filmamos os dois em duas semanas no Rio de Janeiro.
E sobre o que são exatamente?
São dois filmes que se relacionam com a cidade e tiveram a proposta de ser feitos de uma forma realmente radical, de testar essa forma de produção, e reuniu uma equipe que já está trabalhando em cinema há muito tempo. O uivo da gaita é um triângulo amoroso de uma mulher que é casada com um cara e se apaixona por outra mulher. É um filme supersensível, que tem pouquíssimos diálogos. É uma viagem. Lindo. E fala sobre esse amor contemporâneo. Um amor líquido. Essa dificuldade nossa de escolha, de estar em um lugar e, ao mesmo tempo, querer outra coisa. E o outro é O Rio nos pertence, que apresenta um Rio de Janeiro sombrio, angustiado, sobre o retorno de uma pessoa que está fora há dez anos e volta para a cidade em busca de entender a história da família dela. É uma história suburbana.
E quem é, em sua opinião, a mulher brasileira? Você se sente uma representante?
Se acho que represento a mulher brasileira? Ai, meu Deus, não sei. São tantas mulheres brasileiras às quais a gente acaba dando voz. Sou uma mulher brasileira, jovem. Uma atriz que produz as próprias coisas. Corro atrás dos meus sonhos. Acho que a mulher do Brasil, cada vez mais, segundo as estatísticas, está liderando as suas famílias. Ainda não temos uma equiparação de salário com os homens, mas estamos em um caminho de liderança. Agora, não sei que mulher brasileira eu represento, não (risos).
Você falou sobre ir à luta por seus projetos, e o Teatro Rival, criado pelo seu avô, está completando 80 anos. Como é seu envolvimento com esse teatro?
O meu envolvimento é total. Realmente, agora completa 80 anos e foi mais uma ficha que caiu. Ter um espaço de cultura. De eu ter essa herança. Não é você ter um negócio. É ter uma missão, porque um espaço cultural é algo para a cidade, para as pessoas, para o artista, e isso é muito lindo na história do meu avô, da minha mãe e da minha avó também, que era uma figura superforte. As mulheres da minha família são muito fortes. Isso é uma coisa dessa mulher brasileira. Penso que é uma referência. Sempre falam isso lá de casa. É um exército de mulheres. São mulheres muito batalhadoras. Não se dão por vencidas. Minha mãe é muito assim. Ela enfrentou várias adversidades. Passou por várias crises no Rival mesmo e continuou. Não fechou a casa. O Rival tem uma história de vanguarda, da qual me orgulho muito, lançando vários nomes da música popular brasileira, dando espaço para diversos artistas, para o resgate e o lançamento. O Rival é a minha casa de infância. Minha memória mais antiga.
E como surgiu a ideia de produzir o documentário Divinas divas? Você já era fã do trabalho dessas artistas?
Divinas divas é um documentário que conta a história da primeira geração de artistas travestis do Brasil. Eu as conheci através do Rival, que foi um dos primeiros palcos que abrigou homens vestidos de mulher ainda na ditadura, quando era proibido. E eu cresci as vendo e sou totalmente fã do trabalho delas, da coragem e da história de vida. E, quando o Rival fez 70 anos, a minha mãe convidou elas de novo para fazerem um espetáculo. A Jane Di Castro tomou a frente disso e colocou esse nome. Eu, começando a conviver com elas de novo ali no Rival, fazendo esse espetáculo, comecei a achar muito interessante a história delas, de pioneirismo, revolucionária. Comecei a estranhar como é que as pessoas não sabem, como não é divulgado, como não tem o reconhecimento que merecem. E aí começou a surgir a ideia de fazer um documentário sobre a vida delas. Mas ele ganhou também outra forma que, além de contar a história por meio de entrevistas e imagens de arquivo, era muito importante mostrá-las em cena, porque a vida delas gira muito em torno desse momento de estar em cena. O palco tem importância muito grande, o que é algo que me atrai muito nelas. A relação romântica com a arte, pura. Elas fizeram vários sacrifícios na vida. A própria questão da ação corporal delas foi muito motivada para estar em cena, e o rompimento com a família. Estamos correndo para terminar o filme neste ano.
Uma parte do orçamento foi captada por crowdfunding, certo?
Entrei com o crowdfunding no final do ano passado, que era para a filmagem de um show. Produzi um espetáculo das Divinas Divas, com toda a estrutura e produção que elas mereciam, e ficou lindo. Chamei o Gustavo Gasparani para dirigir e filmamos o processo do ensaio e o espetáculo. Foi lindo. Na verdade, tivemos muita dificuldade de captação. Existe uma resistência muito grande para falar desse tema, para as empresas se associarem a ele no Brasil. Então realmente falamos: “Vamos abrir a produção até para discutir mesmo”. E acho que o crowdfunding é uma coisa que fora do Brasil já está superestabelecida e cada vez mais tem pessoas fazendo aqui também.
Você fez alguns trabalhos na televisão que retratam a realidade do Brasil – Pantanal, A muralha, Um só coração e Cheias de charme. Como é representar essa diversidade brasileira?
Pantanal é covardia (risos). Eu entrei ali aos 46 do segundo tempo, porque era filha da Ângela Leal e estava ali – e era uma criança. Mas A muralha é algo que acho importantíssimo termos feito para registrar a história do nosso país. Recontar e registrar na ficção são coisas em que ainda estamos atrasados e podemos investir na nossa cinematografia. Temos que correr, porque é muito importante. Constrói a memória do povo também. Os Estados Unidos já contaram e recontaram a história deles como queriam. E A muralha é um trabalho belíssimo de reconstituição histórica. Sou muito fã da minissérie. Acho incrível. Trata do início de São Paulo, com os jesuítas e os bandeirantes. Tem o início dessa alma paulista. Eu estava na escola ainda (risos) e foi muito divertido de fazer, com um elenco incrível, com um núcleo de TV que eu amo – o da Denise (Saraceni). Um só coração já é um salto, mas é outro fato superimportante na história de São Paulo – a Semana de Arte de 1922. Um momento determinante para a definição e a caracterização dessa alma paulista empreendedora e criativa. E Cheias de charme se passa no Rio e fala sobre a revolução que a internet traz e a democratização de a pessoa postar um vídeo, ter milhões de views e começar uma carreira. Claro que isso não acontece com todo mundo. Tem vários vídeos que são postados e não acontece isso. E também fala sobre a ascensão da classe C, que é um fenômeno que a gente está vivendo, em que três mulheres, cada uma com história de vida muito diferente, representa a chefe da família. As três se realizaram através da arte e da internet.
Você é uma pessoa conectada? Como vê a questão da liberdade e da cultura com a internet?
Acho que é positivo, porque existem muitas possibilidades na relação da arte com a internet. Agora, eu uso minimamente. Uso para facilitar a minha vida (risos). O Twitter é uma rede social que adoro e que me mantém superinformada. Sigo diretamente pessoas que acho legais e gosto muito também de ser uma forma de divulgação dos meus projetos. Uma forma de as pessoas que querem saber o que você pensa poderem ler diretamente. Agora, esse é um tema que a gente pode discutir por três horas. Nome próprio [filme de Murilo Salles, que ela estrelou em 2007] é sobre a exposição da sua vida e qual é o limite para isso. O que você coloca ali e que pode ser transformado em arte? O que é apenas uma viagem do seu ego? Enfim, essa é uma questão bem complexa dos dias atuais. É uma ferramenta muito nova que, como toda ferramenta, tem seu lado positivo e negativo, e que só vamos aprender utilizando.
Além de falar da nossa história, do que mais você sente falta no cinema nacional?
Protagonistas femininas, principalmente que não sejam putas e loucas (risos). Não dá nem para falar essa frase desse jeito. Puta e louca. Mas figuras femininas, heroínas, no cinema são uma coisa muito rara. E acho que também precisa ser contada a nossa história através de figuras femininas. A muralha tinha protagonistas femininas. Mas tem um fator muito sério nos filmes de época, que é o orçamento alto. Reconstituição de época não é fácil.
Como está sua preparação para interpretar a mocinha Cristina, na telenovela Falso brilhante, de Aguinaldo Silva?
Ela é uma mocinha que sofre, porque acontecem realmente coisas que tiram o chão de qualquer pessoa. Ela perde a mãe, o irmão é preso, descobre que é filha de outro cara que, a princípio, a rejeita. São mil coisas que acontecem no início da trama que a deixam desestabilizada. Só que não abaixa a cabeça. É uma lutadora. Fala: “Essa família depende de mim agora. Tenho que resolver essa situação. Tenho meu sobrinho, minha tia, meu irmão que está preso”. Ela é uma mulher forte e feminina.
Pelo que sentimos, a cada trabalho você não impõe barreiras a você mesma. Você mergulha profundamente e se permite viver as experiências mais diversas, é isso mesmo?
É. Acho que faz parte do meu processo. Cada um tem um. Faz parte do meu, como atriz, construir uma máscara para o meu personagem, que é esse visual todo. E é maneiro. Já te adianta o processo, eu acho, quando você faz a troca de roupa, vê tudo e muda tudo. Já vai para outro lugar. É divertido. Acho melhor que o meu personagem seja mais forte do que a minha figura. Esse é o objetivo.
E como é organizar todos esses projetos nos quais você se envolve?
O meu trabalho é a minha vida. Então, não tem tanta separação. Se eu não trabalhasse, seria muito infeliz. Graças a Deus, tenho a possibilidade de trabalhar e viver do meu trabalho. Quer coisa melhor? Então, não tenho do que reclamar. Só agradeço. Tem que ter força para fazer tudo o que quer e aí também tem escolhas. A vida também é assim. Você vai se dedicar a cuidar, primeiro, de tal coisa e depois de outra. E, olha, também não faço nada sozinha. A vida é feita de parceria. Não acredito que sou a melhor do mundo em tudo. Tem poucas coisas na minha vida que eu falo que sei fazer bem. Uma delas é sambar. Acredito que tem coisas que a gente sabe fazer bem, outras que não, e outras ainda que vai ter que juntar gente para realizar. E é maravilhoso quando você junta várias pessoas e faz do seu sonho o delas também. É incrível. Na Daza [produtora da qual é sócia], não estou em todos os projetos de frente. Tenho mais duas sócias, com os projetos delas. Estamos juntas em tudo, mas há uma divisão do trabalho.
Por falar em samba, você tem um envolvimento forte com o Carnaval, sendo porta-estandarte do Cordão do Bola Preta. Como começou essa relação?
Minha mãe é muito carnavalesca. Minha avó era também. Desde criança, frequento Carnaval. Então, quem puxa aos seus não degenera. Eu já sou há cinco anos porta-estandarte do Bola Preta e é realmente um dos dias mais felizes do ano para mim. É muito intenso. É uma energia muito vibrante. Eu saio do Bola Preta e fico elétrica. Não consigo parar.
Você também é muito engajada e gosta de política...
Adoro política, porque é algo que impacta muito na nossa vida. O meu trabalho com cultura também é algo que exige se envolver minimamente. Não ser politizado é uma atitude política. Tudo é política. Então, realmente, não tem como você não se envolver minimamente.
E você leva isso para o seu trabalho também?
Não. Não acredito que todo trabalho tenha que ser político, mas talvez os que produzo, que são, em sua maior parte, autorais, tenham mais essa veia.
Em quais causas você está envolvida agora?
Sempre são causas que têm a ver com liberdade. Acho que o grande norte da vida para mim é esse. Essa é a grande bandeira. Liberdade e cultura.
Como você analisa o atual momento da Copa do Mundo e de uma eleição para presidente muito próxima?
É tão complicado. Confesso que ainda estou formando opiniões sobre isso. Acho que a falta de transparência em todo o processo da Copa é algo que realmente danifica muito a imagem do mesmo torneio. Eu não sou contra. Ainda mais dias antes. Pode ser superpositivo, mas existe uma falta de transparência e de democracia em todo o processo. A discussão do legado e dessas obras todas que estão ficando prontas. É o que está aí para acontecer. Acho que a gente tem que realmente aprender. Ainda temos outro grande evento que acontecerá daqui a dois anos, com várias obras em curso. É preciso cobrar desse outro evento essa transparência e ter uma discussão maior do legado das mudanças que estão ocorrendo nas cidades. A gente não pode não aprender com essa experiência, porque são vários investimentos altos que estão sendo realizados e que podem beneficiar, se tiver discussão democrática.
Para viver mulheres que, em comum, são fortes, determinadas e femininas, Leandra Leal gosta de se transformar, inclusive fisicamente, no que denomina ser seu processo de criação. “Ator é um bicho que muda tanto”, brinca. Desse modo, a rotina parece não fazer parte de sua vida. Filha da atriz Ângela Leal e neta do produtor cultural Américo Leal, ela é uma das três sócias da produtora Daza e gosta de tomar a dianteira em seus próprios projetos: entre eles, a administração – ao lado da mãe – do Teatro Rival, criado pelo avô e que completa agora 80 anos; e a realização do documentário Divinas divas, a respeito da primeira geração de artistas travestis do Brasil, que atuam há 50 anos, e para o qual arrecadou verba por meio do sistema de crowdfunding.
A Leandra, da entrevista a seguir, é ainda aquela que tem um fascínio imenso por sambar, sendo, há cinco anos, a porta-estandarte do Cordão do Bola Preta, que, a cada ano, reúne milhões de pessoas no Rio de Janeiro; e também a que diz sentir falta de filmes que retratem a história do Brasil.
O lobo atrás da porta é um filme muito intenso, que revela como o desejo pode muitas vezes nos levar a atitudes extremas. De que modo podemos encarar a violência que o filme aborda?
No filme, são apresentadas duas versões e você pode escolher em qual delas acredita. Na versão da Rosa, existe um grau de machismo bem alto, que é o cara ter uma amante e achar que isso é natural e que é normal esconder dela que é casado. A versão do Bernardo é outra. Ele já tinha falado tudo desde o início. A grande qualidade do filme é apresentar as personagens, sem vilanizá-las e vitimá-las. Todos foram, de certa forma, agentes daquela situação. Uma coisa que me angustia é que, a qualquer momento, a Rosa pode não fazer o que fará. Tem um plano do filme que acho muito legal que é quando ela está em uma encruzilhada, pega outra direção e fica olhando. É como se pudesse dar mais uma volta e, a qualquer momento, o desfecho pode não acontecer. E, na verdade, o filme trata de como uma pessoa aparentemente normal pode ser levada a cometer um crime. Mas acho que tudo é fruto de uma relação amorosa doente, patológica mesmo.
E como você avalia a maneira de o filme tratar a violência contra a mulher?
Na versão da Rosa, apenas por ela falar que não se arrepende e que é culpada, existe um machismo muito grande. O Bernardo é um cara que a envolveu. Ela não sabia e, quando viu, estava apaixonada, sem volta. E o cara, para segurar a família em uma hipocrisia, comete uma violência brutal contra ela. É muito forte. Agora, isso não justifica o que ela faz e a escolha dela. Olho por olho, dente por dente. Ela é louca. Muito selvagem. Ela poderia ter denunciado ele.
Nos seus dois próximos filmes, que estão para estrear, também há personagens femininas que nos parecem bem fortes, como em Éden, no qual, com oito meses de gravidez, a personagem perde o marido assassinado. Que mulheres são essas que você escolhe para interpretar?
Éden é um projeto mais antigo do Bruno [Safadi, diretor]. O filme é sobre uma situação real, de extermínio de jovens negras nas periferias. E a personagem tem uma família que vai sendo formada. O marido morre e ela tem que cuidar sozinha daquela criança. No processo de luto, acaba acolhida por uma igreja evangélica da comunidade onde vive. O que me parece muito lindo no filme é que ela descobre a salvação não na religião, mas no próprio filho, na própria continuidade. Houve um final de semana de intervalo entre Lobo e Éden. Foi um período de trabalho muito intenso, porque eram duas energias muito diferentes. Era um filme sobre o luto, a perda. Aí, depois do Éden, me envolvi também como produtora e não só como atriz, em um coletivo de cinema, que se chama Operação Sonia Silk, que tem dois filmes de ficção e um documentário sobre o processo de realização deles – O Rio nos pertence e O uivo da gaita. Eles foram feitos com o mesmo elenco e a mesma equipe. Filmamos os dois em duas semanas no Rio de Janeiro.
E sobre o que são exatamente?
São dois filmes que se relacionam com a cidade e tiveram a proposta de ser feitos de uma forma realmente radical, de testar essa forma de produção, e reuniu uma equipe que já está trabalhando em cinema há muito tempo. O uivo da gaita é um triângulo amoroso de uma mulher que é casada com um cara e se apaixona por outra mulher. É um filme supersensível, que tem pouquíssimos diálogos. É uma viagem. Lindo. E fala sobre esse amor contemporâneo. Um amor líquido. Essa dificuldade nossa de escolha, de estar em um lugar e, ao mesmo tempo, querer outra coisa. E o outro é O Rio nos pertence, que apresenta um Rio de Janeiro sombrio, angustiado, sobre o retorno de uma pessoa que está fora há dez anos e volta para a cidade em busca de entender a história da família dela. É uma história suburbana.
E quem é, em sua opinião, a mulher brasileira? Você se sente uma representante?
Se acho que represento a mulher brasileira? Ai, meu Deus, não sei. São tantas mulheres brasileiras às quais a gente acaba dando voz. Sou uma mulher brasileira, jovem. Uma atriz que produz as próprias coisas. Corro atrás dos meus sonhos. Acho que a mulher do Brasil, cada vez mais, segundo as estatísticas, está liderando as suas famílias. Ainda não temos uma equiparação de salário com os homens, mas estamos em um caminho de liderança. Agora, não sei que mulher brasileira eu represento, não (risos).
Você falou sobre ir à luta por seus projetos, e o Teatro Rival, criado pelo seu avô, está completando 80 anos. Como é seu envolvimento com esse teatro?
O meu envolvimento é total. Realmente, agora completa 80 anos e foi mais uma ficha que caiu. Ter um espaço de cultura. De eu ter essa herança. Não é você ter um negócio. É ter uma missão, porque um espaço cultural é algo para a cidade, para as pessoas, para o artista, e isso é muito lindo na história do meu avô, da minha mãe e da minha avó também, que era uma figura superforte. As mulheres da minha família são muito fortes. Isso é uma coisa dessa mulher brasileira. Penso que é uma referência. Sempre falam isso lá de casa. É um exército de mulheres. São mulheres muito batalhadoras. Não se dão por vencidas. Minha mãe é muito assim. Ela enfrentou várias adversidades. Passou por várias crises no Rival mesmo e continuou. Não fechou a casa. O Rival tem uma história de vanguarda, da qual me orgulho muito, lançando vários nomes da música popular brasileira, dando espaço para diversos artistas, para o resgate e o lançamento. O Rival é a minha casa de infância. Minha memória mais antiga.
E como surgiu a ideia de produzir o documentário Divinas divas? Você já era fã do trabalho dessas artistas?
Divinas divas é um documentário que conta a história da primeira geração de artistas travestis do Brasil. Eu as conheci através do Rival, que foi um dos primeiros palcos que abrigou homens vestidos de mulher ainda na ditadura, quando era proibido. E eu cresci as vendo e sou totalmente fã do trabalho delas, da coragem e da história de vida. E, quando o Rival fez 70 anos, a minha mãe convidou elas de novo para fazerem um espetáculo. A Jane Di Castro tomou a frente disso e colocou esse nome. Eu, começando a conviver com elas de novo ali no Rival, fazendo esse espetáculo, comecei a achar muito interessante a história delas, de pioneirismo, revolucionária. Comecei a estranhar como é que as pessoas não sabem, como não é divulgado, como não tem o reconhecimento que merecem. E aí começou a surgir a ideia de fazer um documentário sobre a vida delas. Mas ele ganhou também outra forma que, além de contar a história por meio de entrevistas e imagens de arquivo, era muito importante mostrá-las em cena, porque a vida delas gira muito em torno desse momento de estar em cena. O palco tem importância muito grande, o que é algo que me atrai muito nelas. A relação romântica com a arte, pura. Elas fizeram vários sacrifícios na vida. A própria questão da ação corporal delas foi muito motivada para estar em cena, e o rompimento com a família. Estamos correndo para terminar o filme neste ano.
Uma parte do orçamento foi captada por crowdfunding, certo?
Entrei com o crowdfunding no final do ano passado, que era para a filmagem de um show. Produzi um espetáculo das Divinas Divas, com toda a estrutura e produção que elas mereciam, e ficou lindo. Chamei o Gustavo Gasparani para dirigir e filmamos o processo do ensaio e o espetáculo. Foi lindo. Na verdade, tivemos muita dificuldade de captação. Existe uma resistência muito grande para falar desse tema, para as empresas se associarem a ele no Brasil. Então realmente falamos: “Vamos abrir a produção até para discutir mesmo”. E acho que o crowdfunding é uma coisa que fora do Brasil já está superestabelecida e cada vez mais tem pessoas fazendo aqui também.
Você fez alguns trabalhos na televisão que retratam a realidade do Brasil – Pantanal, A muralha, Um só coração e Cheias de charme. Como é representar essa diversidade brasileira?
Pantanal é covardia (risos). Eu entrei ali aos 46 do segundo tempo, porque era filha da Ângela Leal e estava ali – e era uma criança. Mas A muralha é algo que acho importantíssimo termos feito para registrar a história do nosso país. Recontar e registrar na ficção são coisas em que ainda estamos atrasados e podemos investir na nossa cinematografia. Temos que correr, porque é muito importante. Constrói a memória do povo também. Os Estados Unidos já contaram e recontaram a história deles como queriam. E A muralha é um trabalho belíssimo de reconstituição histórica. Sou muito fã da minissérie. Acho incrível. Trata do início de São Paulo, com os jesuítas e os bandeirantes. Tem o início dessa alma paulista. Eu estava na escola ainda (risos) e foi muito divertido de fazer, com um elenco incrível, com um núcleo de TV que eu amo – o da Denise (Saraceni). Um só coração já é um salto, mas é outro fato superimportante na história de São Paulo – a Semana de Arte de 1922. Um momento determinante para a definição e a caracterização dessa alma paulista empreendedora e criativa. E Cheias de charme se passa no Rio e fala sobre a revolução que a internet traz e a democratização de a pessoa postar um vídeo, ter milhões de views e começar uma carreira. Claro que isso não acontece com todo mundo. Tem vários vídeos que são postados e não acontece isso. E também fala sobre a ascensão da classe C, que é um fenômeno que a gente está vivendo, em que três mulheres, cada uma com história de vida muito diferente, representa a chefe da família. As três se realizaram através da arte e da internet.
Você é uma pessoa conectada? Como vê a questão da liberdade e da cultura com a internet?
Acho que é positivo, porque existem muitas possibilidades na relação da arte com a internet. Agora, eu uso minimamente. Uso para facilitar a minha vida (risos). O Twitter é uma rede social que adoro e que me mantém superinformada. Sigo diretamente pessoas que acho legais e gosto muito também de ser uma forma de divulgação dos meus projetos. Uma forma de as pessoas que querem saber o que você pensa poderem ler diretamente. Agora, esse é um tema que a gente pode discutir por três horas. Nome próprio [filme de Murilo Salles, que ela estrelou em 2007] é sobre a exposição da sua vida e qual é o limite para isso. O que você coloca ali e que pode ser transformado em arte? O que é apenas uma viagem do seu ego? Enfim, essa é uma questão bem complexa dos dias atuais. É uma ferramenta muito nova que, como toda ferramenta, tem seu lado positivo e negativo, e que só vamos aprender utilizando.
Além de falar da nossa história, do que mais você sente falta no cinema nacional?
Protagonistas femininas, principalmente que não sejam putas e loucas (risos). Não dá nem para falar essa frase desse jeito. Puta e louca. Mas figuras femininas, heroínas, no cinema são uma coisa muito rara. E acho que também precisa ser contada a nossa história através de figuras femininas. A muralha tinha protagonistas femininas. Mas tem um fator muito sério nos filmes de época, que é o orçamento alto. Reconstituição de época não é fácil.
Como está sua preparação para interpretar a mocinha Cristina, na telenovela Falso brilhante, de Aguinaldo Silva?
Ela é uma mocinha que sofre, porque acontecem realmente coisas que tiram o chão de qualquer pessoa. Ela perde a mãe, o irmão é preso, descobre que é filha de outro cara que, a princípio, a rejeita. São mil coisas que acontecem no início da trama que a deixam desestabilizada. Só que não abaixa a cabeça. É uma lutadora. Fala: “Essa família depende de mim agora. Tenho que resolver essa situação. Tenho meu sobrinho, minha tia, meu irmão que está preso”. Ela é uma mulher forte e feminina.
Pelo que sentimos, a cada trabalho você não impõe barreiras a você mesma. Você mergulha profundamente e se permite viver as experiências mais diversas, é isso mesmo?
É. Acho que faz parte do meu processo. Cada um tem um. Faz parte do meu, como atriz, construir uma máscara para o meu personagem, que é esse visual todo. E é maneiro. Já te adianta o processo, eu acho, quando você faz a troca de roupa, vê tudo e muda tudo. Já vai para outro lugar. É divertido. Acho melhor que o meu personagem seja mais forte do que a minha figura. Esse é o objetivo.
E como é organizar todos esses projetos nos quais você se envolve?
O meu trabalho é a minha vida. Então, não tem tanta separação. Se eu não trabalhasse, seria muito infeliz. Graças a Deus, tenho a possibilidade de trabalhar e viver do meu trabalho. Quer coisa melhor? Então, não tenho do que reclamar. Só agradeço. Tem que ter força para fazer tudo o que quer e aí também tem escolhas. A vida também é assim. Você vai se dedicar a cuidar, primeiro, de tal coisa e depois de outra. E, olha, também não faço nada sozinha. A vida é feita de parceria. Não acredito que sou a melhor do mundo em tudo. Tem poucas coisas na minha vida que eu falo que sei fazer bem. Uma delas é sambar. Acredito que tem coisas que a gente sabe fazer bem, outras que não, e outras ainda que vai ter que juntar gente para realizar. E é maravilhoso quando você junta várias pessoas e faz do seu sonho o delas também. É incrível. Na Daza [produtora da qual é sócia], não estou em todos os projetos de frente. Tenho mais duas sócias, com os projetos delas. Estamos juntas em tudo, mas há uma divisão do trabalho.
Por falar em samba, você tem um envolvimento forte com o Carnaval, sendo porta-estandarte do Cordão do Bola Preta. Como começou essa relação?
Minha mãe é muito carnavalesca. Minha avó era também. Desde criança, frequento Carnaval. Então, quem puxa aos seus não degenera. Eu já sou há cinco anos porta-estandarte do Bola Preta e é realmente um dos dias mais felizes do ano para mim. É muito intenso. É uma energia muito vibrante. Eu saio do Bola Preta e fico elétrica. Não consigo parar.
Você também é muito engajada e gosta de política...
Adoro política, porque é algo que impacta muito na nossa vida. O meu trabalho com cultura também é algo que exige se envolver minimamente. Não ser politizado é uma atitude política. Tudo é política. Então, realmente, não tem como você não se envolver minimamente.
E você leva isso para o seu trabalho também?
Não. Não acredito que todo trabalho tenha que ser político, mas talvez os que produzo, que são, em sua maior parte, autorais, tenham mais essa veia.
Em quais causas você está envolvida agora?
Sempre são causas que têm a ver com liberdade. Acho que o grande norte da vida para mim é esse. Essa é a grande bandeira. Liberdade e cultura.
Como você analisa o atual momento da Copa do Mundo e de uma eleição para presidente muito próxima?
É tão complicado. Confesso que ainda estou formando opiniões sobre isso. Acho que a falta de transparência em todo o processo da Copa é algo que realmente danifica muito a imagem do mesmo torneio. Eu não sou contra. Ainda mais dias antes. Pode ser superpositivo, mas existe uma falta de transparência e de democracia em todo o processo. A discussão do legado e dessas obras todas que estão ficando prontas. É o que está aí para acontecer. Acho que a gente tem que realmente aprender. Ainda temos outro grande evento que acontecerá daqui a dois anos, com várias obras em curso. É preciso cobrar desse outro evento essa transparência e ter uma discussão maior do legado das mudanças que estão ocorrendo nas cidades. A gente não pode não aprender com essa experiência, porque são vários investimentos altos que estão sendo realizados e que podem beneficiar, se tiver discussão democrática.
--------------------
Reportagem por:
Clariana Zanutto e Guilherme Bryan /
02/06/2014
Fonte: http://www.revistadacultura.com.br/entrevistas/conversa/14-06-02/Camaleandra.aspx
Nenhum comentário:
Postar um comentário