Eliana Cardoso*
A forma geradora da literatura ocidental é o triângulo instável do
adultério e não a simetria estática do casamento, diz Tony Tanner em
"Adultery in the Novel" (Adultério no romance), que examina a obra de
Rousseau, Goethe e Flaubert. A afirmação de Tanner parece exagerada
quando a avaliamos, por exemplo, sob a luz dos admiráveis romances de
Jane Austen, nos quais a identidade da heroína se desenvolve durante a
vida de solteira e se revela no casamento.
Tanner, entretanto, parece coberto de razão quando nos lembramos do
papel do adultério na geração de mitos. A infidelidade de Helena provoca
a Guerra de Troia narrada no épico grego. O adultério de Guinevere e
Sir Lancelot leva à queda da Távola Redonda. Essa tradição antiga nos
coloca também diante de transgressões heroicas: os personagens pertencem
a casa reais e consequências trágicas decorrem da infidelidade.
Tradição mais bem-humorada deriva da ironia em relação ao corno. As
histórias do homem idoso e sua mulher jovem informam os "Contos de
Canterbury", de Chaucer, e o "Decameron", de Boccaccio, que minimizam
implicações morais ou religiosas.
Acumulam-se tradições decorrentes dos diferentes sentidos do
adultério. O protagonista com seu desejo, paixão e sexualidade impõe
questões de identidade, enquanto o casamento, a família, contratos e
proibições religiosas apontam o adultério como ato social. Em certos
períodos históricos, a ênfase recai nas mudanças da posição social do
adúltero, como na tradição protestante, anunciada por Samuel Richardson.
A tentação ocupa aqui espaço central e, seguindo o "Novo Testamento",
nessa perspectiva o adultério se transforma em pecado da mente associado
ao corpo definido como templo do Espírito Santo. Modelada nessa fé, a
heroína de Richardson, Clarissa Harlowe, resiste ao controle sexual de
seu corpo por Robert Lovelace.
Alguns textos-chave da literatura americana pertencem a essa
tradição. A sociedade protestante e patriarcal serve de pano de fundo
para "A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne. Não há interesse no
ato físico do adultério, mas ênfase nos estados internos de Hester
Prynne e Arthur Dimmesdale. O sentimento de pecado impede a fuga dos
amantes mais do que a pressão social. A redenção exige o preço da
confissão e da morte, chocando o leitor contemporâneo, acostumado a
identidades menos legalistas e a um tratamento mais generoso da traição
sexual.
"Madame Bovary", alicerce do romance moderno, também conta uma
história de adultério, indo muito além da insatisfação e do sofrimento
da heroína. Flaubert explora a possibilidade de que a palavra não
consiga captar a vida, usando técnicas diversas para mostrar a
inadequação da linguagem na expressão de emoções e ideias, como a
incapacidade de comunicação entre os personagens. No primeiro capítulo, o
professor não consegue entender o nome de Charles. Emma se depara com a
desajuste entre a linguagem e o sentimento quando tenta mostrar sua
angústia ao sacerdote e seu amor a Rodolfo. Charles interpreta a carta
de Rodolfo como uma nota de afeto platônico. A vida de Emma é um tecido
de mentiras que contribui para o sentimento de que a palavra seria mais
eficaz para obscurecer a verdade do que para representá-la.
Emma é mentirosa por natureza e começa a enganar o marido antes mesmo
do primeiro adultério. Vive fora da realidade e tem uma mente rasa. Lê
muito, mas lê mal. Lê tomada pela emoção, colocando-se no lugar das
heroínas dos romances. Sua beleza, charme, presença de espírito e seus
momentos de ternura e compreensão encobrem sua vulgaridade e hipocrisia.
Daríamos voltas desnecessárias ao dizer que o meio moldou Emma. Mas é
verdade que, enquanto os homens tinham acesso à propriedade, o corpo de
Emma era sua única moeda, o capital que negociava em segredo, pagando o
preço da vergonha e a despesa adicional da mentira. Quando ela precisou
de dinheiro para pagar dívidas, os homens o ofereceram em troca de
favores sexuais.
De todos os ventos que chicoteiam o amor, o dinheiro é o mais frio e o
mais destrutivo. Nem por isso a adúltera é vítima. Se os limites
sociais lhe impunham a escolha entre felicidade ou fidelidade, ela toma
seu destino nas próprias mãos ao escolher a infidelidade a Charles. E a
estrutura do romance exige que Emma assuma a responsabilidade das
próprias ações.
Flaubert usou o desgosto de Emma Bovary com seu grupo social para
expressar a própria repulsa pela sociedade de seu tempo e o lado
ridículo e sufocante das atitudes burguesas. O termo burguês em Flaubert
nada deve à conotação marxista. Corresponde à descrição de pessoa
dominada pelas convenções e interessada apenas no lado material da vida.
Emma, ela mesma, tem um traço burguês. Embora caráter e acaso sejam
fatores importantes no romance, ele se encaixa também na tradição que
entrelaça o adultério a seu contexto social.
Nessa linha, considere "Pelos Olhos de Maisie", romance em que Henry
James usa a criança no centro de sua ficção sobre o adultério. As
ironias geradas são ricas e complexas. O que Maisie sabia não era o
saber da sociedade adulta sofisticada, que se habituou ao adultério e ao
divórcio, mas sua falsidade, a quebra dos votos e promessas. O
adultério torna-se, como em grande parte do romance americano moderno,
sintoma da sociedade em que a perda de valores acarreta relações
pessoais sem conteúdo.
Freud ensinou que o preço da civilização é a repressão. A literatura
contemporânea prefere a anarquia da libido sexual. Como resultado, o
adultério na literatura pós-moderna nada significa além do drama
pessoal.
No exame desse drama, "Nada a Dizer", de Elvira Vigna (Companhia das
Letras, 2010), muda o foco daquela que trai para o da mulher traída. No
sofrimento pessoal se concentra a força da narrativa em primeira pessoa
sobre os questionamentos e a agonia da mulher enganada. A narradora sem
nome descreve a posição do marido e da amante, repassa obsessivamente
cada episódio do adultério na busca de explicações e de uma atitude para
enfrentar a dor. Reflete sobre a posição feminina. O entendimento da
própria inserção cultural torna a traição ainda mais terrível.
"Enganada, traída, largada para trás, igual a qualquer outra. Rá, rá. No
olhar dos outros, inscrito o que minha mãe chamaria de destino de
mulher. Nasceu com boceta? Vai ser enganada. Traída, humilhada."
O clichê sobre a cisão do desejo masculino em duas vertentes - uma
terna e afetiva, outra erótica e sexual - se repete agora no contexto
pós-moderno da epidemia de aids. "Li em seu rosto que ele achava que me
fazia bem eu considerar N. uma mulher promíscua. Que eu, a esposa traída
de meia-idade, me sentiria melhor se ele não refutasse a hipótese de
sua amante ser uma puta. Eu afundava, mais e mais, em estereótipos, e
Paulo continuava a me ajudar para que assim fosse. Agora, eu era a
mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha sido traída. E era
também a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha a reação
típica de todas as mulheres merdas, banais, medíocres, imbecis ao serem
traídas: pedir teste de HIV."
A narradora de "Nada a Dizer" está em busca de uma identidade que
seja compatível com a desconfortável contradição entre seu contexto
cultural e a dor da traição. Um dos grandes conflitos vividos pela
narradora deriva de sua militância pela liberação sexual e o sentimento
de que trai seus ideais e se sente perdida: "Fomos nós, os que fizemos
sessenta anos no início do século XXI, os que lutaram e enfrentaram
hostilidade de todo tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que
quiséssemos, trepando com quem quiséssemos, sem que as peias e o jugo de
uma estrutura burguesa conservadora tivessem algo a ver com as decisões
pessoais de cada um".
Após a crise e o caos, ela se torna outra mulher. Perdas e danos se
diluem no passado que ela e o marido deixam para trás. O adultério põe a
nu a horrível ingenuidade do casamento aberto. Como nos faz entender a
narradora sem nome, uma relação sexual-amorosa modifica seus
participantes e afasta deles os excluídos.
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* Eliana Cardoso, economista e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: eliana.5000@outlook.com
FONTE: Valor Econômico online, 27/06/2014
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