domingo, 29 de junho de 2014

TRISTEZA

 Rubem Alves*
Hoje quero falar da tristeza.
Não me perguntem por que, pois eu mesmo não sei.
 A tristeza não pede licença, não se explica.
Vai chegando de mansinho e espalhando seu perfume
de jasmim pelas coisas, até que todas ficam encantadas pela beleza que nela mora.
Ficam belas-tristes as nu­vens do céu, tristes-belos os bem-te-vis nos galhos das árvores,
belos-tristes os objetos silenciosos do meu escritório, e até mesmo
o café da manhã fica triste-belo...
A tristeza é sempre bela, pois ela nada mais é que o sentimento
que se tem ante uma beleza que se perdeu...
Não sei o que a chamou. Teria sido a visão das florestas ardendo, com seus prenúncios de desertos quentes e fins do mundo, os pássaros fugindo para nunca mais voltar? Ou a visita a lugares antigos amados... Ah! Quem ama nunca deveria voltar... Lembro-me dos versos que decorei no Grupo, o poeta visitando paisagens de outros tem­pos e cadenciando a sua tristeza com um refrão que se repete. “São estes os sítios? São estes... Mas eu o mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera que eu vou...” Até a bem-amada fica à espera quando o corpo tenta recuperar os espaços perdidos. Pois é. Visitei lugares de minha infância lá em Minas, e vi que a casa velha onde morei já não existe e nem a jabuticabeira que reguei e as três paineiras a cuja sombra me assentei. Fiquei ali, diante dessas ausências. E percebo que tristeza é isto: estar diante de um espaço onde um dia houve o encontro. Saber que, cedo ou tarde, tudo o que está presente ficará ausente. A tristeza testemunha que o mistério da despedida está gravado em nossa própria carne. “Quem nos desviou assim”, perguntava Ril­ke, “para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?” Não é esta ou aquela despedida. As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. O que Cecília Meirelles dizia de sua avó morta podemos dizer da vida inteira: “Tudo em ti era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se...” Tristeza é isto, quando o belo e a despedida coincidem. O que revela o nosso próprio segredo, dilacerado entre o belo, que nos tomaria eternamente felizes, e os nossos braços, curtos demais para segurá-lo.
“E quando nos sentimos mais seguros algo inesperado acontece: um pôr-do-sol... E estamos perdidos de novo...” (E. Browning). Mas, que será aquilo que nos põe a perder? A beleza do crepúsculo? Não. Mas a percepção de que a beleza é crepúsculo. Goethe dizia do pôr-do-sol: “Tudo o que está próximo se distancia”. Ao que Borges comenta: “Goethe se referia ao crepúsculo, mas também à vida. Aos poucos as coisas vão nos abandonando”. O pôr-do-sol é triste porque nos conta que somos como ele: infinitamente belos em nossas cores, infinitamente nostálgicos em nosso adeus.
A tristeza é o espaço entre o belo e o efêmero, de onde nasce a poesia. Não é por acaso que os poetas repetem sempre o mesmo tema. “As nuvens à volta do sol que se põe”, dizia Wordsworth, “ganham suas cores tristes de um olho que contempla a mortalidade dos homens...” E assim, os poetas vão colocando suas palavras sobre o vazio. Não um vazio qualquer, vazio “pedaço arrancado de mim”, mutilação no meu corpo. Exercício de saudade; tornar de novo presente um passado que já se foi. “Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto para o filho que já morreu...”
Lembro-me de Álvaro de Campos dizendo da dor que sentia ao ver os navios que se afastavam do cais. “Ah! Todo cais é uma saudade de pedra... Todo atracar, todo largar de navio é — sinto-o em mim como meu sangue — inconscientemente simbólico, terrivelmente ameaçador de significações metafísicas. E, quando o navio larga do cais e se repara de repente que se abriu um espaço entre o cais e o navio, vem-me uma névoa de sentimentos de tristeza que me envolve com uma recordação de uma outra pessoa que fosse misteriosamente minha...
E é só agora, Drummond, que compreendo o que você diz no seu poema "Ausência", no qual você afirma não lastimar o espaço vazio. Não deveria ser assim... Acontece que, depois da partida, só fica a ferida, ferida que não se deseja curar, pois ela traz de novo à memória o belo que uma vez foi. “Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não o lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim... Não é estranho isto, que na tristeza more a beleza, e que se encontre aí mesmo um pouco de alegria? É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio/vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar.
Brinco com a minha tristeza como quem cuida de uma amiga fiel...
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* Teólogo. Educador. Escritor.
Fonte: Correio Popular online, 28/06/2014
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