Rubem Alves*
Seus olhos procuravam no rosto do médico uma resposta para a
pergunta que ele fazia sem palavras. Mas o médico esquivava-se do seu
olhar e virou o seu rosto para as radiografias presas no visor
iluminado.
Na verdade ele representava, fingia estar examinando as
radiografias. Ele não precisava examiná-las porque sabia o que elas
diziam. Ele olhava para as radiografias para fugir da pergunta que
morava no olhar do homem assentado à sua frente.
Eram radiografias de um cérebro. Quando ele parasse de fingir e olhasse direto nos olhos do homem ele teria de dar a notícia.
Eram radiografias de um cérebro. Quando ele parasse de fingir e olhasse direto nos olhos do homem ele teria de dar a notícia.
“Há um tumor maligno no seu cérebro”, ele disse. “É um tumor
inoperável...” Depois de um longo silêncio o homem lhe perguntou com voz
tranquila: “Quanto tempo me resta, doutor?”
“Não é possível dizer ao certo”, respondeu o médico. “Mas penso que uns seis meses...”
O homem voltou-se para sua esposa assentada ao seu lado e lhe disse: “Chegou a hora de viver a liturgia da morte...”
Eu o conhecia. O seu nome era Alexander Schmemann, teólogo da
Igreja Ortodoxa Russa. Essa igreja tem uma maneira peculiar de ver o
mundo. As igrejas cristãs do ocidente veem o mundo como um vale de
lágrimas colorido pela culpa e pelo medo. A Igreja Ortodoxa Russa vê o
mundo como um espetáculo estético. Tudo é belo. Tudo é harmonioso. Deus é
um esteta, um artista que vive para produzir a beleza. É a beleza que
nos salva.
Essa harmonia cósmica, a Igreja a oferece aos homens através da
liturgia. A liturgia é a beleza do universo oferecida aos sentidos: os
carrilhões, o incenso, os cânticos, os vitrais, os gestos coreográficos.
Participar da liturgia é unir-se ao universo e gozar da sua beleza, da
mesma forma como um músico se une à sinfonia e goza da sua beleza ao
tocar seu instrumento.
“Chegou a hora de viver a liturgia da morte...” Em outras palavras:
chegou a hora de salvar a morte do seu horror para torná-la parte da
beleza cósmica.
Deus é um esteta que ama a beleza. O homem é um esteta que ama a
beleza: foi criado à imagem e semelhança de Deus. O homem, qualquer
homem, sem o saber, compõe a sua vida como uma peça musical. O fim tem
que ser belo, ainda que trágico.
No seu livro 'O Mito de Sísifo', Camus sugeriu que os suicidas
preparam sua morte como uma obra de arte a ser contemplada. Como os
samurais que, antes de praticar o sepuko, escreviam um hai-kai. Por que
escrever um hai-kai? Para retirar o terror da morte pela magia da
poesia.
Acho que esse é o desejo oculto de todas as pessoas: que a morte não seja o terror mas, como sugeriu Mário Quintana, “um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim...”
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* Educador. Escritor.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2014/06/colunistas/rubem_alves/183895-a-liturgia-da-morte.html
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