Carlos Eduardo Soares Gonçalves*
Quando ensino aos meus alunos do curso de introdução à economia que
tarifas elevadas de importação são algo ruim para o desenvolvimento
econômico, que elas prejudicam o consumidor e até mesmo produtores que
usam insumos importados, e a partir daí explico os canais por meio dos
quais o comércio internacional impulsiona o nível de renda por habitante
dos países, invariavelmente um deles ergue o braço e pergunta, com
semblante indignado: "Mas, professor, por que então existem essas
tarifas, se elas são prejudiciais? Ninguém lá no governo sabe disso"?
De fato, por quê?
Note que podemos estender a lista: "Se inflação é ruim, por que nos
assolou por tantos anos?" "Se subsídios distorcem a alocação de
recursos, por que o governo dá subsídios para certos setores da
economia?" "Se a reforma da previdência é tão urgente, por que não
fazê-la logo?" Melhor parar por aqui e começar a oferecer respostas.
A ciência econômica por muito tempo se preocupou com questões do
tipo: "Isso gera aquilo? Como?" Por exemplo, "comércio gera mais
crescimento, através de quais canais?", "expansão monetária excessiva
gera mesmo inflação?" ou "quando é ideal expandir gastos públicos?" A
busca concentrava-se em entender o funcionamento da máquina da economia,
seus defeitos e belezas, e averiguar como ela reagiria a mudanças na
calibragem de certas alavancas.
Dos anos 1980 para cá, contudo, presenciamos também um vertiginoso - e
bem-vindo - crescimento de perguntas associadas ao porquê de as
alavancas serem acionadas do jeito que o são por seus operadores. É a
pergunta do meu aluno - "Por que o governo impõe altas tarifas de
importação?" - subindo de status no mundo acadêmico.
São duas as classes de resposta. A primeira, que os economistas não
apreciam tanto, tem a ver com o desconhecimento puro e simples a
respeito do jeito correto de a máquina econômica funcionar. E, claro,
entendimento equivocado das engrenagens leva a ações de politica
econômica equivocadas: as tais tarifas elevadas. A segunda classe de
resposta é de viés mais maquiavélico, cínico, estratégico: não, não se
trata de desconhecimento; os desvios do ideal se dão porque alguns
agentes econômicos não têm interesse em que a máquina econômica funcione
bem, ou funcione melhor, e lutam para mantê-la capenga.
Mexidas nas alavancas - alterações na politica econômica, reformas
estruturais - raramente são indolores, e uma economia mais saudável após
uma reforma pode vir ao custo de perdas para alguns participantes do
jogo. Justamente esses alguns se reunirão para formar lobbies que
impeçam as mudanças - essa tese é a favorecida pelos economistas
modernos, a propósito. Por que alguns industriais não querem abertura da
economia e integração comercial aqui em Pindorama? E por que
agricultores nos Estados Unidos e na Europa resistem ao comércio livre
com países como Brasil, e insistem em subsídios para seus produtos? Pura
proteção de interesses particulares. Lobby - do tipo ruim.
Onde está a verdade? Como diria o príncipe Sidarta, no meio do
caminho. Creio haver um pouco das duas coisas: lobbies maquiavélicos e
ingenuidades/desconhecimentos panglossianos.
Convenhamos, não dá para comprar 100% a hipótese de que as pessoas -
políticos e eleitores - entendem com clareza as nuanças teóricas que
sugerem ser o comércio internacional algo necessariamente bom para a
sociedade e que, portanto, desvios do ideal de tarifas baixas são pura e
simplesmente causados por lobbies maquiavélicos. Por exemplo, meus
alunos, que são pessoas de elevadíssimo capital humano, ao chegarem à
universidade não pensam assim sobre o comércio. Acham que o produtor
nacional precisa ser protegido. Por que, então, seria uma boa hipótese
assumir que o eleitor mediano, que nunca estudou economia, entende a
questão com clareza, mas no fim é impedido de ver sua politica econômica
preferida implementada pela influência maligna de poderosos lobbies?
Mais ainda, olhando para a história do debate econômico no Brasil e
na América Latina, para as raízes profundas que plantaram a tradição
cepalina e suas congêneres, parece-me óbvio que a crença entortada de
que para desenvolver uma economia é necessário fechá-la ao comércio,
fartá-la de incentivos creditícios e praticar politicas fiscais
incabíveis, era genuína. Não, não me tomem por Pangloss. As pessoas
acreditavam nisso e, infelizmente, algumas ainda creem, em que pese toda
evidência contrária. Vejam bem, não estou falando do lobista da
indústria X, estou falando de cientistas políticos, elites intelectuais,
e até mesmo de alguns economistas.
Aliás, note que o lobista da indústria X teria bem mais dificuldade
de "convencer" certos congressistas sobre a importância de sua indústria
receber proteção especial se a massa dos eleitores e formadores de
opinião entendesse quem ganha e quem perde com essa medida. O
congressista teria mais medo de assegurar favores para grupos de
interesse específicos.
Mas não me entendam mal: é claro que o lobby de certos grupos é
componente importante na explicação de distorções crassas de politica
econômica. Eles têm força, de fato, pois interesses concentrados se
defendem mais facilmente de mudanças que os atingem, têm maior
capacidade de organizar um ataque a reformas que beneficiam a sociedade
como um todo, mas que os prejudicam. Isso é fato. Ainda assim, insisto: a
força desse canal de influência diminui à medida que as pessoas na rua
passam a entender que as demandas dos lobistas lhes são prejudiciais,
que elas perdem com tarifas à importação.
E por que as pessoas não se informam mais sobre esses importantes temas econômicos?
Porque cada um, individualmente, não tem incentivo a fazer isso.
Infelizmente para o conjunto da sociedade, individualmente é racional
permanecer irracional. Faça a conta do ponto de vista de um dado
indivíduo, o cidadão X. Qual a consequência para ele, em termos de
benefícios privados, do esforço de tentar entender o funcionamento da
macroeconomia corretamente e não votar em políticos que fazem e falam
barbeiragens nessa área? Esse indivíduo, sozinho, não faz verão: seu
voto individual não muda os rumos da eleição, e sua opinião individual
não afeta a plataforma do candidato à Presidência. Como gostam de dizer
os economistas, um cidadão é atomístico nesse mundão de milhões de
cidadãos. Para piorar, ele pode achar que defender publicamente teses
liberais é algo socialmente complicado; mais legal é vestir camisa do
Che e malhar os ricos e o capitalismo mundial. Ah, sim, se fosse apenas o
cidadão X a escolher nossos governantes, ele não seria tão desleixado
na análise, mas como o voto dele conta zero, ou melhor, conta 1/milhões
de eleitores, ele não se importa tanto em fazer as contas certas.
Veja que esse mesmo indivíduo que vota num populista econômico muito
provavelmente não pratica populismo econômico na sua casa: não gasta
acima da sua restrição orçamentária indefinidamente, por exemplo. Por
quê? Porque nesse caso sua ação irresponsável afetaria muito diretamente
sua situação, seu bem-estar. Aí então ele se policia. Mas para que se
policiar na hora de entender a macroeconomia, se o seu voto é apenas
mais um em não sei quantos milhões?
Cada vez que penso nesse assunto, me convenço mais e mais da
necessidade de ensinarmos noções básicas de economia já no segundo grau.
Geraria externalidades positivas para toda a sociedade, pois em alguns
anos teríamos politicas econômicas melhores.
Alguém do MEC me lê?
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*Carlos Eduardo Soares Gonçalves, professor titular de
economia da FEA-USP e autor de "Economia Sem Truques" e "Sob a Lupa do
Economista" (Campus), escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: cesg73@usp.br
Fonte: Valor Econômico online, 20/06/2014
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