Luiz Felipe Pondé
Outro dia, em visita profissional a uma das principais capitais do país
(aliás, uma das minhas preferidas), vi uma cena muito significativa do
Brasil atual. De primeira não acreditei, levando em conta o tipo de
pessoa envolvida, mas, depois, fui obrigado a aceitar a realidade dos
fatos. O que eu vi? Já conto. Antes alguns reparos.
Já disse nesta coluna que estou mais pra Hobbes do que Rousseau em
termos de rompimento do contrato social e da ordem pública, porque
inclusive muito dos movimentos ditos sociais superestimam sua
representatividade. Quando multidões se formam, em poucos minutos podem
virar um grande instrumento de violência de massa. Ninguém é "bonzinho"
quando se sente parte de uma massa de "iguais".
Hobbes é o cara que viveu uma vida honesta e responsável e dizia que sem
ordem degeneramos em violência porque a vida é precária, perigosa,
breve e dolorosa. Rousseau é o carinha que mandou os filhos pro asilo,
enlouqueceu sua mulher, mas dizia que somos anjinhos e que a propriedade
privada e a ganância é que fazem sermos maus e que em multidões
revolucionárias "curamos" o mundo.
Voltemos ao Brasil. Por exemplo, com relação à Copa, essa coisa de "não
vai ter Copa" é uma tentativa de estragar a alegria da maioria que nunca
mais terá a chance de ver uma Copa no país. Isso não significa que não
tenha havido abusos e absurdos na condução da logística e
infraestrutura, mas nada disso justifica querer tornar a vida das
pessoas um inferno com manifestações um tanto totalitárias. Os demais
movimentos são naturalmente oportunistas no sentido que a medicina dá a
certos processos infecciosos.
E mais: duvido fortemente da suposta evidência de que sem movimentos de
rua a sociedade deixe de se modernizar. A Revolução Francesa é um
fetiche de professores que erotizam a política da violência "criadora". A
França, como a Inglaterra, teria se modernizado sem a maldita
revolução. A maioria dos movimentos políticos marcados por uma
metafísica revolucionária (jacobinos, Rússia, Cuba, China, Vietnã, Leste
Europeu até a queda do muro de Berlim e outros) não serviu para nada a
não ser para matar seus inimigos com desculpas metafísicas ou enriquecer
seus líderes corruptos com o passar do tempo.
É fato surpreendente que o mesmo tipo de gente que se diz contra guerras
goza com a ideia de revoluções. Acho que muita dessa gente goza mais
gritando frases de efeito na rua do que transando. Mas muito
psicanalista (e similares) por aí acha mesmo que a "verdadeira" clínica é
a política. Toda teoria política com metafísica é totalitária em algum
momento.
Mas e a cena que eu vi? Conto pra você agora. Estávamos nós saindo de um
restaurante à noite quando o farol em nossa frente fechou. Um grupo
grande de ciclistas passou. Mas, quando o farol fechou pra eles, em vez
de pararem de passar, como seria o correto, três deles barraram a
passagem dos carros que tinham o direito legal de passar, como fazem os
policiais militares em situações excepcionais. Ou seja, foram
autoritários.
Até aí, apenas mais um exemplo de que mesmo grupos que se julgam "do
bem" (salvam o planeta pedalando, socializam durante as noites
passeando, têm grana porque pobre anda de bicicleta durante o dia e rico
anda de bike durante a noite) degeneram em violência quando em bando.
Aí um quarto ciclista se aproximou das filas de carro barradas por eles,
desceu da bike, levantou a "magrela" no ar com as duas mãos, como se
fosse uma Uzi ou alguma metralhadora similar, e a sacudiu gritando algo
incompreensível.
Já vi aqui em São Paulo ciclistas fecharem carros, furarem o farol
xingando o motorista (que também nem sempre é educado, diga-se de
passagem), correndo riscos de vida. Na Dinamarca, capital das bikes
chiques, vi comportamentos agressivos semelhantes.
Fosse eu uma dessas pessoas que "postam fotos", o ciclista estaria
famoso a esta altura. A pergunta é: com quem estaria ele se
identificando? Eu tenho algumas hipóteses. Entre elas, o líder do Boko
Haram da Nigéria e suas meninas raptadas.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista da Folha.
Fonte: Folha online, 09/06/2014
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