Professor de psicologia social, Alex Haslam sustenta que colaboradores de maldades acreditam que estão numa causa nobre
Foto:
Divulgação / Arquivo Pessoal
Desassistência social combinada com impunidade alimenta crimes e maus-tratos, dos mais rumorosos aos que, de tão corriqueiros, tornam-se invisíveis
As pessoas se horrorizam quando veem na TV as crianças feridas por
bombardeios na já prolongada guerra civil da Síria, no Oriente Médio.
Ficam indignadas quando alguém atira uma pedra num cachorro de rua e
depois se põe a rir dos ganidos do bicho a capengar. Mas até que ponto
se consegue perceber as maldades ocultas? Ou aquelas que, de tão
rotineiras, já anestesiaram nossos sentimentos?
A crueldade humana é ancestral, repete-se à exaustão, mas pode
assumir faces quase invisíveis — e nem por isso menos devastadoras. Um
convite à reflexão foi feito no início do mês, em Porto Alegre, durante a
11ª jornada de saúde mental promovida pelo Centro de Estudos de
Literatura e Psicanálise Cyro Martins (CelpCyro). A proposta foi alertar
para as perversidades atuais, especialmente as silenciosas e que se
alongam até virar parte da paisagem.
Presidente do CelpCyro, o psiquiatra Cláudio Meneghello Martins
destaca que uma das maldades em andamento, e que parece não comover os
brasileiros, é a epidemia de crack. Adverte que os 2,6 milhões de
viciados no país — o cálculo é da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e inclui os dependentes de cocaína — rumam para um genocídio
anunciado.
— A história mostrará esse exército de zumbis — diz Cláudio Martins, filho do escritor e psicanalista Cyro Martins (1908-1995).
Durante a II Guerra Mundial, ignorou-se o holocausto dos judeus nos
campos de concentração nazistas, a humanidade demorou para notar a
tragédia. Ressalvadas as proporções, Cláudio entende que miopia similar
ocorre em relação aos acorrentados pelo crack. Pondera que os fantasmas
do entorpecente vagando pelas cidades resultam de uma nova forma de
maldade: a falta de assistência pública à saúde.
— São os maus-tratos da desassistência. Quando tiram o recurso
público para a assistência, estão fazendo um maltrato geral — diz
Cláudio, também diretor secretário da Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP).
Falta de freios legais permeia caso Bernardo
O pesquisador britânico Oliver Thomson sustenta, no livro A
Assustadora História da Maldade, que os maiores crimes foram perpetrados
pelo "poder oficial", quando tiranos subjugaram nações. Um exemplo
estremecedor, na América do Sul, foram as ditaduras militares da década
de 1970 — responsáveis por um dos períodos mais sombrios do século
passado na avaliação de Alex Haslam, professor de psicologia social com
atuação na Austrália, na Inglaterra e nos Estados Unidos (veja
entrevista abaixo).
Assassinatos pontuais, executados por indivíduos anônimos, também têm
o poder de aterrar uma comunidade. É o caso do menino Bernardo
Boldrini, 11 anos, de Três Passos, no norte gaúcho, morto em abril,
depois de ter sido dopado pela madrasta.
Para o ex-presidente da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do
Sul, Fernando Lejderman, o homicídio de Bernardo é consequência de uma
situação vigente no país: a falta de freios à maldade.
— Ele vinha sofrendo maus-tratos, a ponto de procurar a Justiça, mas
nada foi feito e "a coisa ruim" continuou atuando em torno dele — diz o
psiquiatra.
Sem as barreiras legais, torna-se mais difícil para as pessoas se
acautelarem dos criminosos à espreita do menor descuido. O psiquiatra
Lejderman avisa que indivíduos inclinados ao mal não sentem remorso nem
temem por suas ações. Se as travas sociais (prevenção, tratamento, leis e
punição) estão frouxas, como acontece no Brasil, eles ficam à solta. É
por isso que bandidos convictos reincidem.
— A impunidade é o pior dos mundos para a sociedade. Se não acontece nada, continuam fazendo — lamenta.
Nos 13 anos em que atuou no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) de
Porto Alegre, Luiz Carlos Illafont Coronel exumou o que chama de "lado
obscuro da alma". Lidou com malvados de carteirinha e constatou que as
drogas — álcool, cocaína, crack — abrem a jaula da perversidade.
Coronel lembra que o universitário que disparou uma submetralhadora
durante uma sessão de cinema, em São Paulo, há 15 anos, ensaiou o
homicídio várias vezes.
— Só ganhou coragem quando cheirou uns 30 papelotes de cocaína — conta.
Entrevista | Alex Haslam
"Somos todos capazes de fazer o mal"
Existe a crença de que verdugos a serviço de tiranias agem por
obediência, como burocratas cumprindo ordens superiores. Pois o
professor de psicologia social da universidade britânica de Exeter, Alex
Haslam, 52 anos, contesta o que chama de "conformidade cega". Sustenta
que os colaboradores de maldades, aqueles do trabalho sujo, podem
discernir sobre o que estão fazendo. E mais: atuam acreditando que estão
numa causa nobre. Confira a entrevista por e-mail de Haslam, também
membro de universidades na Austrália e nos Estados Unidos.
O senhor pesquisou que as pessoas, quando praticam maldades a
serviço de tiranias, sabem o que estão fazendo. Não agem passivamente
ou por obediência, mas por acreditarem que estão fazendo a coisa certa.
Como é isso?
A chave é que, a fim de se envolver em atos tiranos com algum
entusiasmo, os participantes precisam se identificar com a causa pela
qual estão sendo mobilizados. Na experiência de Milgram (psicólogo
norte-americano Stanley Milgram, morto em 1984), fica claro que a crença
no valor de um projeto científico foi essencial para os participantes
atenderem à vontade do cientista, e isso é algo que Milgram teve muito
trabalho para cultivar. De maneira semelhante, em regimes fascistas,
líderes precisam convencer a população de que seus atos promovem uma
causa nobre (a pureza da identidade nacional, por exemplo). É essa
crença de que estão fazendo o certo que encoraja as pessoas a fazerem o
trabalho duro necessário para que esses regimes tenham sucesso.
O seu estudo é considerado inovador. O senhor sofreu contestações? De que espécie?
Há muitas pessoas que acreditam (e querem acreditar) que tirania e
maldade são produtos de uma conformidade "cega" — como se os
responsáveis fossem zumbis sem qualquer arbítrio e discernimento a
respeito do que estão fazendo. De fato, tais alegações podem ser úteis
quando queremos nos absolver da responsabilidade por ter feito coisas
ruins. Ao enfrentar crenças confortantes como essas (que são comuns na
psicologia social e na sociedade em geral), algumas pessoas nos veem
como arruaceiros que estão criando problemas. Nossa visão é simplesmente
que esses problemas precisam ser criados.
A maldade é inerente ao ser humano? Sempre irá ocorrer?
Claramente, existe uma propensão a isso. Somos todos capazes de
fazer o mal, particularmente, se estivermos mobilizados por uma
liderança malévola que nos faça acreditar que estamos fazendo algo
nobre. Porém, ao mesmo tempo, todos temos o potencial de desafiar a
malevolência e resistir a líderes malévolos. Então, não há sentido em
apontar qual maldade ou perversidade é inevitável.
O que leva alguém a praticar o mal? Qual é o estopim?
É uma grande questão, mas temos descrito isso como parte de um
processo em cinco passos. Ele revela como a tirania flui da (i)
"identificação" (construção de um grupo interno); (ii) "exclusão"
(definição de alvos externos ao grupo); (iii) "ameaça" (a representação
desses alvos como ameaçadores à identidade do grupo); (iv) "virtude"
(defesa do grupo como unicamente bom); e (v) "celebração" (adoção da
ideia de erradicar o grupo externo como necessária para a defesa da
virtude). Nesse modelo, não há um estopim específico — é um processo
histórico cujo desenvolvimento vai se desdobrando. Certamente, podem
existir eventos-chave que movam as pessoas para o mau caminho, mas cada
trajetória é única.
O que refreia a ocorrência do mal em sociedade?
Creio que a evidência é que a resistência bem-sucedida sempre
prospera onde as pessoas podem se reunir coletivamente para desafiar e
resistir à opressão. Certamente, os opressores tomam medidas para tentar
reprimir tais atividades, mas, no final, assim como grupos são
essenciais para o desenvolvimento de uma tirania, também são centrais
para derrubá-la. E, como mostra a história, e como Mahatma Gandhi notou,
no fim, todas as tiranias são derrubadas.
Há civilizações ou épocas que se excederam na maldade?
Claramente, há períodos na história (os anos 1930 na Europa e a
década de 1970 na América do Sul, por exemplo) em que as coisas
estiveram bem escuras. É interessante notar que essas tiranias sempre
estiveram incorporadas dentro de outras dinâmicas e, em particular,
terceiros (como os Estados Unidos) tiveram um papel importante tanto em
seu sucesso quanto na derrocada.
Que tipo de maldade assusta atualmente?
Dois tipos de danos têm uma capacidade especial para nos
assustar: o dano feito a nós por outros e o dano que fazemos a outros,
ou que é feito a outros em nosso nome. De maneira geral, somos muito
mais conscientes daquele do que deste, porém ambos são muito
assustadores.
Vivemos num mundo de maldade superior às anteriores?
Não creio que seja verdade. De fato, em muitos sentidos, estou
convencido de que, com o tempo, os casos de brutalidade e barbárie
(mesmo em fenômenos como a violência doméstica) estão em declínio. Em
parte, esse é um produto da educação, mas é também produto do fato de
que temos tendência a não viver em sociedades monolíticas e totalizantes
nas quais apenas um número bastante limitado de pontos de vista
ideológicos tem influência.
------------------
Reportagem por Nilson Mariano
14/06/2014 | 08h04
Fonte: ZH online.
Nenhum comentário:
Postar um comentário