Temido depois de inspirar crimes recentes nos EUA, personagem é o primeiro mito nascido na internet
Desde 2009, ele assombra a internet. Corpo delgado, brancura
cadavérica, terno sóbrio e rosto vazio, Slender Man apareceu pela
primeira vez em uma foto-montagem em um fórum virtual de histórias de
terror. Depois de ser inserida em uma foto “normal”, onde pode ser vista
escondida entre crianças em um parque, sua figura misteriosa se
espalhou pela rede. Virou protagonista de lendas e contos, foi
representada em fan arts e até video games. Para muitos
especialistas, trata-se do primeiro mito nascido na web, com diversos
autores montando um pedaço de sua aparência e história.
Há
exatamente duas semanas, porém, a criação extrapolou o imaginário
digital para ganhar as páginas policiais. Em uma pequena cidade de
Wisconsin, nos Estados Unidos, duas meninas de 12 anos esfaquearam 19
vezes uma colega. A vítima sobreviveu milagrosamente (“Por uma questão
de milímetros”, informaram os médicos), mas a maior surpresa estava na
motivação do crime. Interrogadas pelos investigadores, as duas menores
contaram que haviam planejado o assassinato para provar ao mundo a
existência do personagem. “Muitos não acreditam que o Slender Man é real
e (nós) queríamos provar que os céticos estão errados”, teria dito uma
delas à polícia. Alguns dias depois, foi a vez de uma mãe de Ohio ser
atacada pela própria filha com uma faca. Ferida no braço, a mulher disse
a uma rádio local que a menina “parecia outra pessoa” e que era
obcecada pelo personagem. “Ela falava em matar”, relatou a mãe.
Chocada
com os acontecimentos recentes, a opinião pública americana ainda tenta
entender o que há por trás do fenômeno. Ameaça ou não para a sociedade,
o fato é que o “Homem Delgado” fascina porque resgata um tipo de
criação coletiva até então perdida, tanto em sua construção quanto em
sua difusão. Trata-se de uma transfiguração das antigas lendas orais,
que passavam de geração em geração ganhando novas camadas. Agora, a obra
em progresso é redimensionada pelas novas possibilidades digitais, que
lhe permitem se manifestar sob diferentes mídias (hiperlink, vídeo,
imagem, blog ou hashtag). É a mitologia se adaptando à era dos memes.
—
O que aconteceu em Wisconsin foi trágico. Os pânicos morais que se
abateram em torno do Slender Man, no entanto, eclipsaram o fato de que o
personagem foi construído em espaços colaborativos, onde os indivíduos
encontram recursos criativos e podem fazer trocas entre eles para criar
arte — diz a pesquisadora americana Shira Chess, PhD em comunicação e
retórica pelo Instituto Politécnico de Rensselaer, e autora de um estudo
sobre o personagem. — E isso é algo totalmente novo e excitante. As
pessoas estão contando histórias e leitura de histórias. É importante
não ficar tão preso na tragédia a ponto de renegar o potencial que a
internet oferece para facilitar este processo.
Shira lembra que,
no passado, os folclores tradicionais levavam séculos para se
desenvolver até chegar à forma ou às formas que conhecemos hoje. As
histórias de vampiro, por exemplo, tiveram muitas variações em seu
início antes que finalmente se estabelecesse um determinado conjunto de
características que hoje entendemos como “vampiro”. Com Slender Man,
aconteceu algo muito parecido, só que via crowdsourcing online e num ritmo muito mais acelerado.
Outra
característica importante do personagem é ter desafiado o conceito do
copyright. Nos tempos atuais, os mitos sofrem dificuldade de se propagar
livremente, bloqueados pelos direitos autorais. Embora tenha um criador
original (um certo Victor Sturge), Slender Man nasceu e evoluiu como
uma obra aberta. Só depois de ser difundido entre internautas é que se
tornou um produto cultural (aparecendo em filmes e jogos, por exemplo), e
não o contrário.
— O que realmente me fascina na evolução do
Slender Man é que o gênero foi sendo negociado organicamente por muitas
pessoas — acrescenta Shira. — Assim que Victor Sturges lançou a primeira
versão online do personagem, o poder comunitário tomou conta da
história, permitindo que ela fosse desenvolvida de forma orgânica. Isso
significa que ninguém mais tem controle sobre os mitos. Eles têm vida
própria e sempre há um risco de que um indivíduo, ou indivíduos, possam
interpretar ou reinventar a história de maneiras diferentes da ideia
original.
Para a cientista social Simone Pereira de Sá, o fenômeno
Slender Man também traz à tona uma vocação para o sobrenatural que
tentou ser sufocado pelo racionalismo.
— A cultura moderna da
razão tentou instaurar um modelo que quer explicar tudo, sem deixar
espaço para o mistério — explica Simone, professora da UFF e doutora em
comunicação e cultura. — O Slender Man faz aflorar um imaginário do
medo, da lenda e do terror que sempre esteve aí, provando que a cultura
letrada não acabou com ele. Não surpreende que aconteça na internet, que
sempre teve uma linha direta com essa construção da oralidade. Desde
cedo, o imaginário da internet é marcado por mitos, como o bug do
milênio.
Por ser uma história de muitos mediadores, ela foge da
autoridade dos especialistas, lembra Simone. O rosto do personagem,
aliás, não é indefinido por acaso: nele cabem muitos outros arquétipos
arcaicos e contemporâneos, que o personagem não cansa de reprocessar.
Sua figura pode fazer eco tanto ao Der Großmann do século XVI, um
monstro do folclore alemão que atacava crianças na floresta, quanto ao
Pedobear, um meme dos dias atuais que retrata um urso pedófilo. Para
Shira, o Slender Man representa uma série de ansiedades culturais, como a
perda do senso de realidade (o que explicaria a espécie de transe das
meninas americanas), o diferencial de poder, além do medo de identidade e
anonimato.
— Por diferencial de poder, entendo que as histórias
mostram como as vítimas estão desempoderadas en relação ao Slender Man —
opina Shira. — Suas vítimas enfrentam a incapacidade de comunicar seus
medos a uma cultura que não os entende. Em termos de “identidade e
anonimato”, creio que não é uma coincidência o fato de a história
emergir em um tempo e espaço semelhante ao do Anonymous e do movimento
Occupy.
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Reportagem por Bolívar Torres
Fonte: Jornal O Globo online, 14/06/2014
Imagem : A figura longilínea e sem rosto de Slenderman evoluiu de forma colaborativa na web
- Reprodução
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