"... uma afronta ao clichê social de que a infância termina.
"Não termina. Não na maioria das pessoas.
Ela pode estar escondida, ser
posta dentro do armário,
mas permanece como um estado místico"
O que faz que um livro seja considerado um clássico? A resposta
imediata a essa pergunta passa, certamente, por sua capacidade de se
preservar, permanecendo vigente e renovando nada mais que sua legião de
fãs leitores ao longo do tempo. Mas, na verdade, pode ser exatamente o
contrário: um clássico parece ser aquele que se presta a mudanças sem
deixar de ser o que é. Em outras palavras, um exemplar cidadão do mundo:
viaja, carimba o passaporte, mas orgulha-se de suas origens e tem
dentro de si a própria casa.
"Mary Poppins", um dos grandes clássicos produzidos no Reino Unido ao
redor da virada do século XIX para o XX (época de ouro da literatura
infantojuvenil do país), ganhou recentemente uma nova versão no Brasil a
partir dos olhares do poeta e romancista Joca Reiners Terron e do
estilista Ronaldo Fraga, que assinam a tradução e a ilustração da obra
concebida em 1934. O resultado, lançado pela Cosac Naify, é uma
harmoniosa conjunção de talentos que não ofusca a genialidade da autora
australiana P.L. Travers - pseudônimo de Helen Lyndon Goff [1889-1996] -
e ainda assim renova o brilho de uma babá que chegou ao sabor do vento
para mudar a vida de duas crianças fisgadas pelo mundo adulto, mas
finalmente libertadas pelo poder da imaginação.
A ideia de encarar essa viagem veio da própria editora, mas encontrou
em Terron e em Fraga um ineditismo favorável a uma descoberta quase
inédita: nenhum dos dois havia lido a história na íntegra antes e
convivido com ela de perto quando crianças. A experiência de recriar o
clássico - ou "dar uma opinião própria sobre ele", como define Ronaldo
Fraga - se presta a um debate sobre os processos de interpretação e de
criação em literatura, um campo em que os nomes dos autores são
impressos em letras cada vez maiores nas capas dos livros.
"Todo clássico exige um esforço de interpretação", diz Joca Reiners
Terron. "É normal e ao mesmo tempo terrível que seja assim, porque ao
ler o texto original você percebe justamente aquela riqueza que não
passa pelo olhar de outro. Meu esforço foi manter o texto integral, sem
adaptações. A única interferência que houve foi mudar o esquema de
diálogos, usando travessão em lugar de aspas." Para o escritor, que já
publicou romances, contos e poemas e realizou uma série de traduções ao
longo de sua carreira, há algo em "Mary Poppins" que dispensa
intermediações: uma afronta ao clichê social de que a infância termina.
"Não termina. Não na maioria das pessoas. Ela pode estar escondida, ser
posta dentro do armário, mas permanece como um estado místico", afirma.
Na seara dos desenhos, Ronaldo Fraga se valeu justamente desse
misticismo para dar rosto e roupagem a uma Mary Poppins que, em 1934,
foi descrita em traços somente na capa do original, com uma silhueta em
pleno voo. "A meu ver, era impossível tirar da história de P.L. Travers o
peculiar humor inglês que perpassa a história e criar algo
'abrasileirado'. Sobrou para mim a própria babá, que eu desenhei como se
fosse uma mestiça. Uma pessoa árabe, brasileira, indiana ou talvez do
Leste Europeu que foi trabalhar como babá na Inglaterra, trazendo mágica
de outros lugares."
Fraga valeu-se de seu repertório como estilista, criando ilustrações
que posteriormente foram trabalhadas por bordadeiras de Itabira (MG),
para então ser fotografadas e tratadas graficamente até chegar ao livro.
Ele esclarece o impulso por trás dessa ideia um pouco complexa para o
que é normalmente um processo editorial: "Trata-se de uma história muito
feminina e também muito têxtil. Mas, de maneira alguma, ela é rasa. Eu
queria que os bordados estivessem sempre por um fio, para que a
permanência da personagem estivesse justamente sobre essa impermanência.
Por isso, os fios ficam soltos".
Nada mais "Mary Poppins" - essa soltura que mexe com o vento, mas não
se desprende da página. Um embate entre o mundo infantil e o dos
adultos, que há 80 anos encantou leitores, mas na verdade foi mais
popularizado pelo filme de Robert Stevenson, protagonizado por Julie
Andrews e produzido por Walt Disney, do que pela obra de P.L. Travers.
"Uma pena", opina Ronaldo Fraga, que só assistiu ao filme depois de ler o
original em inglês e de tomar contato com os primeiros capítulos
traduzidos por Terron. "O filme é muito ruim, porque elimina as nuanças
da personagem, que, ao mesmo tempo que defende a imaginação infantil, é
capaz de impor limites - coisa muito bem-vinda em um mundo tão
permissivo como o nosso."
Criar com limites: aí poderia residir a diferença entre uma obra que é
pensada por um autor desde o começo e de outra desenvolvida a partir de
um original. Mas, em qualquer caso, Terron e Fraga desconfiam da
originalidade pura e simples. "Nada surge do nada. É um pouco ilusório
falar que não se trabalha com referências. Aqui se trata de uma
tradução, tem o limite do respeito etc. Mas tenho a impressão de que
tanto o trabalho literário como a moda operam dentro de uma tradição
antiga", insiste Terron. Fraga concorda: "Na verdade, de um projeto para
outro o que vai variar é o espaço de manobra. Mas, basicamente, a minha
opinião sobre 'isso' é isso".
A sintonia entre os dois tem algo a ver com a mágica da criação ou
talvez da própria Mary Poppins, já que eles não se conheciam antes da
ocasião em que concederam esta entrevista. O fato é que ambas opiniões -
plasmadas em palavras e traços - se complementam para dar vida a uma
história fresca, que é nossa velha conhecida. E diz em alto e bom tom:
criatividade é aquilo que fazemos com nossa imaginação, um lugar livre,
porém conectado com o mundo, e que existe, basicamente, para fazer-nos
voar - sejamos crianças ou adultos.
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Reportagem por Camila Moraes*
FOTO: Fraga (à esq.) e as ilustrações (também ao lado) trabalhadas por
bordadeiras e Terron, diante da nova edição: curiosamente, nenhum dos
dois havia lido "Mary Poppins" na íntegra na infância
Fonte: Valor Econômico online, 20/06/2014
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