sábado, 21 de junho de 2014

O futebol como bolha financeira – Robert Kurz*

Em tempos de Copa do Mundo um artigo muito atual de Robert Kurz sobre a indústria do futebol 

O futebol como bolha financeira

Geralmente, a alma do povo ferve de forma especialmente espumante, quando se trata de coisas sem importância. As coisas essenciais no entanto são tabus, porque disso depende também a própria identidade. Àquele que recebe um salário médio, parece impensável, criticar o sistema capitalista do ganho de dinheiro; em vez disso excita-se tão alegre como inconsequentemente sobre os falhados de fato, os super-bonzos, especuladores e outros vencedores de guerra da economia de concorrência, que ganham dinheiro sem esforço e apesar disso nunca ficam satisfeitos.

Nem sempre, mas cada vez mais frequentemente, entra aí em mira a coisa secundária mais bela do mundo, a saber o desporto. Melhor dito: o circo do desporto profissional, que explora o corpo de alta competição como mercadoria num negócio lucrativo em grande escala. Os mesmos amigos de copos e grupos de adeptos, que celebram as suas estrelas como familiares tornados famosos, também celebram a desgraça na falta de sucesso, e insultam os despromovidos de milionários saturados, que já não querem suar as estopinhas à maneira alemã. Na interdependência de combates de gladiadores e interesse passivo das massas, tolos adolescentes em botas de exército, médias primitivos populistas e vendedores de tapetes novos-ricos chegados a presidentes de clubes, criou-se um complexo desportivo-mediático com as áreas de referência futebol profissional, Fórmula 1, boxe, ténis, circo do esqui e numerosos suportes. Este complexo fornece pseudo-eventos sociais e compromete uma parte da consciência colectiva, ao oferecer opções de identificação, que ao mesmo tempo servem de válvulas para o ódio aos concorrentes e a tranquilização do medo social. Tradicionalmente trata-se de um foco de tendências nacionalistas e racistas (a história do DFB (1) é uma mina no que respeita a isto), onde também pulula um ébrio anti-semitismo latente com impulsos contra o “capital financeiro rapinante”: é que o desporto deve ser o género de uma continuação do trabalho ariano no relvado verde, na pista ou no ringue.

Com isto combina, como o punho de Klitschko no olho do adversário, que o próprio complexo mediático-desportivo representa um produto especialmente bizarro do capitalismo financeiro mais elevado e opaco. Enquanto esta relação, na era das indústrias fordistas de grande escala, era apenas fracamente desenvolvida, ela tem evoluído desde o início da terceira revolução industrial micro-electrónica até à perfeição. As possibilidades tecnológicas dos novos médias tiveram aí apenas um papel secundário. Essencial foi muito mais o carácter da revoluçaõ micro-electrónica de assassino global de postos de trabalho, que não pode originar uma nova acumulação real do capital. A “New Economy” sem substância definida daí tinha inevitavelmente que aparecer como bolha financeira.

Deste capitalismo de bolhas alimentava-se também o progresso comercial do complexo desportivo-mediático até dimensões astronómicas de rendimentos. O que antigamente era reservado a sectores derivados da indústria cultural como Hollywood e os seus grandes do cinema alastrou-se agora também ao desporto de alta competição. Entretanto os valores de passe e os rendimentos anuais das estrelas do topo atingiram a dimensão de orçamentos nacionais de países mais pobres, e os clubes de futebol são negociados na bolsa como companhias de automóveis ou grandes bancos. Esta transposição absurda dos critérios remete para que se trata do fenómeno marginal de uma insuflação do “capital fictício”. A verdadeira representação desportiva e o seu público directo já só são o ponto de partida e o ornamento para uma máquina de dinheiro, em cujo centro estão empreendimentos mediáticos como os de Rupert Murdoch, Sílvio Berlusconi e Leo Kirch.

O primeiro pilar da exploração mediática é a economia publicitária: Com publicidade nos equipamentos, publicidade nas vedações e blocos de publicidade durante a transmissão de acontecimentos desportivos move-se uma grande roda. Para optimizar quantitativamente este nível da comercialização, os czares dos médias impuseram um inflaccionamento de eventos: Os dias de jogos das ligas de topo são distribuídos pela semana inteira, os intervalos de verão e de inverno são preenchidos com copas adicionais, os inícios são adiantados, com vista à eficácia geral. O segundo pilar é constituído pelos canais codificados: Por taxas horrendas pode-se vender como mercadoria exclusiva a transmissão completa de eventos desportivos então mediaticamente já não públicos. Fundamento para as duas formas são os direitos de transmissão, que foram adquiridos aos clubes e associações desportivas por biliões de euros. A capitalização de bolsa tanto dos grupos televisivos como dos próprios clubes constitui o último nível da corrente de valorização fictícia.

No entanto o complexo desportivo mediático pertence aos sectores mais sensíveis do capitalismo de bolhas. A grande baixa da bolsa e a daí resultante queda da conjuntura mundial, poderiam levar à grande bancarrota, aqui mais rapidamente. Enquanto as empresas mediáticas assim como os clubes se endividaram até ao pescoço em antecipação de ganhos futuros, os rendimentos de publicidade caiem fora. Na RFA os canais pagos revelam-se um fracasso, e o populismo vulgar reivindica o direito absoluto a uma satisfação sucedânea. O boss alemão dos média de olhos esbugalhados tornou-se um espantalho e não só o Borussia Dortmund é negociado na bolsa abaixo do valor de emissão. Uma inteiramente possível queda da casa Kirch seria não só o início do fim da magnificência bilionária no desporto profissional, mas também um Menetekel (2) para o capitalismo financeiro na sua totalidade.

(1) Deutscher Fussball Bund , liga de futebol alemã.

(2) Expressão bíblica (Daniel, 5,25-25) que profetiza a dissolução do reino de Baltasar e sua divisão entre os medos e os persas. Aqui como “ameaça de perigo” ou “destino fatídico” (N. T.).

Original alemão Fussball als Finanzblase. Publicado originalmente em Neues Deutschland, Berlin, 17.08.2001

Tradução de Nikola Grabski
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* Robert Kurz (Nuremberga, 24 de dezembro de 1943 - 18 de julho de 2012) foi um filósofo e ensaísta alemão.

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