Brasil é pior país para trabalhar a sério na organização do Mundial,
afirmou entidade. Para nação antropofágica, não poderia haver elogio
mais gratificante…
“O Brasil não é para principiantes”. Essa frase, atribuída a Antonio
Carlos Jobim, corresponde a uma advertência para quem coloca em questão o
Brasil de hoje e de ontem e de sempre. Em tempos de Copa do Mundo,
nosso país está mais do que nunca sintonizado com sua verdadeira vocação
antropofágica, tão bem descrita no manifesto oswaldiano: “nunca
admitimos o nascimento da lógica entre nós”1.
Temos aversão a todo tipo de ordenação, de disciplina, de
racionalização que caracterizam o pensamento burocrático impessoal e as
economias de todo o tipo. Somos atrapalhados e nos metemos em grandes
confusões. Na verdade, essa é a nossa maior riqueza. É que não somos
afeitos à domesticação. Nem a FIFA, nem o mercado, nem o Estado e nem
ninguém conseguem amansar esse povo complexo e controverso. A FIFA já
constatou: o Brasil é o pior país para se trabalhar a sério na
organização do Mundial. Não há elogio mais gratificante do que esse.
Estamos com as obras atrasadas. Pois que atrasem! Somos originais.
Vangloriamo-nos da dor de cabeça que causamos ao inimigo externo. Sairão
daqui com o desejo de nunca mais retornar. Mas os traremos de volta,
daqui uns anos mais, para causar-lhes uma dor de cabeça renovada.
Aqui no Brasil, nós devoramos o inimigo pela adesão a ele. Uma adesão
relativa, é certo, e avessa aos compromissos de filiação. Aceitamos a
Copa para mostrar ao mundo quem somos e o que desejamos ou não
desejamos. Para mostrar que o país do futuro se constrói na incerteza do
presente. Na aceitação do presente como um devir. Aceitamos a Copa para
combatê-la através do que ela nos proporciona de melhor: o futebol. Ah,
o futebol… O combate acontece na forma de entrega nada maniqueísta. Vai
ter Copa e não vai ter. Vai ter jogo e protesto, farras e vaias, sangue
e gols e punhos cerrados. O corpo inteiro como experiência coletiva.
Abrimos as portas de casa para o mercado financeiro, para a especulação
imobiliária, para a violência internacional, violência policial.
Dormimos abraçados com o inimigo. E acordamos em festa. No entanto, mal
sabem os analistas principiantes que, durante a noite, nós é que
“comemos” o inimigo. Assimilamos seus valores e os transformamos de
acordo com uma lógica interna, própria do espírito carnavalesco. Tal
como nas palavras de Haroldo de Campos sobre o sentido do Brasil
canibal: “assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e
reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais iniludíveis que
dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam, em
princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num
confronto internacional, como produto de exportação2.”
Esse é o alicerce da nossa nacionalidade. A verdade subtropical
do pensamento selvagem, o pensamento da fundação da nova civilização
planetária. Homo Novus Brasilensis. Eis a virtude do jeitinho
brasileiro e do “homem cordial” como produto de exportação. Porque essa é
nossa herança mais profunda, nossa ontologia cultural brasileira.
Boicotamos o Estado antes que ele boicote nossa espontaneidade.
Driblamos os governos e o mercado e apresentamos ao mundo uma nova Copa
do Mundo, onde a bola dividirá o campo com os protestos. Usamos a Copa
para revelar ao mundo as mazelas do mundo. Nossa luta é contra as
instâncias referendadas pelo Estado e pelo mercado, que tentam controlar
as efervescências e organizá-las de acordo com a lógica normativa do
poder. O poder que vem de cima e que é avesso ao húmus, aos que vivem no
chão. Nossa filosofia é chã, como a do Manoel de Barros. Nossa tática é
irracional, é anti-tática. O fim da política como estratégia de guerra.
A refundação da política como experiência interna, regada à festa. A
ordem primitiva. A vitória de Dionísio sobre Apolo. A derrota da ciência
pela astúcia do mito. A superioridade da magia frente à desencantada
religião. Não seria isso o verdadeiro “ateísmo com Deus” do manifesto
antropofágico?
De fato, não há compatibilidade entre o nosso turbante de bananas e a
gravata engomada dos executivos da Copa. Aqui a periferia (aqueles do
chão) impera antes, durante e depois do carnaval. É ela quem civiliza.
Essa é a nossa virtude. Por isso, a tradicional fórmula “colonizadores versus
colonizados”, com a superioridade dos primeiros, não se encaixa no
nosso perfil. Nossa fórmula é tupi: a anti-fórmula. Somos potência
econômica. Mas o que temos com isso? Não partilhamos a riqueza.
Dominamos pelo imaginário, esse sim bem distribuído e cada vez mais real
e potente.
Não basta a FIFA ter o poder do capital para financiar o espetáculo
artificialmente midiatizado e ordenar a cidade de acordo com interesses
financeiros. Aqui nos trópicos, capital não é suficiente. Tem que ter
jogo de cintura, saber sambar e rebolar na boquinha da garrafa. Caso
contrário, damos de 10 a 0 com direito a drible à la Garrincha,
balãozinho e bola por entre as canelas. Não basta ter poder, tem que ter
espírito. Isso nós temos de sobra. Com o espírito do Exu tranca-copa, o
espírito do povo das ruas, dos bêbados e equilibristas, dos palhaços de
circo, dos bufões de esquina, dos mascarados, dos craques da várzea…
nós vamos, aos poucos, “comendo” a FIFA.
Estamos na véspera da Copa que não vai acontecer. Cabe aqui uma
última advertência a todos o que pensam poder colocar o Brasil em xeque.
A advertência já foi dada por Hélio Oiticica, o herói marginal, mas
poderia ter saído de qualquer outro anti-herói Macunaíma, ou seja, de
qualquer um de nós: “quem ousará enfrentar o surrealismo brasileiro?”3
—
1ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In: A Utopia Antropofágica. Obras Completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Globo 1990.
2Citado por VELOSO, Caetano. Antropofagia. São Paulo: Penguin Classics / Companhia das Letras, 2012, p. 54.
3OITICICA, Hélio. Brasil Diarréia (1973). In: In DERCON, Chris et all (org). Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1998.
--------------------
Texto: Por Lisandro Moura | Imagem: Túlio Tavares, Antropofagia
Fonte: http://outraspalavras.net/brasil/estamos-comendo-a-fifa/
Nenhum comentário:
Postar um comentário